domingo, 30 de dezembro de 2012

Escritora Convidada: Elianete Vieira

Hoje é 30/12. Falta apenas 1 dia para o término de 2012.
Sempre que um momento especial se aproxima, olhamos para trás e buscamos pelo que falta para seguirmos em frente. Seja na véspera de prova, na véspera da tão sonhada viagem, na véspera de uma apresentação para a banca de mestrado, na véspera de nascer um filho, na véspera do casamento, etc.
E hoje como véspera do fim de 2012 se você ainda não fez a retrospectiva de seu ano, aproveite pois ainda dá tempo. Procure lembrar de tudo o que planejou e realizou. Do que deu certo ou nem tanto. Do que planejou e não fez, identificando o que faltou para essa concretização.
Passado revisto e concluído, vamos para as resoluções de Ano Novo. Mas não funcionará se partir do zero, de uma folha em branco, pois muitas coisas dependem do que já realizamos e como chegaremos às metas definidas. Observe dentre os itens que foram identificados no passado aqueles que estão próximos de realizar bastando um leve empurrão ou uma determinação a mais.
Não coloque para um único ano uma meta grandiosa demais para 12 meses. Mas coloque para este ano a parte possível de ser realizada. Exemplo: a compra da casa própria é meta a ser alcançada em vários anos consecutivos, considere para 2013 juntar a parte que precisará para a entrada.
Metas menores são mais possíveis de serem atingidas e nos fazem felizes em alcançar passo a passo.
Viagem, carro, casa, vestibular, 1o emprego, namorado, escrever um livro, rever alguém que não vê há anos, arrumar armários, pintar a casa, ler mais livros, etc. Seja o que for que estiver em sua lista, procure identificar os passos necessários para atingir essas metas e... Vá em busca de seus sonhos e realizações.
Adeus Ano Velho!!
Feliz Ano Novo!!
Que 2013 traga saúde, paz, amor, realizações e sonhos realizados.


elianetevieira Sobre a autora:


Elianete Vieira é analista de Sistemas formada pela SESAT, Rio de Janeiro, pós-graduada em E-business e Gestão Empresarial e Gestão de Negócios em Serviços pelo Mackenzie em São Paulo. Trabalha em uma multinacional como gestora de contratos de serviço.
É autora do livro técnico/educacional Desvendando a Informática na Melhor Idade.
Participou da Antologia Nossa História, Nossos Autores, edição comemorativa dos 30 anos da Editora Scortecci, lançado em 10/08/2012. Está participando da Antologia Palavras Desavisadas de Tudo que será lançada em dez/2013.
Também é coautora e coordenadora editorial de Reciclando Vidas, livro de ficção escrito em grupo durante o curso "Tornando-se um Escritor" da Escola do Escritor, lançado em 17/12/12.
E a partir de 2013 Elianete Vieira será mais uma integrante do rol de escritores do nosso blog. Ela vai ocupar a data 04 que atualmente está vaga.


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Coitadinho... (Inacio Carreira)

Naquela mesa está faltando ele
E a saudade dele está doendo em mim...
Sérgio Bittencourt


Metade homem, metade cavalo. Ou, sendo do sexo oposto, metade mulher, metade égua... Sagitário, o Arqueiro, é representado por um centauro. Metade homem, metade cavalo. Positivo, sua alegria contagia os outros. Este pensamento sugere que o judeu Guido, personagem vivido por Roberto Benigni no filme A Vida é Bela, seja sagitariano. Buscando animar o filho e não tirar, da criança, a inocência que é natural a ela, inventa situações engraçadas para as muito tristes passagens da Segunda Guerra Mundial, que os levou para um campo de concentração.


Ganhar na loteria. Ou no jogo do bicho, tanto faz, o dinheiro seria distribuído da mesma forma entre os parentes, amigos, conhecidos, para que todos à sua volta vivessem mais felizes. Assim pensava, erroneamente, pois dinheiro não trás felicidade. Mas sua vocação para Madre Teresa não a deixava ver claro o panorama. “Onde houver tristeza que eu leve a alegria”, orava toda noite, lembrando São Francisco, o pobre de Assis. Sim, para ela não queria muito, precisava de pouco para viver. Bem. O mais importante era ver pessoas felizes à sua volta. O que, no fundo, no fundo, era um pouco de pretensão de sua parte. Pretendia ser reverenciada como a que proporcionou isto e aquilo, que comprou, que adquiriu, que doou, que...


Ela só não olhava para uma pessoa: o marido, provedor da casa e patrocinador de suas manias de grandeza. Trabalhava, o herói, diariamente, sem desfrutar de férias (gozava férias trabalhando em outra função, na maior das vezes mais cansativa do que sua atividade principal).


Quando o assunto era dinheiro, sexo, a criação dos filhos ou a família, invariavelmente discordavam. É como se ela acreditasse que ele devia pagar pedágio para estar em sua companhia. Ele pagava, com um sorriso nos lábios, embora às vezes tivesse o coração em pedaços. Pela indiferença, pela descrença, por achar que ele nada podia. Só trabalhar...


Confidenciou, a um dos filhos, que somente uma vez tivera um relacionamento extraconjugal, fortuito, a convite da parceira, após ter oferecido uma carona. A mulher soube, como boa sagitariana subiu nos cascos e nunca mais deu folga ao infeliz. Que procurava, à sua maneira, ser feliz, sim, que ninguém é de ferro. Cantava, assobiava, tocava instrumentos rústicos que ele mesmo construía e ela fazia questão de esconder, ou jogar no lixo. A culpa caía, invariavelmente, na prole. Ele, na falta de provas, sorria e criava outros instrumentos... Os filhos lamentam não ter, do pai, tão agradável recordação além da que guardam “no lado esquerdo do peito, perto do coração”.


Certa vez ele escreveu, num arroubo de felicidade:




Sorria


 Se a Felicidade
parece voar distante,
lembremo-nos de quando
ela pousava em nosso ombro
(seus pés acariciavam, até),
comia em nossa mão
(o bico fazia cócegas, lembra?),
andava ao nosso lado
(como é gingado o seu andar...)!
 
A Felicidade é uma ave
de longas plumas de arco-íris,
de canto mavioso,
ovos de ouro...
É migratória.
Ela vai...
... e volta!



Ela, peremptoriamente, rasgou o manuscrito e jogou os pedaços no lixo, matéria que foi resgatada, colada e serviu de base a esta explanação, ou ficaria tudo na base da confiança, na minha palavra somente. Quando, algum tempo depois, ele foi prestar contas ao Criador, ela só teve uma palavra: “Coitadinho”.


Entretanto, possessiva, sem ter a quem comandar, tutorar, ela foi logo atrás, devem estar fazendo a maior algazarra, onde quer que estejam. Quer dizer, ele deve ter feito a maior algazarra a partir do momento em que a viu, já deveria estar saudoso, o Coitadinho.

Bianco (Inacio Carreira)

"Branquíssimo,
ele namorava ursos e ursas.
Era um autêntico
bi polar..."

domingo, 23 de dezembro de 2012

Natal, a época das ostentações (Patrícia Grah)

Cartão-de-Presépio-de-Natal-12


Mais um natal que se aproxima e um ano se finda. Data propícia para aquelas manifestações amorosas e calorosas. Nesta época todo mundo quer ser melhor no próximo ano e, principalmente ser mais bem sucedido financeiramente. Acontece que, o mais comum de se ver por ai, são algumas pessoas se endividando com coisas supérfluas, gastando o dinheiro que não tem ou não poderiam, esbanjando horrores para ostentar um status que não é seu. Aí, ao contrário do que sonham – ter dinheiro – já começam o ano cheio de dívidas que não podem pagar e prejudicando o comerciante que contava com aquele dinheiro a receber para poder pagar suas contas. Penso eu que se queremos mudanças e alcançar algum sonho, devemos começar fazendo somente aquilo que nosso ordenado permite, mas infelizmente vivemos em uma sociedade (e uma cidade) gigantemente capitalista, aonde somos julgados por nossa condição social e financeira, sendo assim, o status é o mais importante, por isto algumas pessoas não estão nem ai – “Deixa ir pro SPC!”. Confesso que este comportamento fútil e desmoralizado é algo que me deixa bastante insatisfeita com o ser humano. Nada do que eu digo aqui é pessoal. Também vou à praia, compro coisas caras quando posso e presentes nesta época. O que coloco aqui é meu ponto de vista como comerciante, perante o que vejo e já vi acontecer durante anos. Penso eu que quem pode, tem mais é que aproveitar a vida mesmo! Mas devemos usufruir das coisas de acordo com nossas vontades e necessidades, e não querer levar uma vida que não se pode somente para ser engradecidos perante aos olhos da sociedade. Este é meu último texto deste ano aqui no blog e a mensagem que eu gostaria de deixar é a seguinte: Sempre há tempo pra mudar, colocar tudo em dia e ser alguém mais íntegro. Não adianta idealizarmos um futuro brilhante enganando o próximo. Só conseguiremos chegar a algum lugar com muito trabalho honesto, pois nada tem mais valor nesta vida que o nosso caráter e a integridade!


PS:  Feliz natal, cheio de paz e harmonia para todos e um 2013 repleto de realizações.
 Até o próximo ano! Bjus, Pathy Grah.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Sobrevivente do Fim do Mundo (Tiago Nascimento)

Dormira até mais tarde no dia 21. A se confirmar as previsões seria o último dia de existência do mundo. Por que não esticar a derradeira manhã de vida?
Mas o mundo não acabou. Ele ficou feliz. A despeito dos temores da véspera, ao amigo que encontrou logo cedo no dia 22 confessou: nunca levei muito a sério essa possibilidade.
Alegre, planejava comemorar a sobrevivência na balada no sábado à noite. Mas não chegou lá. Cem metros antes o carro derrapou, saiu da pista, atropelou um poste e dois pedestres.
Os pedestres passam bem. Ele e o poste nem tanto.
Uma bela maneira de se começar um mundo novo...

acidente

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

COMUNICADO

Hoje excepcionalmente devido ao fim do mundo, não haverá expediente neste blog.

Fim-do-Mundo

Enquanto aguardamos a volta à normalidade: aumente o som!





Dualidade (Vana Comissoli)

dualidade


Maria e Estela, irmãs gêmeas idênticas. Nomes tão díspares. Os pais, ao terem gêmeos, tendem a dar nomes semelhantes, não que isso seja bom, é até mesmo ruim, amalgamam os filhos e eles se enroscam num só tronco, quando muito com quatro pernas, mas a tragédia permanente de duas cabeças está sempre presente. Inexorável.


Conosco não foi assim,desde o começo as diferenças foram estabelecidas. Meus pais teriam pressentido o inevitável e escolheram nomes díspares? Maria e Estela...


Nasci primeiro, pelo menos era o palpite de minha mãe, estava com o cordão umbilical de Estela enrolado no pescoço e os médicos nem olharam direito a minha cara, embora isso não fosse fazer a menor diferença, correram a salvar minha irmã. Quem ficou cianótica fui eu. Ela prontamente berrou para que o mundo viesse saudá-la, no que ele obedeceu. As visitas que vinham para as duas, logo desistiram de mim,era o mesmo rostinho, mas eu chorava sem parar e não tinha graça nenhuma fazer bilu-bilu para um saco de berros. Muitos dias depois o pediatra se deu conta que leite tinha apenas para Estela, sempre a primeira que entregavam à minha mãe para amamentar. A enfermeira jurou por tudo que era santo que intercalava, podia se enganar, tão parecidas as meninas!


Podem não acreditar, mas eu podia ver Estela piscando o olho e sorrindo matreira.


Crescer não foi problema, o organismo se encarregou de não fazer diferença conforme estava escrito no DNA. Brincávamos juntas, dormíamos juntas, vestíamos igual. Nos retratos nunca sabiam quem era eu e quem era ela. Estela gostava de brincar de imitação,eu não gostava nem um pouco. Não gostava de nada que ela gostava: arrancar as pernas das formigas, chutar o gato que eu amava. Comer fruta verde e passar mal. Quem comia era eu, elas apenas cheirava e revirava os olhos antecipando na minha boca o sabor mais delicioso do mundo.


Naquele dia, Estela parou à minha frente fazendo tudo que eu fazia, normalmente eu acabava chorando e ela rindo, desta vez entrei em pânico, achei que era um espelho. Não era minha irmã que estava ali, fazendo os meus gestos, era eu frente ao espelho e não gostava do olhar penetrante, um brilho verde no fundo que não conhecia. Era eu e não era eu. Estapeei o espelho até ficar com o rosto vermelho, as mãos doloridas e os pulsos sangrando. Os meus berros trouxeram nossa mãe espavorida enquanto Estela ria com um filete vermelho escorrendo da testa e entrando olho a dentro dando-lhe um ar diabólico que me fez gritar mais alto.


Tinha medo dela. Às vezes me assombrava uma estranha sensação de que éramos gêmeas xifópagas onde tínhamos o mesmo corpo sem individualidade, mas cabeças opostas. Minha irmã era sinistra, assim eu a percebia, e seu corpo idêntico me alucinava, como se houvesse algo daquele mal dentro de mim. Éramos inimigas com vínculos severos e atordoantes, que me confundiam.  A reconhecia como se tivesse vivido com ela outras vidas estranhas e escuras. Lembrava seu rosto adulto, diferente do meu, mas com o mesmo olhar verde limo, queria renegá-la e não conseguia.


Um espinho todos os dias era remexido na ferida cada vez que ouvia mamãe nos chamando: Maria! Estela! Estrela matutina, luz do dia, esse deveria ter sido meu nome, mas foi Maria, a enxotada na cozinha, a mais banal das banais. A que os cabelos não brilhavam ao sol, a de pele fosca e sempre ranhenta num resfriado sem fim.


Iguais e tão diferentes! Uma linda, brilhante, sedutora, manhosa, matreira. A outra calada,olhos de desvio, silêncio em movimento, organizada, disciplina férrea. A ordem e a disciplina me preveniam de não escorregar no escuro túnel onde eu trombaria com ela que iria para dentro de mim, rindo de minha falta de jeito. Eu seria consumida.


Um karma infeliz que divertia minha irmã e me prostrava em cima da cama à busca de entendimento. A ideia de união indissolúvel era cada vez mais forte, apesar de tudo sabia que sem ela não poderia viver. Não havia ligações físicas a se efetuar por diversos órgãos inviabilizando a sobrevivência de ambas, mas havia esta ligação de estalos e gemidos. A gota d’água pingando sem parar. Plim... Plim... Plim... Tapava os ouvidos e a gota continuava no balde de minha cabeça rompendo lentamente o que restava de elo com o mundo.


Eu via os liames se enroscando entre nossas camas nas noites de pesadelo e não conseguia me afastar, tinha medo que a estrangulassem e ela morta, eu também estaria. Não podia permitir melhor a fixação patológica que me mantinha viva. Eu a odiava. Queria ser boa, ter os conhecidos sentimentos gentis e ela... ela me amava tortamente me infernizando com seu riso de princesa. Zombando enquanto todos a ouviam cantar embevecidos. Eu não cantava uma nota sequer no tom certo e não decorava letra de música alguma além de “Atirei o pau no gato”. Logo esta que me doía só de imaginar meu gatinho amparando a lambada. Lambada dada por Estela.


Quando decidiu perto dos 14 anos que pintaria o cabelo, senti que parte de mim sumiria.


- De maneira nenhuma! Somos gêmeas, temos que ser iguais.


- Não, não temos. Só somos gêmeas, não pensamos igual, não sentimos igual. E não pintarás igual a mim, não quero que sejas eu.


Dizia isso com a lâmina apoiada nos pulsos, os olhos fixos nos meus a me castigar. Não sabia o que fazer. Apelei para minha mãe que achou uma grande bobagem, que cada uma fizesse o que quisesse. Éramos apenas gêmeas.


Na escola, ela tinha amigas e eu não desgrudava dela, também queria que as meninas conversassem comigo. Eu era quieta, nunca tinha a piada certa, a perspicácia de perceber as situações: - Ah... é? É? Como assim? – terminava por aqui a minha presença de espírito e Estela ria, fazia chacota de minha timidez paralisante.


Nos pesadelos que sacudiam minhas noites, eu era Estela e Estela... Não existia.


Não sei como ninguém enxergava sua perversidade apesar de fazer tudo às escondidas. Já adolescente, tirava dinheiro da carteira de meu pai e comprava cigarros que fumava no fundo das esquinas, depois, sem que eu visse, guardava as bitucas no meio de minha roupa íntima, onde mamãe acabou achando e eu levei uma surra e castigo de dois dias.


Muito antes de eu pensar em namoradinhos, ela tinha fãs que deixavam de comer merenda para lhe comprar um sorvete. Eu não queria saber de meninos, tinha certeza que se gostasse de algum, ela daria um jeito de pegar para si e sei que ele não hesitaria em fazer a troca. Não queria ser mais infeliz do que era.


Lentamente, fui mudando, o desejo de ser boa foi virando gelo derretido e me esfriando por dentro. Comecei a ter consciência que a odiava de fato e que, enquanto vivesse ao seu lado, eu não passaria de uma sombra.


Na escola, nossas letras absolutamente iguais, eram um problema, ela assinava meu nome nas provas e eu não tinha como provar a usurpação. Ela tirava 10, jurava que a troca tinha sido feita por mim. Sempre duas provas com o mesmo nome e ninguém podia ver nada de estranho nisso?


Aguentei até os 18 anos, a idade da independência, ou quase... Na hora de escolhermos a profissão, naturalmente queríamos a mesma coisa. Pela primeira vez fui esperta e deixei que Estela falasse primeiro, era a forma de conhecer seu segredo bem guardado: o que desejava da vida? Cruzei os dedos sem muita fé para que não fosse o mesmo que eu. Ela respondeu segura: Medicina. Quero ajudar as pessoas e não temo o sangue, nem o sofrimento, trazem sempre a cura. Ou a morte, grunhi.


Foi um dilema, a mesma faculdade? Todos os dias vê-la brilhando enquanto eu me desvanecia cada vez mais? A sensação era de dissolver-me enquanto Estela se tornava cada vez mais brilhante e suas brincadeiras mais ferinas, seu olhar punha maresia nos meus cabelos e nos dos outros como a refrigerar as ideias, menos as minhas. Eu fervia.


Não abri mão de meu sonho, queria dissecar as pessoas, descobrir onde se escondiam as almas e por que se enovelavam deste jeito atroz. A busca era mais forte do que eu. Haveria de suportar a presença de minha irmã apesar da gastrite que tinha quando passávamos muitas horas juntas e da urticária infeliz que me cobria o corpo caso minha mãe, inadvertidamente trocasse nossas roupas que continuavam iguais. Por que nos vestíamos igual se a mudança era tão simples? Eu não consegui mudar. Sofri e fiquei doente nas poucas tentativas que fiz, a depressão me vencia. Caixas e caixas de remédios tarja preta e fotos sobre a cama de nós duas iguais com expressões tão antagônicas. O claro e o escuro? A sombra e a luz? O bom e o mal? Não creio nesta dicotomia ridícula e infantil. Apenas diferenças que amarguram.


Logo em seguida, dois anos apenas... Por exaustão? Desistência? Incapacidade? Escolha? Desígnio? Sofremos um terrível acidente de carro.


Hoje estou deitada neste caixão e o cheiro das flores que morrem me incomoda. Estela não repousa no dela, senta-se tricotando calmamente uma esquisita roupa de bebê com duas pernas e quatro braços.


Outra vez? Quantas vezes ainda?


Consegui me levantar e saí. Na minha lápide recém colocada, meu nome em dourado, imagina só! Dourado!


Com saudades, nossa única e amada filha


Maria Estela Gomes Carneiro.


Seus amoráveis pais.


Vana Comissoli

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Há três dias do fim do mundo (Fernando Bastos)

Se você não esteve em Marte nesse último ano, já deve saber sobre a onda de pânico que se assolou mundo afora por conta da famosa previsão Maia do fim do mundo marcada para meia-noite do dia 21 de dezembro de 2012. Daqui há três dias.
Uma pesquisa realizada pela Ipsos Global Public Affairs, com sede em Nova York, mostra que cerca de 10% da população mundial acredita na previsão Maia sobre o fim do mundo para esse ano.
A NASA, preocupada com o pânico das pessoas – que ligam, mandam e-mail e cartas perguntando se é verdade que o mundo vai acabar dia 21 -, divulgou um vídeo explicando porque o mundo não vai acabar nessa data. Todos os argumentos dos que acreditam nas previsões maias são derrubados com elegância pelas explicações cientificas (http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI299017-17770,00CIENTISTA+DA+NASA+EXPLICA+POR+QUE+O+MUNDO+NAO+VAI+ACABAR+EM.html).
Há casos de pais que disseram estar decididos a cometer suicídio junto com os filhos, para poupá-los de ver o fim do mundo. Segundo a pesquisa, os mais crentes de que o mundo vai de fato acabar, estão os jovens abaixo dos 35 anos, as crianças e as pessoas com menor grau de instrução.
É impossível saber quantas previsões de fim do mundo já foram feitas desde que o ser humano olhou para o céu e começou a questionar a existência. Mas há registros em quase todas as culturas antigas que já tentavam predizer quando tudo iria acabar. Como tais previsões sempre falham, logo tratam de inventar uma nota data. O ser humano gosta de ver o circo pegar fogo. No último dia do ano 999, igrejas ficaram lotadas na Europa, e houve grande número de suicídios, ricos doando seus bens aos pobres, genros fazendo as pazes com as sogras, etc.
Isso se repetiu recentemente, no último dia de dezembro de 1999. Com menos pânico, pois o ser humano evoluiu bastante e já não é tão crédulo como há mil anos.
Mas uma previsão que eu faço você pode acreditar: assim que amanhecer o dia 22 de dezembro desse ano e o mundo ainda estiver de pé, alguns profetas já estarão esfolando os cotovelos pensando em uma nova data para o próximo fim do mundo.

sábado, 15 de dezembro de 2012

E o trem passou... (Sônia Pillon)

soniapillon@gmail.com

Piuí, piuí, piuí... Tô chegando, tô chegando, tô chegando! Tô levando grãos de milho, soja e óleo... Tô lotado, tô lotado, tô lotado! Sai da frente, sai da frente, sai da frente! Tô deslizando pelos trilhos, rumo a São Francisco do Sul! Piuí, piuí, piuí...

O trem da ALL vem que vem contente! Chega carregado, imponente, com todos os seus vagões. Como em um desfile de escola de samba, com sua comissão de frente, o apito anuncia sua chegada, lembrando aquela famosa marchinha carnavalesca de Chiquinha Gonzaga... Como é mesmo o nome? Ah, “Ô Abre Alas!”...

Do lado de lá e de cá dos trilhos, pessoas e veículos ficam literalmente estacionados com a sua vinda. A cidade para ante sua passagem!...

Mas hoje o trem tem um motivo a mais para se alegrar e estufar o peito de orgulho! Como se não bastassem as memórias de mais de um século, do tempo em que a antiga estação passou a impulsionar o crescimento da cidade, hoje ele será recebido com festa!

É que o trem ficou sabendo que, em sua homenagem, um evento cultural estava em andamento, reunindo poetas e amantes da literatura. Nos trilhos por onde ele passaria, poemas eram recitados com grande emoção, e os sentimentos brotavam do fundo da alma...

Piuí, piuí, piuí... Tô chegando, tô chegando, tô chegando! Tô levando grãos de milho, soja e óleo... Tô lotado, Tô lotado, Tô lotado! Sai da frente, sai da frente, sai da frente! Tô deslizando pelos trilhos, rumo a São Francisco do Sul! Piuí, piuí, piuí...

A hora de entrar na cidade estava cada vez mais próxima. Agora, já dá para avistar um pequeno grupo ruidoso, que estava abanando, sorrindo, pronto para recepcionar o trem e seu séquito de vagões. E quando ele chegou, chegou bem perto... Ah, foi um delírio geral!... Palmas e gritos de alegria à sua chegada! Todos queriam registrar em fotos e vídeo aquele momento histórico e inesquecível...

Piuí, piuí, piuí... Tô chegando, tô chegando, tô chegando! Tô levando grãos de milho, soja e óleo... Tô lotado, tô lotado, tô lotado! Sai da frente, sai da frente, sai da frente! Deslizando pelos trilhos, rumo a São Francisco do Sul! Piuí, piuí, piuí...

E finalmente ele passou! Majestoso, garboso, apitando e fazendo vento à sua volta. Os Saraus de Poesias nos Trilhos do Trem de Jaraguá do Sul, com certeza vão ficar para sempre na memória de seus participantes...

Sônia Pillon é jornalista e escritora, de Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC).

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Poema Pelo Mundo (Adriana Niétzkar)



Chove,


mas é verão.


Escuta Raul!


Eu sempre gostei da chuva...


mas tinha medo!




O céu muda de cor


e continua sendo o mesmo céu


ainda que de ponta cabeça.




A alma não altera com o corpo;


As pessoas não mudam.


Há pessoas que perdem o medo


de ser-ver.




Quanto mais terras se pisa


mais se descobre a si


não importam os hábitos das mãos


ou as cores nos olhos.


Importa o que faz com sua alma


e a do próximo


e nos próximos.




Sedas não saciam sedes


ou a falta de luz.


Que importa o calor no escuro?!


Com a luz, há sombras.


Mas elas acolhem em dias de sol.




Há sim


meus olhos tem mudado de cor....

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O samba engana (Ítalo Puccini)

samba


Com o perdão da rima bastante pobre no título, leitor, escreverei esta croniqueta discorrendo (que verbo horrível) sobre a contradição que o samba apresenta aos ouvintes da “boa” música – e aqui o adjetivo boa está entre aspas porque me parece sempre necessária uma reflexão acerca das dualidades bom/mau, mal/bem, entre outras, algo que não farei nestas breves linhas, é claro.


Conforme canta o Seu Jorge, “o samba taí, o samba tá, tá no sangue daquele que sabe sambar” – e até dos que não sabem, ainda bem. Porque não curte samba só quem samba. Há quem seja apenas um bamba, um alguém que apenas arrisca uma trocada de pernas e uma gingada, quase sempre errando, e nem por isso menos contente.


Mas quem é que se atreve a dizer do que é feito o samba? Os Los Hermanos é que não (e aqui não há nenhum desmerecimento ao conjunto carioca de nome argentino, e sim apenas uma observação: eles não são peritos em samba). Mas compuseram uma beleza de música, com esta indagação acima. E acrescentando que se samba por gostar de alguém. E que um bom samba não tem lugar. E não tem mesmo. Vale fundo de quintal, vale sacada de prédio, vale calçada e vale a romantizada botecagem no bar.
(Só não vale confundir samba com pagode. Assunto pr’uma outra croniqueta).


Caetano é de cantar que o samba ainda vai nascer, que o samba ainda não chegou, que o samba é pai do prazer e filho da dor, e que desde que o samba é samba é assim: a tristeza é senhora. E é aí que eu retomo o título: o samba engana. Engana porque, ao apresentar um ritmo envolventemente-gostoso, faz o sujeito que é bom da cabeça cair em uma alegria contraditória à letra que está sendo cantada; faz vibrar de alegria o corpo que saracoteia ao som de trem das onze, e que não percebe que não se pode mais ficar um minuto com a pessoa amada, pois, perdendo o trem que dali às onze horas sairá, só amanhã de manhã.


As mulheres são cantadas em todos os sentidos no samba. Mais do que isso: são cantadas as dores que provocam nos sambistas e compositores – e nos homens em geral. Essas moças tão diferentes, não é mesmo, Chico? Fica fácil embalar-se no ritmo dessa canção, sem atentar-se para a dor da moça que, diferente, está me passando pra trás.Por mais que no fundo ainda me queira bem, ela guarda desdém, a safada. Igual a tantas outras.


O samba é aquilo que nos leva a andar com a cabeça já pelas tabelas. Porque um samba leva a uma lembrança – ou a uma cerveja –, que leva a outra, que leva a uma roda de pernas a bambar, que leva a um samba e batem-se panelas e palmas e. E de repente as mãos são erguidas, a voz vai alta e o coração não dá o alerta de que se está cantando “Tu te lembras da partida / Acenaste um pano branco / Mãos ao ar, fala contida / Choro preso em acalanto”.


Tá legal, eu aceito o argumento de que há também o samba de letra entusiasmada, afinal, como é bom viver e não ter a vergonha de ser feliz, não é mesmo? Assim como faz bem aquele sambinha lento, pra dançar mais abraçado, aquele samba que vem pra curar o abandono, ou até mesmo para torná-lo mais grave. São nossos sambas da benção, lembrando-nos de que a tristeza pode até não ter fim – apesar do ritmo contagiante – e de que, apesar de ser preciso um bocado de tristeza pra fazer um samba com beleza, é melhor ser alegre que ser triste, sim.


E não nos esqueçamos de que não se deve deixar o samba morrer. Não se deve deixar o samba acabar. Por mais que ele doa e engane.


Ítalo

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Carência (Marcelo Lamas)

Transferido para a cidade do interior, Arthur precisou saber quem era o síndico para
resolver um problema de falta de água quente no apartamento. Ao descobrir que era uma
mulher, imaginou viúva, aposentada que passara seus dias pegando no pé do porteiro e
da zeladora. Quando a porta do 504 abriu, ele deu de cara com uma japa mestiça com
admiráveis nuances e percebeu que Adriana era casada, pois, viu uma enorme fotografia de
casal na parede.


Embora no trabalho as coisas estivessem indo bem, ele sentia falta de socializar-
se noutros ambientes. Foi quando cruzou com Adriana na garagem, acompanhada do seu
marido, vestido de branco. Médico ou dentista? – pensou. À noite, decidiu procurá-la no
face, pois ela certamente teria amigas, também interessantes, para lhe apresentar.


Ela o adicionou e passaram a conversar todas as noites. Acostumada a ser
cortejada pelos homens, inconscientemente, o desinteresse dele a atraia. Também não era
do feitio dele envolver-se com mulheres comprometidas. Embora fosse bonita, inteligente e
bem resolvida, sutilmente ela dava sinais de baixa auto-estima, mal-amada talvez.


Ela sugeriu que saíssem para conhecerem-se melhor. Ele perguntou como ficaria a
situação do marido. Adriana disse que já havia pensado num plano. O encontro seria numa
cidade vizinha. No dia marcado, a pedido dela, tiveram que abortar o plano, pois chovia
muito e uma viagem não seria conveniente. Ele achou que tudo seria cancelado. Adriana
remarcou para um restaurante dali mesmo e apareceu com uma amiga, fazendo o papel de
pretendente dele. Depois de uma conversa boa, saquês e afins, decidiram ir embora. No
estacionamento ela sussurrou para ele deixar a porta do apartamento aberta.


Daquele dia em diante, ela passou a desviar dele. Só dirigiu-lhe a palavra para dizer
que seu casamento tinha melhorado muito e que não queria problemas.


Seduzido, ele a procurou inúmeras vezes, mas não teve êxito. Vai ser difícil
esquecer a lingerie preta e de tudo o que aconteceu naquela noite.


Nota do autor: esta história é uma homenagem deste escriba ao centenário de
Nelson Rodrigues, o escritor que afirmava ver o mundo pelo buraco da fechadura: “Não vou para o inferno. Mas não tenho asas”. 


Marcelo Lamas
marcelolamas@globo.com

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Escritora Convidada: Elyandria Silva

O LEITEIRO


A cena visitou minha mente naquele instante duvidoso. Era bem cedo. Ainda na cama, sonolenta, escutava o barulho de palmas lá embaixo. Segundos depois minha vó descia a longa escada de nossa casa, abria a porta, tão fechada quanto entrada de calabouço, com uma enorme tramela na horizontal. Poucas palavras trocadas com um homem, trotes vagarosos de cavalo pela rua, o retorno pela escada e a porta sendo fechada. Quando levantava lá estava a garrafa transparente de leite, ainda morno, em cima da mesa. O homem era o leiteiro que, praticamente todos os dias, trazia o nosso leite. Nunca vi seu rosto e durante anos ele foi apenas uma voz que ouvia pela janela. Certa vez ganhamos leite de graça por um ano por conta de uma aposta. De presente de casamento meus pais ganharam uma leiteira que apitava escandalosamente quando o leite estava quente. O leiteiro, sujeito simples e caipira do interior, quando ouviu isto de minha mãe, não acreditou e disse que nos daria leite de graça por um ano caso comprovassem o feito. Perdeu a aposta! Encantado com a geringonça doméstica ele fez questão de cumprir o que prometeu até o último mês, embora meu pai relutasse em aceitar.
Muito tempo depois, eu, a garota que aguardava a chegada do litro branco e morno para levantar e tomar o café me via ali, mais uma vez, diante da comprida prateleira com tantas opções de tipos no supermercado. Olho para a fila do pão e uma ideia inusitada me ataca: uma vaquinha devidamente instalada dentro do supermercado, as pessoas pegando senha, o Sr. Leiteiro sentado no banquinho tirando o líquido das tetas da vaca, enchendo as garrafas, fazendo a chamada do número e entregando aos clientes. Volto para a realidade, me dá uma saudade do tempo em que a vida, de maneira geral, não era encaixada, em que a falta de opção era algo bom. Desejei abrir os classificados dos jornais e ler anúncios do tipo “Precisa-se de leiteiros com experiência. Paga-se bem. Urgente!” ou então “Abertas inscrições para o curso de leiteiro”. Foi para minha surpresa que encontrei este curso na internet com módulo I e II, estrutura curricular, direito a certificado após passar nas provas, claro, tudo pelo valor de 12 pagamentos de R$ 30,00 mensais. Uma barbada não? É, a vida moderna tem dessas coisas!
Fiz a escolha e segui com um poema de Carlos Drummond lá no canto do pensamento “Então o moço que é leiteiro/ de madrugada com sua lata/ sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim”. Isso é assim mesmo, são essas lembranças líquidas que, às vezes, nos transportam, por segundos, para uma lasca fina do passado.


Sobre a autora:
Elyandria Silva é graduada em Administração, com pós graduação em psicopedagogia. Além de atuar como cronista fixa e blogueira de literatura do Jornal O Correio do Povo ministra oficinas literárias e de crônicas.
A escritora l
ançou recentemente o seu terceiro livro, Labirinto de nomes (crônicas, Moleskine Editora, 2012). Antes a autora já havia publicado os livros Fadas de Pedra (contos, 2009) e Um lugar, versos e retalhos (poemas, 2010) ambos pela Design Editora.
Além dos livros publicados Elyandria, que transita bem por vários estilos, já havia participado das seguintes coletâneas:

Contos Jaraguaenses (Contos, Design Editora, 2007).
Jaraguá em Crônicas (Crônicas, Design Editora, 2007).
Preliminares (Contos e poesia, SESC, 2009).
Palavra em Cena (Textos teatrais, Design Editora, 2010).
Mundo Infinito (Contos, Design Editora, 2010).

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Lágrimas de crocodilo (Inácio Carreira)

   Saiu de casa. Pela última vez, dizia. Nem que chore lágrimas de sangue (bonita figura, apreendida na infância e que algum escaninho mental, aberto agora com toda essa emoção, deixava vir à luz da consciência). Não via vantagem alguma em estar atrelado a uma instituição que dava, a ele, somente casa, comida e roupa lavada. Cobrando, pensando não exigir nada em troca, o que de mais importante ele prezava nessa vida: a liberdade.


   Liberdade de ir e vir, de ficar na rua até altas horas com os amigos, de não lavar a louça do café da manhã atrasado, de deixar seus pertences por toda a casa (afinal, diziam sempre que a casa é dele, que ele faz parte da família, que todos o amam!)...
   A partir desse amor apontavam seu futuro: teria que ser médico, detetive, advogado, escritor ou qualquer outra coisa que a mãe vivia escarafunchando naqueles sites de horóscopo e consultando tudo que era vidente que aparecia na cidade. Controle remoto. Sim, era assim que ele sentia-se: manipulado por controle remoto.
   Que amor é esse que cobra pedágio, ágio, explicações? Deixassem que vivesse sua vida em paz e ele ficaria ali, sendo o exemplo (mau?) para os pequenos, para os vizinhos, para os filhos das ex professoras. “Veem o Zé? Deu pra nada, não... Virou chupim”... Chupim o catso... Ele tem dois ovos, mas não os colocou no ninho de ninguém para serem chocados... Aproveitador?... Passa... Ele não pediu pra nascer, pediu? Teria, agora, que entrar nessa de provedor do capitalismo selvagem e virar escravo de empresas internacionais, de rede de computadores, de nomes absurdos de empresas telefônicas que disputam os ouvidos dos incautos com as mais absurdas ofertas, fazendo o infeliz (que se acha feliz) esquecer que pode estar adquirindo um tumor pela proximidade das ondas eletromagnéticas com seu cérebro?
   Sempre procurei ser social, cortês, observador, colocar meu senso crítico a serviço do próximo, tentava justificar-se. Do que valeu? Nada, nada, nada, repetindo o refrão do “Você não soube me amar”... Valorizava a amizade, colocando no freezer os traíras. Sem piedade.
   “Sexo, drogas e rock n’roll”, sua máxima, somente dele, ninguém mais entende. No começo sexo era tudo para ele, espírito e matéria. Além dos Beatles e dos Rolling Stones amava de corpo e alma suas parceiras em relacionamentos profundos, mágicos, trágicos. Trágicos? Sim. O rock foi substituído pelo funk, o sexo foi substituído pelas drogas, o funk foi substituído pelas drogas. “Zé, sai dessa vida, vai estudar, trabalhar, ser gente!”, diziam, como se ele não fosse gente. Gente e respeitado no pedaço de beco em que cada pedrinha é disputada às vezes na mão grande, às vezes no tapa, mesmo...
   Aquela camisa laranja vai ser seu amuleto: no sábado escapou de uma batida policial, deu sorte, os homens entraram quebrando tudo, ele soube pela zinha...



Inácio Carreira. CONTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO TRAMAS, MOLESKINE EDITORA, NOVEMBRO DE 2012.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Nostalgia parte I (Patrícia Grah)

Mais um verão se aproxima, sempre acompanhado de uma estranha e inexplicável nostalgia que ela sentia. Aquele vento gelado trazia consigo uma mistura de medo com uma “coisa boa”.


Já passaram-se anos e é sempre a mesma coisa, a toda troca de estação ela fica assim, estranha. Quando era solteira, este sentimento se agrupava ao de solidão, agora que tem companhia, ela sempre lembra de agradecer à Deus por ter alguém do lado, não somente na troca de estação, quando surge este estranho sentimento, mas em todos os dias, a questão é que esta nostalgia lhe traz de volta o tenebroso passado, mas ela não consegue entender exatamente o quê.


O que passou,  ela procura não lembrar, não pensar, mas também não esquecer, afinal de contas, foi ele quem à ensinou a ser quem ela é, como ela é, agir como ela age. Talvez no futuro ela mude de ideia, mas por enquanto prefere pensar/agir/ser assim.


Não que sua vida tenha sido sem graça, mas alguns problemas na adolescência refletiram em seu jeito de ser mais tarde, algumas pessoas más apareceram no caminho e lhe deixaram cicatrizes muito profundas, então sempre que alguém remexe em seu passado,Tata procura desconversar, afinal de contas seu passado amargo hoje lhe faz dar mais valor à quem ela tem ao seu lado.


Abre a janela, vem aquele vento frio se misturando ao ar quente. Ela prefere fechá-la e deitar, vai pesquisar em sua mente algo que ela saiba explicar o por quê, afinal tudo aquilo que não se explica é sempre muito estranho...


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A ferocidade da beleza (Vana Comissoli)


             Eu a conheci de uma maneira tão prosaica que jamais poderia imaginar que se tornaria parte de mim e que sem sua presença em minha vida eu seria sempre metade.


            Era um dia quente, monótono, do tipo que eu denominava tirânico, seu único objetivo era me obrigar a viver. Nesses dias em que sair da cama, acordar, trabalhar, comer, eram atos desgastantes que levavam embora minha paciência e habitual acomodamento à respiração automática. Não havia nada que eu pudesse fazer com ela, simplesmente existia e eu me submetia a contragosto, mas nunca me passara pela cabeça, nem nas noites mais insones, que eu pudesse simplesmente abortar o movimento sistêmico dos pulmões.


            Era meio dia e não me restava outra coisa a não ser fugir do sol a pino me escondendo sob as marquises por duas quadras até chegar ao restaurante mais próximo. Para meu azar era o mais caro, mas estes dias são sempre sem sorte e por isso não me cansei reclamando. Agora ter todas as mesas ocupadas foi demais!


            No fundo do restaurante, perto dos eflúvios gordurosos e odientos da cozinha tinha uma mesa com uma mulher de costas para a entrada. Dane-se, pensei contra minha solidão arraigada, sentarei lá mesmo. Dispus-me a caminhar como quem tem que andar muito rápido sobre areia movediça, senão afunda.


            Pelo tamanho da cabeleira já vi que a mulher deveria ter uns vinte centímetros a mais do que eu, tinha cabelo para dar e vender. Poderia cobrir facilmente minha careca incipiente com a qual eu brigava todos os dias. Já não bastava ter cara de fuinha, boca de chupar ovo e um nariz a la Gerard Depardieu?


            Adoro cinema. É minha grande oportunidade de viver, posso mergulhar num filme com muito mais facilidade do que mergulharia numa piscina e então ser quem eu quiser e ter as mulheres que desejar. Viver o que jamais me seria permitido. Não estou reclamando de nada, apenas pensando no meu perfil que acabei aceitando: uns são favorecidos, outros não. Assim é e brigar só faz tudo se tornar ainda mais difícil.


            Esta minha paixão me deu conhecimento sobre todos os atores e atrizes, meus verdadeiros e fiéis amigos, uma fidelidade bem próxima da real, já que mudavam de nome, histórias e sentimentos, com o mesmo desprendimento com que meus amigos de carne e osso me deixaram para trás. Eu não era uma companhia muito agradável, fazer piadas para compensar seria uma humilhação que não me facilitaria em nada. Me deixaria humilhado. Ser o engraçadinho da turma me traria apenas vergonha e medo do ridículo. Eu já era ridículo o bastante.


            Aquela mulher era a encarnação perfeita da desaparecida Sophia Loren. É eu também tinha disso, gostava das antigas. Era como se o tempo as tivessem levado embora e não a minha palidez de espírito. Enfim, era a minha Sophia. Pedi licença e sentei à sua frente.


            Foi difícil levantar-me e servir um prato no bufê farto. Fiquei pensando qual comida a Sophia julgava conveniente para um almoço que tivesse um pouco de refinamento que eu não tinha. Era um artigo que não precisava me dar ao luxo de conquistar, nunca repartia minha mesa.


            Quando voltei ela levantou uns olhos de Elizabeth Taylor, juro que eram lilases, e sorriu. Não sei como consegui me sentar e muito menos segurar o tremor das mãos. Fiquei sabendo que seu nome era Darlene e que era médica. Viera fazer um atendimento especial numa pessoa querida, não costumava frequentar aquela zona da cidade. E passou o almoço todo tagarelando, contando coisas, piscando os olhos e me deu uma alucinação, só podia ser isso, por que imaginei que me olhava de forma a me enxergar. Mulher alguma até esse dia fizera isso, meus problemas sexuais eu resolvia chamando um Sex Delivery e mal acabava descartava a sem nome com uma gorjeta gorda que a fizesse voltar sem bater boca com a dona do cafetinagem.


            Mas Maura me enxergou. Ao se despedir me estendeu seu cartão e pediu que eu ligasse para ela, gostaria de me conhecer melhor por que era muito simpático. Um homem natural que não tentou me seduzir foram suas últimas palavras.


            O sol não me torrou, as horas deslizaram e os colegas não foram tão distantes. Tudo se coloriu e eu não podia acreditar que aquilo acontecera comigo, alguma coisa estava errada e tinha certeza que Maura não era cega e nem surda.


            Depois de tomar três vidros de Rescue, esse abençoado floral que era meu socorro, eu liguei. Nem sequer fiquei mudo como via nos filmes, falei alto e forte. A convidei para jantar e ela aceitou.


            Eu nunca fora à mãe de santo fazer trabalho e nem acendera vela para santo, então aquilo só podia ser uma paranoia que tomara conta de mim a tal ponto que eu misturava verdade com imaginação. Só o filé Chateaubriand à minha frente e o caldo delicioso rolando na minha língua me deu certeza que estava acontecendo realmente. Maura entrava na minha vida com seu maravilhoso perfume de folha de limoeiro.


            Foi tudo muito rápido, logo sabia o quanto era desesperançada do amor, como fora usada por sua aparência que odiava e me encontrar fora um recado dos céus que confiar em alguém ainda era possível. Ser feliz também era. Fui estonteantemente feliz.


            No fim de ano, pela primeira vez, fui à festa oferecida pela empresa onde trabalhava na gerência administrativa. Quando apareci de braços com meu mulherão, todos os olhos caíram sobre mim, as bocas ficaram entreabertas e teve gente deixando o queixo cair no chão.


            Maura estava deslumbrante. Até o diretor veio me cumprimentar e pedir que apresentasse minha companheira. Não tive dúvidas:


            - Dr. Gonçalo, lhe apresento minha noiva.


            O homem não soube o que responder e Maura depois de lhe apertar a mão, beijou-me no rosto, me fazendo um carinho na face. Era a glória. Eu estava redimido de todos os miseráveis anos passados de minha vida.


            Naturalmente ela se transformou no centro de tudo. Nada havia sem Maura, nem mesmo eu existia. Eu era ela. Passei a caminhar com sua firmeza, a colocar opiniões como quem acredita no que diz, sair à noite sem medo e conduzi-la pela cintura na frente de todos. Pelos ombros seria bem complicado, então pulei este impedimento.


            Após três meses ela propôs se mudar para minha casa. Não podia acreditar, ela me queria de verdade e nem sequer a deixei carregar a menor das caixas, se pudesse até a ela eu carregaria.


            Fui promovido, perdi o medo de mostrar que não era o parvalhão que pensavam, eu entendia do meu trabalho e o fazia bem, muito bem. Meus colegas passaram ir em nossa casa e tínhamos belas noitadas de conversa inteligente e música de primeira qualidade. Maura preparava jantares estupendos e aprendi a comer, a beber bons vinhos e a degustar um verdadeiro Tiramisu, feito com mascarpone legítimo. Se Maura queria mascarpone, ela teria mascarpone. As estrelas, os sapatos, as roupas, as grifes e as férias na Tailândia, pode pedir, eu dizia enquanto ela cortava minhas unhas.


            O sexo foi uma viagem espacial até que Maura resolveu que melhor seria vir por cima de mim. Eu não conhecia luta livre até este momento. Nem grito, tapas e socos na cara. Mas se a fazia feliz... Quem era eu, um quase anão de jardim a contrariar? Não perderia a mulher de minha vida nem que precisasse rastejar.


            Não devia ter pensado isso por que eu rastejei. Ela engordou 10 quilos nos poucos meses seguintes e seus seios me sufocavam, enormes e famintos por comer minha boca. Seu apetite era insaciável e gozava apertando meu membro até me fazer chorar. Ria desbragadamente me chamando de fracote e inútil.


            Mas era Maura...


            Minha casa foi fechada aos meus medíocres colegas e infestada de gente pernóstica que se dizia cult para cheirar cocaína e trepar uns com os outros enquanto eu me enrodilhava no sofá sem saber quem eu era, ou o que eu era.


            Deveria ser miseravelmente banal, não entendia estes rebuscados encontros de prazer, não falava pornografia em francês, não usava o banheiro de portas escancaradas.


            E Maura engordava. Tornou-se imensa, pelo menos era como eu a via, mas os homens na rua, continuavam se voltando para olhá-la. Isso ainda me gratificava. O sacrifício não era em vão e eu tinha Maura.


            Não muito lentamente o sexo acabou, as unhas cresceram, os cabelos caíram mais rápido e voltei a ser calado e distante. Eu tivera Sophia, virou obsessão saber onde ela se escondera. Comprei todos os presentes caros e finos que eu imaginava que a agradassem, os jogava num canto até sair com as joias penduradas nas orelhas e nos dedos para lugares e reuniões onde eu não era admitido.


            À noite eu sonhava com a Maura sentada na mesa do restaurante me dizendo como eu era simpático e quanto queria estar comigo. Deixei que esses sonhos me sustentassem até que se tornaram pesadelos. Ela estendia os braços sobre a mesa, tirava nacos de minha carne e me engolia enquanto um fio de sangue escorria do canto dos lábios.


            Em algum lugar minha culpa deveria estar me espiando e precisava acha-la, me ajoelhar e pedir perdão. Então Maura voltaria para mim com seu riso cheirando a folhas de limoeiro.


            A cama está vazia nesta manhã chuvosa, a chuva bate na vidraça como lágrimas caindo nos óculos. Procurei Maura por tudo, quem sabe a vontade de me trazer café retornara e ela estava na cozinha preparando as torradas do jeito que gosto? Quem sabe escovando os dentes? Quem sabe lendo na sala? Quem sabe? Quem sabe onde ela está?


            A porta do cofre onde guardava as joias estava aberta e ele era uma boca de lobo vazia e escura. Os armários estavam pelados, as sapateiras descalças e eu... Eu estava à poucos centímetros da loucura.


            Fui à sacada sentindo o peito respirando como sempre, naquele mesmo ritmo que não podia mudar apenas permitir. Olhei para baixo e ainda pude ver o carro, último presente que dera à Maura, dobrando a esquina.


            Mudei de emprego, de cidade, procurei a mais obscura que pudesse me engolir e sumi de mim mesmo. Não via televisão, não lia jornais, comia feijão com arroz e um naco de carne sem gosto num boteco qualquer que me obrigava a viver.


            Foi sem querer, foi um relance que me fisgou. No jornaleiro, um periódico aberto puxou meus olhos. Lá estava ela, linda, grande, a cabeleiras lustrosa refletindo sol de piscina. Na cadeira ao lado um homenzinho ridículo, meio careca, meio gordo, de idade a meio, sorria feito um boi de presépio.


Vana Comissoli

sábado, 17 de novembro de 2012

Davi e Jônatas (Fernando Bastos)

 

Israel era governado pelo rei Saul, mas ele fizera o que era mal aos olhos do Senhor, de modo que o profeta Samuel fora chamado para escolher um substituto. Em Belém, ele ungiu um jovem de bela aparência, de cabelos ruivos, chamado Davi. A partir desse dia, o garoto foi tomado pelo espírito de deus, que o acompanhava a todo instante.


Conhecendo a fama de bom músico, Saul mandou chamar Davi, o belemita, para perto dele. Todas as vezes que um espírito maligno se apoderava do rei, Davi tocava a harpa e Saul se acalmava, de maneira que o filho de Jessé ganhava cada vez mais pontos a seu favor, tornando-se escudeiro do rei. Quando Davi lutou contra o gigante Golias e o derrotou com uma simples funda, todos o temeram, pois sabiam que deus estava com ele. Como prêmio pelo ato de bravura, o rei o convidou para morar em seu palácio. Jônatas, filho de Saul, no mesmo instante em que viu Davi, apaixonou-se pelo belemita. Quando Davi saiu da reunião com o rei, Jônatas chamou-lhe num canto e disse, Davi, filho de Jessé, eu o amo como minha própria alma, façamos um pacto para nunca nos separarmos!


Após um carinhoso abraço, Jônatas presenteou Davi com seu manto, dando-lhe também armadura, espada, arco e cinto. Davi foi nomeado chefe dos guerreiros. A cada nova batalha crescia sua fama de grande líder, a ponto das israelitas cantarem, “Saul matou aos milhares, Davi, às dezenas de milhares”.  Aos poucos, a admiração do rei Saul pelo jovem belemita se transformava em ódio. O rei ardia em uma inveja que lhe corroía as entranhas, e logo começou a maquinar um plano para matar Davi.


Um dia, enquanto Davi tocava cítara para o rei, Saul arremessou duas vezes a lança contra ele, mas lépido que era, Davi saiu incólume do ataque. Saul pensou consigo mesmo, Esse filho de uma vaca é protegido do Senhor; então , que não seja a minha mão que o ferirá, mas a dos filisteus.


Saul mandou chamar Davi e lhe disse, Filho de Jessé, em troca de seu êxito nas batalhas, vou lhe dar por mulher minha filha mais velha, contanto que continue a ser um filho valoroso e destemido nas guerras do Senhor. Davi não quis aceitar a mão da filha do rei, julgando-se não merecedor de tão elevada honraria; essa foi a desculpa, mas o motivo da recusa foi que já estava ligado até a medula  ao amor de Jônatas. Entretanto, acabou aceitando depois de ouvir os rogos de Saul.


Como não tinha dote para pagar pelo casamento, Davi foi engenhosamente mandado à linha de frente na luta contra os filisteus, para, segundo imaginava o rei Saul, fosse morto em campo de batalha. No entanto, além de voltar vivo, Davi ainda trouxe duzentos prepúcios de soldados mortos em batalha. Era o dote que Saul pedira.


Conforme o trato, Mical foi entregue como mulher a Davi, mas a ira de Saul pelo tocador de cítara aumentava dia após dia. Numa reunião de emergência, em que chamara seus melhores generais e o filho Jônatas, o rei disse, Matem o belemita! Jônatas saiu correndo e avisou seu amado, Meu pai deseja sua morte. Fuja, querido, enquanto há tempo. Davi fugiu e foi morar em Ramá, junto ao profeta Samuel.


Numa noite, enquanto jantavam, o rei disse, Hoje é o segundo dia que Davi não aparece para cear conosco; onde ele está? Jônatas respondeu, Ele pediu-me para ir a Belém realizar um sacrifício em família e eu deixei. Mas o rei já suspeitava da relação proibida de ambos, e grande foi a explosão de fúria do monarca de Israel, atirando pratos e jarra de vinho contra o chão. Então, mirando a cara de Jônatas, gritou, Seu filho de uma cadela, todo o povo sabe que você escolheu Davi para sua vergonha e vergonha da sua mãe. Enquanto Davi estiver vivo, você não estará seguro, nem seu trono. Agora, parta e traga-me a cabeça dele.


Jônatas foi ao encontro do amado, e quando Davi avistou a figura do filho do rei, saiu de seu esconderijo e o beijou. Dependendo da versão bíblica, foi apenas um abraço, mas de qualquer modo, a essa altura, por mais que os defensores da tese de que o amor entre Davi e Jônatas era como de dois irmãos, se deixarmos os preconceitos tolos de lado, veremos que sim, havia entre eles um amor homoafetivo, do qual ninguém pode negar. Muitos, de fato, se mostram contrários às provas desse amor homossexual, pois pelos padrões da moral homofóbica da Bíblia, não pegaria bem que gerações mais tarde, o Messias cristão seria descendente de um gay, ou bissexual, como preferem alguns autores, o que, para os conservadores, isso abalaria profundamente a reputação do filho de deus.


Tempos depois, os filisteus atacaram Israel, e mataram Saul e seu filho Jônatas. Quando a notícia chegou aos ouvidos de Davi, ele compôs um cântico fúnebre em honra de Saul e Jônatas, o verdadeiro amor de sua vida. À noite, ao redor da fogueira, sob olhar dos companheiros de luta, o belo filho de Jessé se cobriu de cinzas, rasgou as vestes e, com a alma enlutada, cantou num brado dolorido,


“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; muito querido me eras! Maravilhoso me era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres.” (Segundo livro de Samuel 1,26).


 Fernando Bastos, cartunista, ilustrador e escritor.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Clown time: A hora do palhaço (Sônia Pillon)

As arquibancadas estavam lotadas.

Especialmente pelas crianças, que se agitavam,

olhos brilhantes e sorrisos de expectativas.

Estavam acompanhadas dos pais, irmãos e

coleguinhas de escola. Algumas seguravam balões

coloridos, outras pacotes de pipoca, que comiam

avidamente, com os olhos fixos no picadeiro.

E pouco importava se parte da grande lona do

circo estava remendada e com goteiras em alguns

pontos. Eles estavam ali para assistir o palhaço,

com sua roupa espalhafatosa e desajeitada, sua

maquiagem engraçada e suas tiradas ingênuas.

Mas não eram só os pequenos que se

encantavam com as palhaçadas desse artista

de tradição milenar. Os adultos, também! Eles

voltavam à infância, ao tempo em que andavam

descalços pelas ruas e jogavam ‘pelada’ no

campinho do bairro... “Bons tempos, aqueles!”,

pensavam, num instante de nostalgia... As

obrigações do dia a dia de gente grande os levou

para caminhos nem sempre coloridos, cinzentos,

muitas vezes...


José olha para o filho João e reconhece nele

mesmo brilho no olhar de quando era moleque,

quando e o circo chegava na cidade. Na época,

era um verdadeiro acontecimento! Hoje, em

muitos momentos, a vida lhe pareceu um circo

de horrores... Mas também lembrou de uma

frase do ator brasileiro especializado na arte

de fazer sorrir, Nico Serrano, de que ‎"a alegria

de palhaço não é ver o circo pegar fogo. É ver a

alegria incendiar o picadeiro”... Pura verdade!

A música começa a tocar e o espetáculo

está prestes a iniciar. “Respeitável público!

Senhores, senhoras, senhoritas, gente pequena

e gente grande! Temos a honra de apresentar o

palhaço ‘Tagarela’, o maior mímico do Brasil!

Palmas para ele!”... A criançada entra em delírio.

Todas as atenções se voltam para o Tagarela,

que fala pelas mãos, expressões do rosto e

pelos movimentos do corpo. As palhaçadas e

trapalhadas do Tagarela arrancam gargalhadas

da plateia, que se torce de tanto rir. Sucesso

absoluto!

A apresentação do palhaço chega ao fim

e o público o aplaude de pé. Ele se despede,

sem dar as costas para a plateia e se recolhe

ao fundo do palco. Agora Tagarela está no

camarim, senta em frente ao espelho e olha

para si mesmo. Tira o nariz de palhaço e

começa a remover a maquiagem. Estava feliz. O

entusiasmo do público compensava as tristezas,


a solidão, as dívidas acumuladas, a incerteza

do futuro... “Tudo vale a pena!”, disse para si

mesmo, enquanto uma lágrima escorre pelo seu

rosto...




Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC).

domingo, 11 de novembro de 2012

Perspectivas para uma segunda (Adriana Niétzkar)

- Você poderia cortar os galhos da sua árvore?
O vizinho se aproxima do outro até o limite do muro alto:
- Bom dia! o que disse?
- Sua árvore. As folhas dela estão sujando meu quintal.
O vizinho olha as britas através do muro alto, sufocando um pensamento


                                                                                               "quintal?!":


- Folhas... Ah sim, as flores do ipê!
O outro pensa,


                                                                                        "Flores?! mas a árvore está toda amarela..."
E por fim diz:





- Certo. Passei a tarde de ontem limpando meu quintal e hoje está tudo assim de novo, você poderia cortar o galho?




                                                          "Ou eu mesmo posso encostar uma escada"

- Sim. Posso, mas ainda assim o vento pode carregar algumas flores...
- E cortar a árvore?

                                                                                        " Cortar meu ipê? Vou plantar um pé de manga pra cheirar no seu quintal..."


- ahhh... bem, ela logo para de florescer e essas flores são lindas, não são?! passei a manhã admirando elas... eu as deixo sobre meu gramado, veja?!


o vizinho estica o pescoço a contragosto para ver o verde-amarelo do outro:
- Sim, estou vendo...


E lhe dá as costas em um último pensamento.


                                                                                      "Vizinhos"


- Tenha um bom dia!!!
Grita o outro antes de seguir para seu trabalho,


                                                                                       "vizinhos!"


e vai sorrindo para as flores sob seus pés no gramado e em sua calçada antes de caminhar no cimento friu.

                                                      " Que mal ha em ter um pouco de vida nessa cidade tao sem terrra e cor?!"


O vizinho despede-se com um braço meio levantado, sem olhar pra trás, evitando olhar sua brita, mas logo caminha sobre flores na calçada, mal humorado, as pressas para chegar ao lado limpo. Vê o varredor na outra esquina, quando voltar o serviço dele já terá desaparecido.


                                                                                    "Qual a dificuldade em se deixar a vida no campo?"


Alguns pássaros cantantes pousam sobre os galhos amarelos. A rua povoa-se com o frenesi de carros de todas as cores.


sábado, 10 de novembro de 2012

O medo que um livro ainda provoca (Ítalo Puccini)


Em 2009, lembro-me, foram retiradas mais de centenas de milhares de exemplares do livro “Aventuras Provisórias”, do escritor catarinense, radicado em Curitiba, Cristovão Tezza – o, à época, ganhador do maior prêmio de literatura do país, o Jabuti, com o romance “O filho eterno”. Isto devido ao chilique de alguns pais e professores alienados que argumentaram que o livro continha elementos “perigosos” para os adolescentes: alguns palavrões e referência a uma relação sexual. Como se na vida para além dos livros os adolescentes não estivessem em contato com esses “perigos”. Imagino que estes mesmos pais e professores tenham cortado as novelas televisivas de seus filhos e alunos também. Seria o mais coerente.


A falsa moralidade sofre com as diferenças.


Agora, 2012, deparamo-nos com a proibição do uso do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, nas escolas, devido a uma ação, junto ao MEC, do Instituto de Advocacia Racial (Iara), que vê nesta obra a presença de trechos preconceituosos à cor negra.


A literatura era, para Monteiro Lobato, um instrumento de transformação. Literatura, para o maior escritor infantojuvenil que o país já teve, era a própria vida. Foi a partir da vida à sua volta que Lobato construiu sua literatura – tanto a adulta quanto a infantil, esta última alcançando uma repercussão inigualável até os dias de hoje. O Monteiro Lobato homem pouco difere do Monteiro Lobato escritor. Crente de que a literatura representava a vida, em sua obra Lobato deixa claro esta convicção. Seus personagens retratam pessoas próximas, retratam pessoas que existem na vida real, retratam modos de viver e de pensar, retratam uma linguagem que reaproximou o leitor do texto literário, porque coloquial e nem por isso menos inteligente.


Era, o autor, um nacionalista que acreditava na independência do Brasil através da independência econômica, e não era preconceituoso racialmente, como alguns afirmam em função de Negrinha ser apresentada numa posição inferior em sua obra, ou de Dona Benta ser uma empregada doméstica de cor negra. Quando discorria sobre as figuras negras inferiorizadas, ele apenas apresentava uma leitura crítica de uma realidade social da época.


A literatura é tão importante para uma sociedade justamente por permitir aos seus leitores o direito à liberdade de interpretação de um texto, o aprendizado do respeito às diferenças. Porém, ela não tira do leitor aquilo que ele traz dentro de si – no caso, o preconceito. Assim como não existem escritas inocentes, da mesma forma não existem leituras inocentes. “Toda história é uma interpretação de histórias: nenhuma leitura é inocente”, já afirmara o crítico literário Alberto Manguel. Não há como se ler algo sem relacionar a outro algo, ou já lido, ou já ouvido, ou já presenciado. É dessa forma que a leitura, seja ela literária, seja de jornais, revistas, de imagens, ou de qualquer outro meio, enriquece aquele que dela faz uso, desde que devidamente contextualizadas. Ler um livro ajuda a ler o mundo.


O ato de ler pressupõe uma leitura não somente de textos, de palavras escritas. Não somente de imagens ou de sons. Mas sim uma leitura de nós mesmos e daqueles com quem convivemos. Ler é, também e principalmente, saber ler a si mesmo e ao outro com o qual se estabelece uma relação de viver. E cada leitor constrói uma história própria de suas leituras, assim como cada texto apresenta também sua história própria. É preciso saber que a vida não pulsa somente na televisão ou nos best-sellers. Ela está, também, nos livros que provocam o leitor, que propõem um revisitamento às próprias vivências. Ela pulsa da mesma forma nos livros de um Cristovão Tezza, de um Rubem Fonseca, de um Marçal Aquino, de um Dalton Trevisan, de um Monteiro Lobato. Privar alguém de conhecer a vida por este meio é lhe cercear a liberdade de interpretar o mundo no qual está inserido, de aprender com o livro, este elemento de subversão que ainda provoca medo naqueles que querem ter o mundo para si e aos seus olhos como se fosse uma bola de futebol da qual se é dono.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Mensagem (Thiago Daniel*)

Eu queria dizer a ela, mas o tempo é o bote de uma cobra peçonhenta.

Sempre fui um cara “na minha”, falo pouco, jogo pouco, e, em jogos de coração, sempre fui o mais cabação.

Ela sentava ao meu lado, na sala da 6ª série 02. Terceira cadeira.

Acho que ela nunca olhou para mim. Eu queria chamar atenção, juro, sempre quis, mas nunca tive sequer coragem. Não havia santo fazedor de olhares, que a fizesse voltar sua atenção a mim.

Dessa vez era diferente, questão de honra, estava convicto que agora ela me olharia. Precisava disso. Pensei ser discreto, com leves estalos de dedos, uma tossezinha falsa. Nada.

Bolei planos. Era preciso enviar minha mensagem de qualquer jeito. Pensei no Código Morse e comecei a bater compassadamente com minha caneta na carteira. Eu não sabia como funcionava tal código, então logo percebi que não surtiria efeito, e mesmo que eu soubesse tal mensagem, duvido muito que ela atentasse ao meu comunicado. Desisti.

Lembrei de outro velho código dos índios americanos, descoberto pela minha pessoa, assistindo filmes de faroeste com meu pai, os sinais de fumaça. Logo pensei em pedir para o professor licença para ir ao banheiro, assim procuraria algo pra colocar fogo do lado da janela da nossa sala. Ela olharia e pronto, nosso amor estaria a salvo. Logo desisti da ideia, primeiro porque o professor não me deixaria sair da sala em meio a uma prova, segundo que se alguém me visse colocando fogo, dentro da escola, em qualquer coisa que seja eu seria expulso.

Não havia mais tempo. Peguei um pedaço de papel e decidi escrever nele. Em velocidade desumana, pelo menos para mim que sempre escrevi muito lentamente, rabisquei o que eu tinha a dizer. Foram os cinco segundos mais intensos da minha vida. Lembrei das festas juninas, alguém sempre entregava os bilhetinhos de amor para o destinatário, mas agora era diferente, não havia esse tempo, não havia ninguém entre nós. Nem pombos correio. Amassei o bilhete e joguei aos pés dela torcendo para ela ver e catar o papel.

Tarde demais, o papel rolou entre os pés do professor. Estava de costas para mim e de frente para ela. Ele pegou a prova dela, ela se levantou e foi embora.

Estava acabado. Se ao menos eu fosse um tanto mais corajoso.

Ao fim da prova, peguei o bilhete debaixo da cadeira dela. Ele a faria olhar para mim pela primeira vez, talvez até arrancasse um sorriso de seu rosto. Um sorriso dela só para mim.

Abri o bilhete para ler uma última vez antes de jogar no lixo. Li, rasguei e o joguei fora, mas as palavras ecoariam na cabeça por um longo tempo. Aquelas que salvariam o meu amor.

“Guarda esse livro, o professor está te vendo colar”.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Arrumadinhas (Marcelo Lamas)

Sempre preferi as princesinhas. Aquelas que iam arrumadas para a escola, que combinavam o prendedor do cabelo com a estampa da blusa. Se entrar a Miss Brasil desarrumada e uma outra “normal”, mas ajeitadinha, eu só vejo a não titulada.


Quando eu tinha uns nove anos cometi um delito grave com uma guria dessas. Ela era uma índia muito linda. Eu fui lá e passei a mão nos glúteos dela. Acho que eu não era um tarado precoce. Devo ter imitado os líderes mais velhos da gangue. Ela e uma amiga foram até a minha casa e fizeram uma reclamação formal. Recebi punição severa. Eu tinha uma irmã, então eu deveria respeitar as outras meninas e por aí foi a reunião, que cancelou mesada, futebol, televisão e audição de música no carro. O problema é que a morena cresceu e virou a número um do colégio. Segundo os outros eu tinha chance com ela – será que ela preferia os caras de óculos? –. Mas eu, eternamente envergonhado, não tinha coragem de olhar para a guria.


Na faculdade de engenharia, bem escassa de mulheres, apareceram duas retardatárias no final do curso. Eu só enxergava uma. A outra não se ajeitava. Um colega me corrigia: “Cara, tu tá loco! Ela é gata. Olha o corpo dela!”. No dia da formatura eu vi que ele estava certo. A falsa-magra toda produzida deixou aquela que eu admirava no chão.


A minha namorada treina kickboxing, assiste ao canal Combate, gosta de futebol e anda de skate, mas outro dia ela me confidenciou que não consegue mais ficar sem esmalte, de tanto que eu falo da minha admiração pelas meninas vaidosas. Certa vez, em Buenos Aires, um argentino tentou ver as horas no relógio dela e curioso, perguntou-me se havia fuso entre nossos países. Aí eu percebi que o relógio dela estava parado. A pilha tinha terminado, mas ela levou-o porque combinava com a roupa. Recentemente, numa viagem de três dias que fizemos, ela levou cinco relógios pra garantir os looks.


Quando eu ventilei que escreveria estas passagens, ela disse que me mataria. Bem, supondo que ela “apenas” termine o relacionamento, se eu tiver que procurar outra namorada o perfil da pretendida já está bem definido. Desde sempre.


Por Marcelo Lamas
marcelolamas@globo.com

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Escritor Convidado: Marcelo Mirisola

Sítio Solidão


Um imbecil com lenço de pirata na cabeça e duas garotas assustadas dentro de um aquário em forma de peido congelado. O arremedo de Thomas Cavendish fazia sua performance e tentava impressionar os pedestres executando malabarismos com lascas de peixinhos coloridos, constrangimento total. O susto foi grande não exatamente por causa do pirata de butique, mas pela invasão propriamente dita. Agora não lembro, mas eu acho que o chaveiro da esquina também se escafedeu. Eis o que sucede. Despejaram seu Antenor e dona Amarílis da mercearia, os velhinhos que me apresentaram o queijo minas do Sítio Solidão. No lugar deles, uma temakeria.


Para mim, o velório começou quando passei pelo falecido Ponto Azul, no mesmo quarteirão, lá na Xavier da Silveira, esquina com Nossa Senhora de Copacabana. Muito barulho, e porradas atrás dos tapumes.


Obras, business. Essa praga – pior que gripe suína, porque não existe vacina pra babaquice – começou faz uns dez anos na av. Pedroso de Moraes, em São Paulo, e espalhou-se descontroladamente pelo país. O termo adequado (que me dá ânsias de vômito), perfeito para o estrago que vem causando, é “releitura”. O primeiro boteco “relido” foi o Pirajá. São meus conterrâneos paulistas a estuprar o Brasil, mais uma vez. Agora, a volúpia bandeirante corre solta pelas ruas do Rio de Janeiro, os filhotes de Fernão Dias também chegaram na Lapa e transformaram o reduto da malandragem carioca num playground para mauricinhos metrossexuais desfilarem suas sobrancelhas e peitorais depilados. Um futuro de banheiros impecavelmente limpos, e milhões de televisores de plasma ligados dia e noite. Galvão Bueno é o novo Tio Sam replicado de norte a sul, de leste a oeste recrutando você para ser um guerreiro no país da Brahma. Três dólares um chope. Inferno! Enfiaram a Vila Madalena dentro da Lapa! Os putos vendem tremoço a preço de trufas da floresta negra e o freguês, opa!, quero dizer, o “cliente” não pode sequer pedir para diminuir o volume da televisão.


Bem vindos ao mundo dos bares cariocas que imitam a arquitetura paulista de demolição, digo os bares da Vila Madalena, inspirados em – pasme! – bares cariocas da metade do século passado. E o pior, o monstrengo se reproduz e pode se transformar em temakerias, gnomerias, pizzas de chocolate com borda recheada de esperma ou o diabo a quatro que o valha… porque nesses lugares nada de original acontece, aliás, desacontece: num lugar onde o chope custa 3 dólares, chiclete não se mistura com banana. O Haiti é aqui. E a Tóquio mais infantilizada também.


Voltando a Copacabana.


Há pouco tempo, aquele quarteirão do cine Roxy era memória latente dos anos que eu e Cacá vivíamos felizes. Eu passava por lá, chutava tampinhas e entrava em suspensão. Um pouco por causa do João Antonio. Outro tanto porque era assim mesmo, alegria de graça. Os falecidos Ponto Azul e a mercearia de seu Antenor e dona Amarílis eram extensão da nossa felicidade, quando éramos Ginger & Fred antes da decadência e fingíamos que a cidade não turvaria. Ela me esperando no hall do prédio, amiga do zelador boiola. Eu, recém-chegado de um pôr do sol entre os postos 5 e 6, trazia areia nas canelas e a lembrança das mulatas grudadas na testa. Era nossa rotina. Cacá adivinhava minhas falcatruas, e eu a amava porque ela possuía os ais e os cais naquele olhar que primeiro me fuzilava para logo em seguida me perdoar de todos os pores de sóis desse mundo.


Rio de Janeiro, 2005, 2006. Vivíamos encantados. Todo final de tarde eu transformava a vida dela num inferno. Ela foi a primeira mulher da minha vida, digo mulher de verdade, e a partir de uma brecha na janela eu fingia que enxergava o Redentor e ela me achava um babaca, talvez por isso mesmo nossas tristezas e felicidades eram mais belas, como se Vinicius de Moraes nos abençoasse lá de Aruanda, no céu dos Orixás apaixonados.


Não me conformo. Meu sítio solidão virou temakeria. E agora tenho medo de atravessar a Bolívar e não mais encontrar o pudim de leite gigante no Madelon, nem o espanhol carrancudo que recusava cheques de outras praças e fazia questão de ignorar nossa felicidade. Tudo isso num raio de duzentos metros.


Aí nos separamos e eu fui morar no Grajaú. Claro, levei o Sítio Solidão comigo. E evitava Copacabana para conservar o amor num canto distraído da memória. Engraçado, as pessoas costumam ter déjà vu instantâneos. Eu não, lá na zona norte, por conta da minha implicância com flashs e insights, amarguei um ano de “déjà vus” intermitentes longe do nosso quarteirão encantado que incluía, além do meu Redentor desacreditado, o Panamá, um boteco genial na Domingos Ferreira. Onde o simpático Rogério, dono do pedaço de 30m², praguejava contra os direitos humanos e defendia a pena de morte enquanto eu – até aonde meu sotaque paulistano permitia – defendia as putinhas do calçadão, os ovos mal passados e pedia outra dose de uma bagaceira clandestina importada de Barra do Piraí. Atravessando a rua, bem na frente do Panamá, o melhor quibe do Brasil.


Antes de continuar, quero jurar – pelo Deus que Saramago vai ter que engolir – que essa não é uma crônica gastronômica; se vocês tiverem oportunidade não deixem de experimentar o quibe do Istambul: façam isso antes de o estabelecimento virar uma temakeria. Além do quibe, o Istambul tem história. Foi nesse mesmo árabe que, há seis anos, algumas lágrimas molharam meu rosto gordo na frente de uma garota sem coração. Ato contínuo ela me deu um pé na bunda, porque Deus existe somente para que os masoquistas, os trouxas e os comunistas possam amar: motivo mais do que plausível para se acreditar Nele e no Marquês de Sade, eu acho.


Um homem não chora todo dia na frente de uma mulher. Aliás, não era uma mulher e foi a primeira e a única vez que isso aconteceu na minha vida, e a idiota não entendeu nada. Também, no Istambul, tem um kafta de carneiro delicioso que pode vir acompanhado de arroz marroquino e babaganuch. Tudo perfeito, desde que a Cacá não fique sabendo dessa história das lágrimas: ela é muito ciumenta e nunca é demais lembrar que, segundo suas queixas, era eu o responsável por transformar a vida dela “num inferno”.


Ah, Cacá, não briga comigo.


Miguel me disse que você arrumou um negão depois que nos deixamos, eu compreendo. Se arrumasse um japonês aí eu começaria a duvidar do nosso amor, que se prolongava (uso a palavra propositadamente) até o forte de Copacabana, e passava necessariamente pela extinta boate Help, ah meu Deus, a Help foi o princípio do fim.


Eu sabia disso, eles começam destruindo os puteiros, e você escreve crônicas morais e cívicas, pede providências e os homens de bem acham que não têm nada com isso, depois confundem o narrador com o autor, cobram três dólares num chope e você paga, em seguida eles quebram o Ponto Azul e tudo bem, né? Até a hora que esses escrotos põem os velhinhos da mercearia para correr, invadem sua nostalgia e o expulsam de sua solidão.


Hoje, depois de ser despejado do Sítio Solidão, tenho vergonha da própria. Digo, da minha ex-solidão. Vergonha de andar pelas ruas de Copacabana. Tenho medo de não encontrar nossa tristeza, que era mais bela mesmo depois de a carta do Toquinho ter sido extraviada em 1974, nunca mais Vinícius nem Elizete para cantar as dores do amor demais. Que porra é uma temakeria, pra que é que serve essa merda?


Lá em Buenos Aires não é assim. Meu amigo Carlaccio garante que não. As pessoas – ele diz – não precisam se envergonhar de serem tristes e de andarem sozinhas pelas calles. Ele me garantiu que as crianças não freqüentam bares e as assombrações – isso é sensacional – ficam por conta dos fantasmas que exercem o ofício com sobriedade e elegância. Os fantasmas de Buenos Aires são de verdade, diferentemente das cunhadas e dos vultos mexeriqueiros saídos das obsessões do Nelson Rodrigues, aqueles que me atazanavam no Grajaú.


Os sem-déjà vu invadiram, ocuparam e depredaram meu Sítio Solidão. Arrancaram postas da minha tristeza que agora… agora, meu caro Vinícius, que o Chico trocou o samba pelos livros, é que nunca mais vai ter fim.


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Sobre o autor:

Marcelo Mirisola é considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário (os fofos).
É autor entre outros de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record).
Considerado por leitores como o grande mestre do conto da atualidade, injustiçado pelos jabutis da vida, mas que tem no seu fiel publico o maior reconhecimento que um escritor poderia querer.