sábado, 24 de dezembro de 2011

Menino Jesus Gaudério (Vana Comissoli)

Lembrava uma dessas tardes de inverno pampeano, o céu empedrado, sem um ventinho, sinal de geada braba. Mal dera o Ângelus e não se encontrava viv’alma na rua, frio de renguear cusco.


A china vinha embuchada de nove meses. Agarrava-se nas rédeas quase deitada sobre o cavalo mancarrão, único que conseguira exatamente por não valer nada. O caborteiro, responsável pela empreitada, sumira na perdição da vida, desconhecendo que a repontada trazia piá gaudério para esse mundão sem porteira.


Quando sentiu o primeiro garroteamento no baixo ventre, apertou os calcanhares na ilharga do animal que estucou o passo. Olhasse para todo o lado e não enxergaria nem uma taperita de consolo. Fez a curva da estrada já agarrada na reza para Nossa Senhora do Bom Parto, única fidalguia de que se podia valer.


Despontou, lá no longe, um bolicho guaipéca, desses perdidos no meio do nada. É o Deus dará e o bolicheiro. Acelerou a montada mais uma vez.


Sem querer, apertou os pés na ferroada da parição e o animal respondeu, o bicho bagual, embora macho, entendia dessas coisas de botar cria no mundo. Na frente do bolicho apeou-se devagar, a barriga era um escorrego só.


Apesar do frio, ou por isso, a indiada estava firme na canha do fim-de-dia. A rapariga, embora china embuchada, era bonitaça. A homarada se virou para especular, enquanto ela perguntava ao dono do bochinche onde podia encontrar pousada que o piá estava querendo olhar a querência pelo lado de fora.


O bagual coçou a cabeça dizendo que não tinha acomodação, mas a umas quadras dali ficava a Estância da Ramada, gente boa que só ela, haviam de lhe dar guarida. “Acha que aguenta o piazito até lá?”


Há de agüentar, assegurou a mãe, pois se não tem outro jeito, arreglado está.


Tocou-se a passito que os sacolejos do cavalo lhe provocavam repuxos imediatos.


Apeou para abrir a porteira e segurou-se um pouco no moirão da cerca. A alameda que levava à fazenda era ladeada por tarumãs antigos, provocava medo aquele corredor escurecido pela galharia, mas impunha-se atravessá-lo. Se foi de manso, a segurar a barriga como se pudesse impedir o nascimento soflagrante.


Não chegara à casa grande e já o capataz vinha encontrá-la num zaino guapo. Marilena foi pedindo pousada, explicando o parto eminente e mostrando o rocim em que vinha.


− Minha dona, bem que lhe queria fazer os préstimos, mas nem o patrão, nem a patroa estão na moradia, foram para cidade passar o Natal com os filhos. – Esclareceu o homem.


Abombada, não se agüentando mais, a chinoca se desacorçoou, grossas lágrimas rolaram enquanto puxava as rédeas a retomar o trilho por donde viera.


Mais três quilômetros e tu encontrarás a Estância do Caverá, te dão guarida. Ouviu, nas costas, a indicação.


Tocou a montaria na precisão, já ia tironeada das idéias, era chão a não se acabar nessa emergência. O frio entrava pelo poncho, a gelar-lhe os ossos. Era breu, o céu e o suspiro da noite molhava-lhe os cabelos. Nossa Senhora do Bom Parto, me dá uma boa hora, pedia, desesperada, uma taperita qualquer onde eu possa apear de vez, uma alma que não seja maleva prá recolher meu rebento.


De longe, enxergou as luzes e a esperança voltou a seu coração. Ai, que me emendo, minha Nossa Senhora, saio da vida, crio raiz e amagava em cima do pingo como se isso o adiantasse.


As luzes vinham do galpão de onde desencantava um som de acordeona bonito de se ouvir, difícil de prestar atenção nesse momento. A casa tinha todas as janelas fechadas, alguns fiapos de luzeiro escapavam das venezianas. Escolheu o galpão para apresentar-se.


− Buenas, estou procurando asilo, para mim e para cria que já está apontando.


O chiru tirou devagar o pito da boca, empurrou para traz o chapéu, largou a acordeona encastada num tripé brilhoso de uso. Era certo que esses movimentos, muito lentos, lhe permitiam avaliar a chinoca e pensar numa resposta.


A mulher vestia uma chita muito da molambenta, umas botas masculinas maiores do que os pés que guarneciam e o poncho estava esticado pelo tamanho da barriga. Era china, se via de longe.


− Cuê-pucha! Como que vem embarrigada desse jeito!? Há de gunir um pocado, minha prenda.


− Ai, senhor, não havia maneira de ficar naqueles pagos, a dona do arranchado que eu servia, não fica com piá guaxo, entrega tudo para o padre. Sou china por percisão, apertei a cincha o quanto deu para não mostrar a cria. Solita passei na treva da espera, depois não deu mais. Não havia recau que segurasse o guri. Dei com os costados na rua. Eu fiz por gosto, pelo homem, vou parir e vou criar. Me ajude, senhor, só um canto para largar o corpo, uma mão para aparar.


O chiru mediu o bucho, viu a cria despontando como vaca no pasto, era haragano, mas não era jerivá. A dor do sangue do Rio Grande bateu nele e as peleias se insurgiram, pois que venha, se arresolveu.


− Pois comigo morocha não fica no desprotejo, assunto tu e a cria. Vou encilhar meu cavalo que o teu não serve nem para mais uma quadra. Está estropiado. E me chame José.


Pegou a china pelo braço para que apeasse. Chamou a peonada a arreglar pouso. Os gaúchos se olharam, entrecoçaram as pernas na bombacha solta e se puseram a serviço.


− Meu nome é Marilena, mas pode me chamar Maria como todo mundo faz.


Saíram montados no mesmo animal, passaram por detrás da casa grande esparramada no meio do terreiro e perderam-se na noite do campo através do assobio do vento nesses dezembros que às vezes assolam o Rio Grande. Depois de meia hora, já em pleno pasto, avistaram uma choupana onde os homens já tinham alumiado o fogo. Apearam.


José prendeu o cavalo e abriu a porta sem trinco. Lá dentro os peões aguardavam trovando. Tenho mulher pronta para dar cria, foi avisando José com cenho franzido, a mão no relho trançado que pendia ao lado do facão, a traíra presa na cinta. Os empregados, conhecedores da severidade do capataz, apertaram os ponchos ao corpo e postaram-se em guarda ao redor da casa coberta de quincha. Falavam baixo e não levantaram os olhos para assuntar a dona que se enfiava às pressas na salvação.


Amontoada e já afofada num canto uma porção de palha cheirando a mofo, esperava.


− Se ajeite moça que é por aqui mesmo o nascedouro. – Tirou o poncho e estendeu por cima da cama improvisada mais para bicho do que para gente.


Maria deitou-se gemendo, as pernas apertadas para segurar a cria e as dores agudas do parto em ferroadas.


− De buraco apertado não sai Bem-te-vi. Afrouxa dona. Minhas mãos são de vaqueano e nessa hora lhe hão de servir.


Viram-se os dois a forcejar para trazer ao mundo mais um filho de Deus.


O piá berrou estapiado no recavem.


−É gadelhudo o Chico, Maria, gadelhas negras como as suas. – José sorria, a sisudez de gaudério se perdendo diante do choro de recém-nascido. Com peito já incendiado falou mais para si mesmo:


− Pois não há de ver que é diferente de ver vaca e égua nascendo? É filho de gente.


Correu ao cavalo e trouxe um pala para enrolar o pimpão.


Maria segurou o filho, beijou-o enquanto colocava no seio a boca buscadeira.


Os homens à espera entraram, o choro fora o sinal da permissão, os chapéus rodando nas mãos duras. Agacharam-se olhando mãe e filho como quem olha santinho bento. Por trás, José fiscalizava os modos dos bagual.


Um se levantou e disse muito solene:


− O menino vai crescer, precisará de defesa. Dou meu punhal de empunhadura de prata. Muito lhe há de servir.


O segundo chirú não se fez de rogado, tirou a guaiaca e depositou diante de Maria:


− Dinheiro ele há de percisar, dou lugar para ter onde guardar.


O terceiro se levantou e meio envergonhado declarou:


− De valor nada tenho: nem punhal, nem guaiaca, mas colhi essas macelas que hão de perfumar. − Largou as flores douradas ainda com aroma da frescura da terra gaúcha, seu brio e suas lutas.


− Como há de se chamar o guri? Já basta que não tenha pai, nome há de ter. − Atreveu-se o primeiro.


− Tome tenência. − rugiu José.− Acha que sou algum alarife? Estou amansionado. É meu guri, para o que der e vier, trouxe o guri pro mundo, o filho é meu.


Maria olhou o homem, o filho e pensou na Virgem e na promessa que fizera no caminho.


− Pois se o pai se agradar se chamará Gesuíno.


Lá no céu, acima de tudo, a luzeira cintilou.


Vana Comissoli

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

FÉRIAS

Prezados leitores e "cooperados", quero agradecer o apoio constante recebido dos senhores, através das suas leituras, seus comentários e seus textos enviados e comunico que o blog entra em férias a partir dessa data voltando em meados de janeiro.


Deixo aqui meu agradecimento pela companhia constante dos leitores do blog, dos colaboradores e deixo também votos de felicidades nesse ano que vem chegando e um desejo de que no 2012 continuemos juntos a compartilhar esses textos de alta qualidade e os comentários precisos e preciosos.



Obrigado
e Boas Festas!


De vosso amigo Tiago.

domingo, 11 de dezembro de 2011

A Grande Enchente (Fernando Bastos)

Os filhos e filhas do casal original se uniram sexualmente entre si, bem como com estrangeiros que encontravam em suas andanças, na busca por alimento e sobrevivência. Um homem podia ter muitas mulheres, e a mulher, muitos homens. A monogamia levaria tempo para ser imposta. E o incesto ainda não era uma contravenção.


Com o aumento da população, grassava a onda de violência entre                                        os filhos da terra.  Foi necessária a implantação de leis, para conter as iniquidades e salvaguardar a paz e prosperidade.


Apesar dos esforços da classe sacerdotal, homens especiais que sabiam o que os deuses queriam, a desordem continuava a prosperar pelas hordas humanas. Javé, apenas mais um deus entre tantos, mas que acreditava ser o maior dentre todos, deliberou exterminar a vida na terra, pois andava aborrecido com certos comportamentos de seus filhos.


O diabo o interpelou, Ora, depois de tanto trabalho, decide matar seus filhos, assim, sem mais nem menos? Não eliminarei a todos, respondeu o Senhor, Preservarei a vida de um homem, o único justo e íntegro, que me honra com sacrifícios e orações. Quem é ele, perguntou Satã. Seu nome é Noé, respondeu o Todo Poderoso. Pouparei a vida dele, bem como a de seus familiares; todavia, o resto da Humanidade perecerá numa grande enchente, juntamente com tudo que respira sob o sol.


O diabo coçou o queixo e perguntou maliciosamente, E os bebês e as crianças inocentes, o que vai fazer delas? O Senhor pigarreou duas vezes, pensou um momento e disse, Morrerão pela culpa de seus pais. Vendo que não podia nada fazer para impedir tão horrível decisão, o diabo retirou-se pensando, Quem é mesmo o demônio nessa história?


Instruído pelo Altíssimo, Noé construiu um grande barco de madeira resinosa, untada com betume por dentro e por fora. Após dias de intenso e árduo trabalho, Noé entrou na arca, carregando com ele família, e casais de animais, macho e fêmea de quadrúpedes, répteis e aves, conforme solicitação do Senhor. Abasteceu o barco com as provisões necessárias, e aguardou pelos primeiros pingos de chuva. Obviamente que ouviu muitos gracejos dos vizinhos quando da construção da Arca. Um deles perguntou,Vai virar pescador, Noé? Está fugindo do quê, homem? Não poucos o chamaram de louco, porque não acreditavam que a enchente tomaria proporções tão gigantescas, quanto a que apregoava o construtor do barco.


E eis que os trovões ribombaram ensurdecedores. Os relâmpagos se desprendiam da abóbada celeste, feito flechas lançadas pelos arqueiros de um poderoso exército. O céu tornou-se acinzentado, e fortes ventos prenunciaram a tempestade.


As águas caíram dos céus ininterruptas por 40 dias e 40 noites, conforme havia sido anunciado. Um pandemônio se formou entre as hordas que permaneceram em terra, cada um procurava salvar o que lhe tinha de mais valor, tentando alcançar os lugares mais altos. Sob o violento temporal, as mães arrastavam as crianças menores pelos braços; outras traziam os bebês ao colo, que berravam sem parar. As grávidas corriam com dificuldade, segurando barrigas sacolejantes, protegendo em vão aqueles que jamais viriam a luz do sol. Os homens enxotavam as ovelhas e os bois para os montes mais próximos; os cães seguiam seus donos, com latidos ensandecidos. Uma velha decrépita foi deixada para trás, um homem de muletas tropeçou e ninguém veio para ajudá-lo a se reerguer. No fim da tarde, corpos humanos boiavam misturados a animais e galhos de árvores engolidos pela fúria das águas.


Entrementes, a grande nau singrava triunfante com os únicos sobreviventes do dilúvio. Tudo que havia sobre a terra ficara submerso. E a terra ficou nesse estado por cento e cinquenta dias. Um grande sopro desceu e afastou as águas. Já era possível vislumbrar os cumes das montanhas. Noé soltou uma pomba, que voou por algumas horas, e retornou ao barco, pois não havia local seco para pousar. Após sete dias, soltou-a novamente, e eis que a ave retorna trazendo uma folha de oliveira verde ao bico. O pequeno grupo humano refestelou-se com a boa nova; era sinal de que as águas haviam baixado. Noutra semana, soltaram a pomba mais uma vez e, encontrando lugar para pousar, não retornou mais.



Deus estava pensativo. O diabo o encontrou sentado sobre uma pedra plana, no monte Sinai, local que escolhia para meditar, e perguntou, O que pretende fazer agora? Vai deixar a raça humana em paz, e deixá-la aprender com os próprios erros ou vai castigá-la muitas vezes ainda? O Senhor respondeu, Nunca mais amaldiçoarei o gênero humano, pois os homens são maus desde a infância. O diabo provocou, Mas, quem os criou, não foi você? Sim, fui eu, disse Deus. Satã indagou ainda, Quer dizer que admite não ter feito um bom trabalho? Sim, concordou o Senhor, Não fiz um bom trabalho. Portanto, concluiu o demônio, há um único culpado nisso tudo, e não é o homem. Deus respondeu, Não me condene pelos erros humanos; quando os criei, dei-lhes o “livre arbítrio”, para decidirem entre o Bem e o Mal. Mas tanto eu e você, argumentou o capeta, sabíamos que o Homem tem tendência para o pecado, e esse livre arbítrio não funciona na prática, não passa de uma falácia. Se você dá liberdade a alguém para escolher entre amá-lo ou desprezá-lo, mas o castiga se ele decidir pela opção que não esperava dele, isso se chama coação, mas não liberdade de escolha. Na verdade, o ser humano é obrigado terminantemente a adorá-lo, sob ameaça de sofrimento eterno. Você me parece um marido ciumento que diz à esposa que ela pode sair com as amigas, mas se olhar para algum outro homem irá enchê-la de pancadas. Um pai que ama seu filho irá fazer de tudo para que o filho o ame, sem constrangimento e ameaças de uma possível punição. Você, Javé, que se acha deus, poderia copiar o exemplo.


O Magnânimo ficou vermelho de raiva; não esperava ser confrontado dessa maneira. Rodou nos calcanhares e desapareceu, deixando o diabo com um riso mordaz nos lábios. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Noturno soturno em Saturno (Pensando em Raul) (Tiago Nascimento)

É noite na metrópole silenciosa. Faz um calor saboroso, um leve banho-maria. Depois do novo Acordo Ortográfico, já nem lembro mais como se escreve…
São tantas coisas, o tempo é curto, a vida voa e vice-versa.
O ano já termina. Os alunos ainda não sabem produzir textos. Meus amigos de infância publicam mais um livro, esse sobre ser ou não moderno. Eu não sei mais o que eu sou, se geek, hippie, hipster ou old school. Mas estou casado, já sou pai de família, minha filha nasceu parece ainda ontem, mas foi há meses atrás...
Algumas pessoas podem morrer. Outras já estão morrendo. E tem uma centena de tempestades acontecendo agora ao redor do mundo. Tem um gato miando com fome em algum lugar perto daqui. Existem duas mil estrelas sendo visíveis à olho nu nesse dado momento em qualquer parte não nublada do céu. Deve existir alguma moça bonita esperando alguém ligar. Quem será? Queria não ter uma certeza agora…
Revi amigos, fui a encontros nada furtivos, felizmente ou infelizmente, devido ao caráter monogâmico da minha nova vida. Não que sinta falta, mas parece que o ano passou tão depressa que nem tive tempo de amarrar os cordões do meu sapato novo… É tudo novo, mas são velhos os amigos, são doces os novos velhos beijos e são intensos esses dias que sobrevivo por aqui.
Como Raul dizia, ou quem sabe eu mesmo inventei: “Quando os sinos dobram é por mim mesmo e disso eu sei muito bem”.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Futura Mente (Vana Comissoli)

- Apenas uma queda de pressão.
Sorri, afinal já tinha acontecido tantas vezes. De repente a cortina se fechava, as pernas bambeavam enquanto as glândulas sudoríferas bombeavam a todo suor.
Mas desta vez...

Uma floresta negra, A Floresta Negra! Quase na fronteira com a França. O cuco cucando relógio ao fundo, enquanto riscas de alemão corrigiam: Schwarzwald. Ok, que seja em sua língua mãe, tem direito, assim a floresta é mais negra.
As árvores, colunas góticas, furam o céu, onde céu nem se vê mais. As copas são grossas cortinas fechadas. Suas raízes existem em dois níveis que me tonteiam:
As que entram terra à dentro e posso acompanhar até perder o fôlego, sufocado pelo calor e os gazes vulcânicos. Aí fincam suas coifas famintas reproduzindo células e mais células até que eu não saiba mais de onde veio o quê. Não consigo entender como a fornalha da terra as alimenta em vez de matá-las inexoravelmente. Procuro a visão fervente e encontro o vazio.
As superficiais, dando aparente equilíbrio. Retorcidas, bulbosas, arroxeadas. Vez em quando explodindo hematomas-geiseres de sangue. É nessas que tropeço a cada passo. Caio, levanto e ando em círculos até criar uma trilha de alívio. O alívio vem do fato que pisoteio tanto o mesmo lugar que acabo me acostumando e não me assusto mais.
Nesta floresta é sempre noite. Explodem fogos fátuos violentando o escuro para alumiar buracos, troncos vencidos, tocas de susto. Restam luminescências que previnem meus tropeços. Há corujas também, de tempos em tempos ouço seus pios. Dizem que é sabedoria, em mim provocam arrepios.
O lugar é conhecido por ser de mau agouro, sombrio e misterioso. Muitas lendas e histórias macabras são creditadas a esta floresta. Vejo os fantasmas arrastando os lençóis em lúgubres uivos rosnados.
Ando por aqui procurando amoras para fazer uma torta que nem conheço, mas sinto o doce na boca. As silvestres são as melhores, tem o sabor de nossas mãos com um pouco de sangue onde espinhos vociferaram. É meu desafio, transformar o pavor escondido na floresta numa bela torta que comerei de garfo e faca e beberei, em homenagem a mim, um cálice de fino champanhe rosado.
Os caminhos se tornam mais intrincados. O chão é instável e pedregoso, não consigo ter certeza de onde e no que piso. Às vezes cheira à flores silvestres e outras, improváveis, criadas em finas estufas. Ainda outras, um odor nauseabundo de fossa servida, putrefação. Talvez haja um pântano nas proximidades.
Mistérios sonâmbulos que me parecem familiares apesar do medo que sinto em revelá-los.
Por momentos um resquício de raio solar corta o emaranhado das copas e penetra na escuridão. Por que não o sigo voltando para o agasalho de minha casa? A torta será tão importante assim? Se não tiver a receita ficará algo intragável. Não lembro se sei os ingredientes toso e muito menos o modo de fazer.
A coruja pia, seu soar se decifra em urgências de ficar, minha casa está desabando, de qualquer modo choverá em mim. Ficarei por aqui, de alguma forma esta floresta tenebrosa me seduz e me chama.
Eu não tinha sono, mas também não sabia há quanto tempo caminhava. Podia ser um dia, uma hora ou apenas um minuto. Talvez devesse descansar. Talvez devesse tentar qualquer coisa que me fizesse parar.
Procurei algum canto protegido para deitar-me. Foi quando ouvi o rugido. Estremeci. Dentro da floresta houve agitação de pássaros, corridas de animais menores, percebi que algo se aproximava e vinha com destino bem decidido: eu. É minha hora, pensei, servirei de pasto às feras.
Imediatamente meus sentidos reagiram, não queria saber de Tanatos na minha cola.
O monstro apavorante e armado de estranha espada apareceu entre as árvores e arrepiei. Lutaria por minha vida. Imediatamente prostrei-me. Não teria forças, ele era grande demais, cruel demais.
Quando estava sobre mim, a bocarra aberta, enxerguei seus olhos de horror e os reconheci. Eram meus olhos. Estarrecido e abandonando a defesa, examinei: o monstro era eu transformado, tinha muito menos anos, muito menos resistência, mas era eu. Como poderia comer a mim mesmo?
Ele atacou, me esquivei e lutamos por tempo infindável. A cada estocada que me atingia eu ficava mais fraco, recolocava a arma em sua mão para que voltasse a me ferir.. Meu corpo se reduzia a quase nada e eu pensava o mesmo que o monstro pensava: destruir... destruir...
Destruir? Só havia eu para ser destruído! Estava ordenando que destruísse a mim mesmo? A cabeça começou a rodar, a pressão caiu. Essa minha pressão... Cai quando mais preciso dela.
Brilharam vaga-lumes, fiquei sabendo que a noite chegara. Sua luz era um quase nada em meio à escuridão, mas me deram um alento. Faziam vôos incríveis sobre mim e pousavam em meu corpo. Tinham mensagens de seres mágicos, deduzi, ao pousarem no monstro ele se encolheu... Encolheu. Quando vi não passava de um menininho chorão que me despertou muita pena. Tão indefeso... A seu lado uma fantasia inflável de monstro esvaziava mostrando sua insignificância.
Respirei aliviado, tinha certeza que este monstro não mais me ameaçaria. Nem monstro era! Teria sido criado por mim? Isso não me pareceu importante. Estava acabado e resolvi continuar procurando as amoras. De dia ou de noite, aqui isso também não importava e estava decidido a fazer minha torta especial
Atravessei as árvores caminhando a esmo e vi ao longe uma luzinha. Então existia mesmo uma casa de bruxa na floresta? Não me deixaria enganar. Que fosse feita de confeitos! Bem sabia que a proprietária não era nada doce.
A senhora estava à porta quando me aproximei. O aroma de seus cabelos chegou a mim antes que pudesse ver seu nariz torto, tinha certeza que era torto, pontudo e com verruga. Na certa tirara o chapéu preto e cônico. Era um odor suave carregado de lembranças, tinha cheiro de bebê sendo amamentado. Isso me desconsertou, não estava preparado para este tipo de engodo. Aproximei-me.
Minha mãe sorriu para mim e me convidou a sentar:
- Deves estar cansado, meu filho, vem, estava te esperando.
Minha santa mãezinha morando neste lugar?
Em seguida enxerguei seu relho e corria atrás de mim me chamando de malandro, espirocado e outros nomes que pensei ter esquecido. Deixei que me alcançasse e me batesse até minhas costas não aguentarem mais e o sangue escorrer, pedaços de carne machucada se desprendiam.
- Mamãe, mamãe, eu preciso tanto de ti! Não me bata, me pega no colo!
Parecia que isto lhe dava mais raiva e brabeza, recrudesciam as chibatadas.
De novo Tanatos espiou. De novo reagi. Por que estaria sempre escondido atrás dos seres da floresta? Não haveria de me levar. Não ainda.
Voltei para minha mãe com os braços cobrindo a cabeça para que seu relho pegasse em lugares mais resistentes, menos mortais. Seus olhos estavam extremamente tristes e ela não tinha relho algum, tinha cansaço e uma meninice estampada na face. Abraçou-me.
Todo o frio saiu de mim e pude, pela primeira vez, receber seu afago verdadeiro que curou imediatamente minhas feridas. Beijou-me dizendo:
- Meu filho, agora estás pronto para seguir. A floresta é imensa e muitos outros animais te assolarão, sempre existe mais um, mas olha para trás, pelo caminho por onde chegaste aqui.
Para minha surpresa havia ainda floresta, tinha desejado que não. Era uma floresta muito diferente, as árvores também subiam ao céu, porém as estrelas brilhavam lá no alto e a lua clareava tudo. As sombras não desenhavam galhos retorcidos como garras, mas estradas abertas, seguras.
Podia parar aqui e voltar, não me perderia. Sem amoras?
De dentro da casa de minha mãe saiu circunvolusionando um delicado cheiro de torta de amoras. Fiquei feliz, com certeza minha mãe me daria a delícia e eu não precisaria mais andar na floresta que ainda me amedrontava. Pedi na certeza da aquiescência.
- Não filho, esta torta é minha. Entrei na floresta e colhi as amoras, se eu te der ficarei sem nada e tu terás nada para comer. A fatia que te cabe já comeste. Tens que buscar tuas próprias amoras e fazer a tua torta.
Ia me irritar, bater o pé fazer manha, deixar o coração ficar ferido. Era este o costume, depois carregaria para sempre a imagem da rejeição. Antes que eu começasse ela sorriu e fez um gesto que mostrava quão seria inútil e como só a mim perturbaria.
Despedi-me, ela beijou-me dizendo como sempre estivera à minha espera e como sempre estaria. Podia voltar quando quisesse, cada um comeria sua torta com prazer e repartiríamos pedaços. Explicou-me que só quando temos nossa própria receita é que podemos partilhar algo realmente doce.
Segui ainda olhando para trás por um bom tempo. O próximo monstro foi menor e o outro muito estranho, não me lembrava ninguém, mas era menor ainda. Caminhei penetrando cada vez mais à floresta e ela não era tão ameaçadora apesar de continuar não a conhecendo.
Cheguei numa nova clareira, havia muitas, lá pela terceira que encontrei tive certeza disso. Nesta havia uma frondosa amoreira e em galhos ao meu alcance se penduravam as mais belas amoras que já vi.
Era hora de voltar. Finquei uma bandeira colorida no chão, sabia que estaria ali novamente e deveria marcar onde começaria o desconhecido que era enorme, mas não me punha medo. Os monstros, o desconhecido, as bruxas, os duendes malvados, todos poderiam caber no meu bolso se assim eu decidisse e a cada um que diminuísse estaria apto para conhecer a floresta, pelo menos um bom pedaço, até que encontrasse Tanatos sorrindo e não rosnando para mim.

- É a pressão, caiu outra vez!
Esses médicos são tão bobos! Mas ela não cairia mais, sabia que entrar na floresta não precisava ser de joelhos.

Vana Comissoli

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Sonho (Marcio Erino Ochner)

No descansar da noite,
Pensamento que me vigora a cabeça,
Tentativas ao acordar, sem sucesso...

Com olhar fixado à escuridão do campo de visão...
Foco na conjuntura superior,
Me levo a ao fruto da demência.

No estremo do corpo...
Dentro da alma,

Nela, uma força que me atingi, e me revigora...
Traz consigo um sabor iluminado.

domingo, 20 de novembro de 2011

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Por que as pessoas se casam? (Fernando Bastos)


No Best seller A cama na varanda, Regina Lins informa: “Numa pesquisa feita pelo IBGE com pessoas casadas, cerca de 80% dos entrevistados se declararam decepcionados com o casamento. Daí podermos estimar um percentual ainda maior se considerarmos a dificuldade de se aceitar e declarar a falência de algo em que tantas expectativas foram depositadas. Por que, então, as pessoas continuam querendo casar?” Em seguida ela tenta uma resposta: “Assim como na nossa cultura acredita-se que só é possível estar bem vivendo uma relação amorosa, o casamento por amor passou a ser sinônimo de felicidade e, por conseguinte, uma meta a ser alcançada por todos.”


Além do desejo em ser feliz, casa-se a meu ver, por outros fatores:


1 - As mulheres, em especial, casam para ter filhos. Como bem disse Nietzsche, “Para a mulher, o homem é um meio: o objetivo é sempre o filho.” De fato, a mulher em geral, casa já de olho na prole que virá. Raras são as mulheres que casariam com um homem que não desejasse ter um filho. Experimente dizer a uma mulher que não deseja filho e ela o abandonará no caminho para o altar. A mulher, mais do que o homem, acredita que um filho vai dar significado a sua vida; é a garantia de que, quando ficar velha, alguém ainda vai amá-la. Ficaríamos espantados se fizessem uma pesquisa apontando o número de homens que aceitou ter filhos por livre e espontânea pressão (da mulher). Para a mulher, um homem que não deseja filho é visto como egoísta, insensível e indesejável, em uma palavra, um pária da sociedade.


2 - A maioria das mulheres teme ficar para titias.


3 - Sair da casa dos pais e buscar “independência”.


4 - Ter maior controle sobre o companheiro. O homem (ou mulher) casado (a) é mais fácil de vigiar do que um namorado (a). Muitos homens e mulheres, conscientes ou não, tentam logo amarrar seu objeto de amor porque assim ele não vai mais poder se divertir e gastar seu dinheiro com outros que não seja com ele (ela). Essa atitude decorre do ciúme que faz com que as pessoas não desejem compartilhar a pessoa amada com o mundo. Muitos ciumentos simplesmente não suportam que seu par amoroso se divirta e seja feliz sem a sua presença; a felicidade do ser amado sem ele (ela) por perto seria sinal de que ele já não o (a) ama como antes.


5 - E ainda poderíamos pensar no fator segurança. Muitos casam visando alguém que vai lhes amparar para o resto da vida. De fato, poucos não se sentem angustiados com a possibilidade de solidão na velhice.


Se as pessoas desejam tanto casar, por que passado certo tempo, as brigas se tornam rotina e o desejo de separação fica estampado em seus rostos? O aumento de separações não ocorre exatamente porque o casamento seja mau; é o formato perverso, que aperta como uma camisa de força, que obriga exclusividade e impõe regras que é injusto. E geralmente, tudo que é obrigatório gera infelicidade. O casamento convencional é semelhante a uma prisão, da qual cada um é impedido de sair e respirar outro ar de vez em quando. O casamento ainda se assemelha a uma ilha, onde apenas o casal convive, e ambos são proibidos de nadar até as ilhas próximas. Podem vê-las, admirá-las, mas não podem chegar perto. Isso é tedioso, cruel, desumano.


Alguns poucos casais que conseguiram dominar o ciúme, estão se aventurando em formas alternativas de casamento, como morar em casas separadas, praticar o casamento aberto, suingue ou poliamor. Mas não vi pesquisas que comprovem que estes casais são mais felizes do que os tradicionais.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Seres Humanos (Tiago Nascimento)

Já nasce, Já chora, Já mama, Já olha
Já sorri, engatinha, Já grunhe, balbucia
Já anda, Já morde, Já fala, Já corre
Já brinca, De bola, Já brinca, Lá fora
Já sabe mentir e amor sentir.

Já estuda, Já aprende
Já lê, escreve E entende
Já telespecta, Já namora
Mas o que gosta mais: jogar bola.
Já sabe sentir amor, mas prefere mentir.

Já mente, Já enrola, Já foge Da escola
Já procura liberdade, Não corta o cabelo
Já ouve Rock E demora no chuveiro
Já fuma, Já bebe E palavrões Escreve
Já se alista E trabalha E como adulto Fala.
Se sente amor, não sabe fingir.

Já namora, Se casa E quer Casa
Já trabalha Na fábrica E acha a vida: Muito lógica
Já é pai, Já educa, Se estressa, Machuca
É duro, É forte, Tem medo Da morte
Já comprou Um carro E mudou De trabalho
Já briga Com a esposa, E bebe -Que coisa!
Já casa Os filhos E anda Nos trilhos.
Já se aposenta Já para E nos “findis” Embaralha
Já reclama Da política, Sente medo De polícia
Ainda sabe mentir, mas prefere não mais iludir... ninguém.

Já tem riffs De nostalgia, É avô, Sofre de embolia
Já de muitos males Outros adoece
Já logo porém Reestabelece-se

Só observa A vida E manera A bebida
Já usa Peruca E caduca -Velho biruta!
Já adoece, Já morre, E no céu a Divindade o acolhe.
Já não pode fingir nem tampouco amor sentir.

Já conheceu Deus e pediu pra voltar
Pros seus Pro lado de cá.

Então nasce outra vez E chora de novo
Já mama outra vez, Já olha de novo
Já sorri outra vez, Já engatinha de novo
Já grunhe outra vez, Já balbucia de novo
Já anda outra vez, Já morde de novo
Já fala outra vez, Já corre de novo
Já brinca outra vez, De bola, de novo
Já brinca outra vez, Lá fora de novo
Já sabe mentir e amor sentir mais uma vez.

Já estuda outra vez E aprende de novo
Já lê, escreve outra vez E entende de novo
Já telespecta outra vez Já namora de novo
Mas ainda gosta mais De jogar bola... no play 2.
Já sabe sentir amor, mas prefere mentir mais uma vez.

Já mente de novo E enrola outra vez
Já foge de novo, Da escola outra vez
Já procura liberdade de novo, Não corta o cabelo outra vez
Mas não existem bons Rocks dessa vez...
Ainda se demora no chuveiro outra vez
Fuma maconha agora, E bebe outra vez
E palavrões novamente Escreve outra vez
Já se alista de novo E trabalha outra vez
E como adulto de novo Fala outra vez.
Novamente se estiver a sentir amor, não saberá fingir.

Já namora novamente, Já casa outra vez
E quer como sempre: Casa outra vez
Já trabalha novamente, Noutra fábrica dessa vez
E acha a vida novamente Muito lógica outra vez
Já é pai de novo, Já educa outra vez
Se estressa como sempre, Machucando os seus
E é duro novamente Sendo forte outra vez
Tem medo somente De morrer sem poder
Comprar novamente Um carro. Que belez...a.
Já mudou novamente De emprego outra vez
E briga de novo Com a esposa e as outras três
E bebe novamente - Que coisa! Outra vez?
Já vai casar novamente outros filhos dessa vez
E anda sorridente Nos trilhos outra vez
Já se aposenta novamente Parando aos 53
E nos feriados geralmente Joga damas ou xadrez
Já reclama novamente: De política, mais uma vez
E seu medo premente: Ficar demente de vez
Continua ainda sabendo mentir, mas prefere não iludir... ninguém.

Sofre crises de choro Por ser idoso outra vez
Então de novo vira avô E novos netos amenizam a viuvez
De muitos males novamente Outras vezes adoece
Já logo, porém, de novo, Tudo passa, se reestabelece.
Já usa mais de uma vez Pílulas azuis pro dormente
E caduca de vez. - Velho biruta! E indecente.
Não adoece de novo Mas morre outra vez
Pro túmulo vai seu corpo Mas sua alma, meu Deus!

Já não nasce outra vez
Nem chora, mama, olha ou sorri
Não engatinha, não morde
Não fala ou corre
Não brinca de bola ou re-brinca lá fora.
Não soube viver, melhor nem renascer.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Ao Mestre, com carinho (Vana Comissoli)

“Um conto é um corte na vida. O que houve antes, ou virá depois não importa. A vida seguirá, mas aquele segmento será a polarização imutável trazida pelo antes e deslizando para o depois. Estímulo e retorno. Apenas isso e isso é muito.
O conto é como a fotografia: um instante capturado. Um reflexo do ímpeto.
A novela, como a pintura: leva tempo para se terminar o quadro, mas sempre serão duas dimensões.
O romance, como a escultura: olhamos de todos os ângulos e temos a figura completa. A quarta dimensão, pois ao físico e palpável é acrescentada a alma.”
Eu bebia as palavras de Jorge Medina há muito, ou toda a vida. Eu caminhara pelo deserto da busca cega e quase já desesperançava quando o conheci. Até então, escrever era um passatempo, um alívio das tensões. A forma como as palavras se agitariam ou se descansariam no papel não tinha significado algum até encontrá-la.
“Para que este corte, esta foto, tenha significado é necessário um conflito, sem conflito não há conto. Podemos criar uma rosca de açúcar ou um espinheiro agudo. A densidade terá o tom que escolhermos. Um conflito denso agregará mais valores e mais emoção.”
Eu desenhava mulheres nuas em meu caderno de notas e via que os olhos de Jorge volta e meia espiavam. Percebia uma nesga de sorriso? Não sei, mas quando eu lia meus contos temáticos sim, ele ria. Baixava a cabeça. Fechava os olhos, era um auditivo, e ria. Às vezes abertamente e isso me deliciava.
Era inevitável desenhar furiosamente, eu era auditiva ativa, meus olhos precisavam estar distraídos, ou melhor, minhas irrequietas mãos, para que eu captasse aquela fala mansa carregada de preciosidades que transformariam minha vida.

“Maria entrou no quarto cheia de culpa. Eu também era culpado.
(O ruído rápido e quase ininterrupto do teclado era música aos ouvidos de Jorge Medina e as idéias quebravam as paredes do quarto, pondo-o em vôo livre.)
Nem por um momento deixei de ver meu irmão entrando na igreja, os olhos prendendo as lágrimas. Era o dia de desposar Maria e mostrar seu troféu até que a morte os separasse. Aceitei ser padrinho e lá estava com a gravata me enforcando, minha cabeça girando em cima dos ombros, prestes a cair. O perfume da noiva me alcançava como se ela ainda estivesse em meus braços. Maria, deliciosa, suave, rosada, agitada, urgente na chorosa e lamurienta despedida da véspera.
(Jorge bateu o cigarro e abanou a fumaça quase palpável. Ficaria bom, este conto ficaria bom, pensou, com o velho sentimento de dominar o mundo, as pessoas, através das palavras.)

Na primeira aula mandou que nos apresentássemos como se fôssemos nosso colega da frente. Algum tempo depois entendi que estava reconhecendo nosso feeling. Para compor um personagem precisamos aprender a captar as pessoas à nossa volta, isso não significa inventar o que nos der na cabeça. É preciso manter a coerência mesmo que incoerente do personagem, seu perfil, seus pensamentos íntimos que não serão descritos, mas percebidos através de seus atos.
Adequar a linguagem aos acontecimentos.
Ação? Escreva numa linguagem rápida, quase sem tempo do leitor respirar, mas não o sufoque.
Dor? Use palavras trágicas, que chorem nas letras. Observe o som das vogais, seu crescente (também falam, ou desmaiam no decrescente).
Saudade? Estique as palavras, deixe que elas relembrem os momentos que se foram.
Ler onde não está escrito. O segredo do conto: o subliminar, magistralmente atingido por Machado de Assis, na Missa do Galo. Perseguido quase sangrentamente por todos os outros, estrela de difícil encontro.

“Maria encontrara meu irmão Osório como uma luz, uma salvação, natural que se encantasse e visse nele possibilidades de amor. Acho mesmo que o amava sinceramente. Afinal, o amor é correspondência e preenchimento de necessidades, apesar de deliciarmo-nos enfeitando-o com a aura que sobrou do romantismo.
O que ela não contava era com a paixão, a louca, súbita e irreverente paixão. Como gostamos de nos apaixonar! Vemos apenas a paixão. Enganamo-nos dizendo que é um rosto, um olhar... Não é nada disso, é uma emoção sedutora tiquetaqueando dentro de nós, acelerando o sangue, tirando o sono, tornando-nos escravos de um tilintar de voz.
Maria respirava paixão e tentava se livrar dessa droga casando-se com Osório, por amor plácido e rotineiro. Nada de frenesi. Dia de primavera sem o calor cáustico e excitante do verão.
Não podemos impedir o céu de chover, a noite de chegar, a planta de florescer, mesmo que isso, momentaneamente faça o sol adormecer, o dia descansar, a planta fenecer. Maria descobriria em meus braços.
Eu voltara para o casamento de meu meio irmão tão diferente de mim: calmo, de passos certos, colocando tijolo a tijolo as paredes de sua vida. Eu fora agraciado com um mestrado em Lisboa e, mesmo sem deixar de lado a importância de meu objetivo, resolvi que era uma oportunidade imperdível para virar do avesso a velha Europa. Livre de pai, mãe, casa, meias lavadas...
Entrei fundo nas tascas portuguesas onde aprendi a gostar de cerveja importada, terminar de quebrar minhas grades e rir com sonoridade retumbante. Retumbante era o que guardava de minha terra deitada em leito que eu renegava.
Sentávamo-nos descabelados e aéreos nos bares de Lisboa a debochar da cidade florida. Jovens insustentos a falar do que imaginávamos saber. A mesada, sempre escassa, chegando de todos os cantos do mundo para que pudéssemos divagar nas nuvens de nossos baseados, encontrando profundidade nas vidas de nossos escritores favoritos.
Citávamos Pessoa como se ele estivesse a sustentar Mário de Sá Carneiro na mesa ao lado e sentíamos paixão pelos corpos que Miguel Esteves Cardoso possuiu.
Lá assim era e eu aprendera a ser inconsequente, estrangeiro tudo pode.
Tanta diferença entre eu e Osório devia-se ao fato de termos mães diferentes. A minha era uma jovem senhora de bem com a vida e, a dele, uma chata, presa no anteontem. Nessa escolha a minha ganhou meu pai, que se tornou um cara menos sisudo e mais disposto a tomar um pilequinho nos churrascos familiares. Quem saiu perdendo ou ganhando? Não tenho a menor ideia, o fato é que éramos diferentes, cada um ganhou e perdeu um pouco. Infelizmente, os dois ganharam Maria.”
– Não posso esquecer a verossimilhança amanhã, na aula, devo reforçar este aspecto importante dos personagens. Se os alunos listarem todas as características, começando pelas físicas e terminando nas psíquicas, entenderão melhor.
A economia de palavras. Quantas já apaguei! Economia, limpeza: chô quês sujos e repetitivos, chô pronomes desnecessários, chô linguagem poética numa prosa. A menos que se deseje falar de flor, passarinho e borboleta. Eu quero isso? Preciso ter certeza dessa resposta.

– As qualidades físicas devem retratar as psíquicas.
Anotei a informação e criei mil personagens diferentes a partir daí. Antes de dormir os nomeava, via seus movimentos nos sonhos e meus cadernos se encheram de desenhos com fisionomias feitas a facão, mas expressando sentimentos cortantes.
Estou louca ou Jorge Medina me olha mais do que aos outros?
– Vamos imaginar dois personagens. Nossos personagens. Paulo e Márcia. Listem ações que se desenrolarão para um e para outro. Listem os verbos determinantes dessas ações, as dele e as dela, vejam a convergência. Não permitam que idéias se atravessem, mantenham o foco!
Como gostaria de ser estenógrafa! Não perder nem a respiração entre as palavras. Se eu seguisse à risca seria uma boa escritora? Nem me atrevia a pensar em romance.
– O conto é o gênero mais complexo de todos, não há espaço para vacilo, minúcias, palavras que não sejam absolutamente necessárias.
Mudei de idéia sobre tudo.

“Não foi intencional. Ela saía do banho e eu entrava. Meio nua? Não vi nada, só os olhos flamejantes que me examinaram. Ainda não tínhamos nos encontrado, embora minha vinda estivesse anunciada. Estava nos preparativos da cerimônia quando joguei as malas no quarto de hóspedes, furioso. Tinham dado o meu, o meu, para aquelazinha que aportara de paraquedas na minha casa.
Dois pontos, luz azul, arco voltaico: Maria e eu.
Depois aquela coisa besta de apresentação, jantar incômodo das pernas se tocando por acidente e os olhos irrequietos e prometedores. Eu a despia junto com a pele dos tomates, a comia no filé à parmegiana e lambia na sobremesa de sorvete.
Foi simples e sem culpa. Uma noite, que mal faria? Depois... Impossível para sempre. Não era o recado que meu corpo passava durante a marcha nupcial féretra.”

No dia seguinte a aula foi sobre neologismos. A capacidade de criar palavras, a sagacidade de colocá-las no texto e a profunda coragem de fazê-lo.
“O mestre neste campo minado foi João Guimarães Rosa. Levou suas obras ao instigante mundo, onde recria a língua e faz com que os leitores tentem decifrar, a todo o momento, os seus “achados” semânticos, morfológicos, e, até mesmo, sintáticos ou morfossintáticos, como se a literatura não fosse apenas algo sério, mas também algo criativo, artístico e misterioso.
E a literatura não é mesmo algo sério, é brincadeira do intelecto, liberdade de sentir, recriar a vida numa performance que nos deixe de queixo caído.”
Féretra, neologismo surreal criado na madrugada anterior e precisando de justificativa. Mereceu a aula. Féretro seria tão mais fácil! Para Jorge o fácil era difícil, o difícil vinha fácil para “compor a úmida trama” amorosa que mantinha com as palavras.

“Entrei na cozinha cantarolando, sou da paz de manhã, gosto do sol, ele esteja no céu ou não. Sabia que a lua-de-mel tinha sido adiada pelas cinzas do vulcão chileno que teimava em colocar uma sensação de fim-de-mundo. Apocalipse day.
Teria que parecer como sempre e fazer de conta que não tivera ouvidos de cão para captar ruídos que desejava meus e de Maria. O desgraçado quarto de hóspedes era no sótão e eu não ouvia nada naquela casa antiga de paredes camufladoras dos segredos de alcova.
Fiquei mudo. Pavor.
Estavam os quatro na cozinha. Meus pais com as pistolas tremendo nas mãos, apontando-me. A de minha mãe, com belo cabo de madrepérola, teimando em mirar o chão. Meu pai segurando com as duas mãos para esconder o tremor e Osório direto nos meio de meus olhos. O tiro seria imbatível.
Maria chorava balançando o corpo, a cara marcada por hematomas se ergueu ao meu bom-dia fingido.”

Jorge escrevia tramas tempestuosas e paixões escaldantes. Era a densidade, dizia ele, enquanto eu o copiava e punha ainda mais ardência. Excitaria sua curiosidade ao ponto de ebulição que a minha estava? Seus livros eram ambrosia que me açucarava.
Paixão, aquela mesma que Orlando sentira por Maria. Eu não queria amor algum! Queria Jorge e suas palavras mágicas. Queria pulsar como os personagens. Eu: Ana Karenina, Lady Godiva, Madame Bovari. É querer muito? É só literatura, me convencia.
Jorge escrevendo, Jorge falando, Jorge lendo, Jorge beijando, Jorge me chamando, Jorge, Orlando... Orlando, Jorge...

A busca alucinada de Jorge para chegar ao seu personagem, à sua Maria.
“Maria, a Louca. Pela Graça de Deus, Rainha de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Pela Graça de Deus, Rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhora da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc.
Lembranças, frases cortadas, até rir-se dos estratagemas criativos e concluir:
Nada disso! Pela graça de uma trepada sensacional, a maluca resolveu não fazer amor com o marido na noite de núpcias e, ainda por cima, apontou com todas as letras o infrator.”

Os temas, as formas, a linguagem... Aula a aula compondo a trama do que viria a ser eu.
“Sobre o tapete, ou duro piso, a gente
compõe de corpo a corpo a úmida trama.”
Drummond saberia que isto também é amor? Que pode haver paixão entre o escritor e a escrita? Que posso ter mil Jorges, ser bígama, fiel, santa e puta?
Hoje, na frente do teclado onde as palavras aparentemente surgem sem uma nesga sequer de meu mestre, eu o relembro e devo a ele mais um livro editado e a entrevista que me espera para falar sobre o conto. O conto que foi o fruto deste amor incondicional.

Final aberto? Final fechado?
Qual se adéqua mais ao tema proposto?
Vamos deixar assim, ainda não parei de escrever...

Vana Comissoli

Aquiescera inseto (Marcio Ochner)

De longas antenas cetáceas
Com desprezado pensamento...
Um artrópode de asas sem poder voar,
De três pares de patas sem poder caminhar
Sem graça até no nome.

Matéria com base característica,
[Uma interjeição].
Numa dobradiça, fecha-se a uma âncora,
Lança ao mar.

De intelecto inferiorizado e pesado sentimento,
Foram ao fundo,
Sem emoção ou excitação,
Cessa a pratica,
Asfixia-se.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Instantâneos (Marcelo Lamas)

Ainda guardo em uma caixa a carta que minha avó enviou-me de Porto Alegre, na qual ela agradecia pela recepção e estadia quando veio me visitar, pela primeira vez, em Jaraguá do Sul. No escrito, em português da década de 20 do século passado, ela encerrava dizendo que estava prestes a ir ao oftalmologista, pois ela “vivia aos tombos” com sua visão.
Dentro do envelope havia um bilhete dobrado ao meio, que eu só vi depois de ler a carta. Ali naquele bilhete ela já informava o resultado da consulta, pois antes de colocar a carta nos Correios, ela foi ao médico e, em tempo, despachou o diagnóstico pela caixa coletora amarela, que ficava junto a um orelhão:

“Marcelo fui ao médico.
Graças a Deus não vou precisar operar o olho.
Só enxergar é que não vou mais.
Fiquei feliz, pois do outro olho eu ainda enxergo muito bem.
Beijo desta que muito te estima.
Doralice Lamas”

Agora, neste século XXI, mais precisamente na semana passada, uma amiga recebeu um convite de um pretendente para ir a uma festa. Como toda mulher, ela resolveu contar para uma outra, por e-mail:

“Oi Lu,
Vou sair com o Pedro amanhã.
Vamos lá naquela festa.
Eu odeio aquele lugar, mas fazer o que né?
Ele me convidou...vou lá fazer uma social com ele.
Pior, acho que ele só me convidou porque na quinta-feira a entrada é de graça kkkk
Bjus.”

Na hora de enviar o e-mail a guria enganou-se e mandou para o Pedro.
Ela ficou desesperada, tentou cancelar várias vezes, mas não conseguiu.
Educado, o rapaz respondeu sugerindo outro lugar.
O mundo está mais instantâneo do que antes.


M
Marcelo Lamas, autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.
marcelolamas@globo.com

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Memórias de um professor aposentado (Fernando Bastos)

Certa vez, quando eu contava com meus cinquenta anos; lá se vão mais de duas décadas, e dava aula de Filosofia na Universidade F..., percebi que uma garota que sempre tivera participação ativa nas aulas, começara a faltar com frequência. Aqui vou chamá-la de Maria, para proteger sua identidade. Maria tinha 22 anos, e fui saber que estava depressiva e andava se entupindo de calmantes. A mãe a levara a um psiquiatra e ele prescreveu os devidos medicamentos. Naquele ano ela não voltou a estudar. Foi se tornando escrava dos remédios e não saía mais de casa. Nem banho tomava. Fiquei sabendo de tudo isso na festa de aniversário de uma amiga dela do curso que eu ministrava. Ela mesma me contou, quando me encontrou sozinho tomando meu uísque na varanda da casa. Era a primeira vez em um ano e meio que ela saía de casa. Estava irreconhecível, bem mais magra, uma palidez de papel na pele e com um olhar de zumbi. No entanto, conservava ainda aquela beleza jovial de uma personagem de um quadro de Botticelli. Foi levada à força pelas primas a tal festa. Para meu espanto, ao me ver, ela abriu um sorriso e me cumprimentou:
- Oi professor, como vai?
- Oi, guria, respondi, Que bom te ver. E tu, como vais?
Em uma hora de conversa ela me falou da sua infância, da rígida educação de base católica em casa, das múltiplas recomendações a se manter afastada dos garotos, que “só pensam em transar com as meninas”, do exagerado cuidado de seus pais para que não namorasse antes de se formar na faculdade. Com uma sinceridade invejável, Maria me contou que entrou em depressão porque não podia namorar, queria fazer sexo e os pais a cerceavam vinte e quatro horas por dia. Com vinte e dois anos, ainda era virgem! Disse a ela que ser virgem naquela idade não era comum, mas também não era nenhum fim do mundo. Que ela não devia se preocupar com isso, mas sim, com sua saúde e bem estar. Não foi difícil notar que todo o problema dela, sua apatia pela vida era em função da perda de liberdade, sobretudo pelo direito em extravasar sua sexualidade reprimida. Convidei-a para uma noite de amor, e, juro a vocês, não me surpreendi quando ela aceitou. Saímos à francesa, e fomos direto ao meu apartamento. Naqueles tempos eu era um coroa desejável, estava com o corpinho em dia, pegava onda na Joaquina ao lado de campeões, de forma que não fiz feio. Quando tiramos a roupa, fiz apenas um pedido. O quê, ela perguntou. Não terá penetração, respondi. Por quê, disse ela, esperando que seria desvirginada naquela noite. O senhor não me achou atraente, estou tão feia assim? Não é isso, respondi. E, por favor, não me chames de senhor. Está bem, disse ela com um sorriso meigo, desculpa. Tu és bela, eu disse, e sinto-me envaidecido por tua confiança em mim. Porém, o que tem de menos importante hoje é tu perderes a virgindade. E a beijei. Não dei tempo para ela falar. Beijei-a com centenas de beijos, desde os lindos pés até a as pontas dos cabelos. Ela chegou ao orgasmo pelo menos quatro vezes. Minha língua estava afiada aquela noite, e meus dedos habilidosos. Exausta, ela me agradeceu, Obrigada professor, nunca imaginei que sexo fosse tão bom. E ainda sou virgem! Abracei-a e disse, Não tenhas pressa. Quando te sentires pronta, aí sim será o momento. Na segunda-feira ela voltou ao curso. “Milagrosamente”, no dia seguinte ao nosso encontro, ela largou de vez os antidepressivos.


Fernando Bastos, cartunista e escritor

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Eles chegaram! (Sônia Pillon)

O dia mal tinha amanhecido, mas o pequeno vilarejo já estava acordado. Na feira livre, os vendedores já gritavam as pechinchas do dia, desde o peixe fresco até as verduras, legumes e frutas mais viçosas. Donas de casa de lenço na cabeça e sacolas de pano examinavam atentamente a qualidade dos produtos, comentando as ofertas umas com as outras.


De repente, um grupo imenso de pessoas adentra o vilarejo, numa espécie de invasão silenciosa. Homens e mulheres, velhos, jovens e crianças de cabelos negros e lisos e tez amorenada caminhavam de cabeça baixa, andar arrastado, mas contínuo. Eram indígenas, expulsos de suas terras pelos posseiros, mineradores capazes de matar ou morrer por uma pepita de ouro!... O sofrimento está estampado em seus rostos, assim como a desesperança no olhar. Muitos não conseguem segurar as lágrimas...


À medida em que se aproximam, uma onda de medo toma conta da população. Eles estão sujos, com roupas rasgadas, e há muito feridos entre a multidão de retirantes... Muitos os olhavam com repulsa. Ao descerem na cidade, uns poucos separam moedas para alimentar as crianças famintas, mas não há muito que possam comprar, tampouco leite...


Em poucos minutos eles se espalham pelo vilarejo, pela feira, pelos poucos restaurantes e padarias. Muitos sentam nas calçadas e choram copiosamente e falam em uma língua desconhecida, elevando as mãos aos céus, como se não entendessem o porquê de tudo aquilo...


Alguns comerciantes abrem suas portas, mas outros os espantam como cães sarnentos, lançam pragas... As mães imploram por comida para seus filhos, mas a população local como que some por encanto, correndo para suas casas, apavoradas, puxando os filhos pelas mãos... “Eles chegaram! Depressa, fechem as janelas e portas! Bando de vagabundos!”, vocifera uma velha aldeã, insensível à tragédia.


A jovem Maria, que chegou à vila para comprar legumes e chás, sente um aperto no peito ao ver tanto sofrimento. Lágrimas escorrem sem que ela se dê conta. De repente, ela vê um menino de uns cerca de quatro anos no colo de uma mãe aflita e pergunta o que aconteceu. “Mataram o meu homem! Mataram o meu homem! Homem branco acabou com aldeia, queimou tudo, até criança viva! Um horror!!! Não temos mais casa, nem comida, nem nada! O que vai ser da gente?!”, pergunta a índia, num português quase ininteligível.


Maria estendeu as mãos em solidariedade, e os levou para o chalé simples onde morava com os avós. Uma sopa quente, um banho e umas roupas limpas é tudo o que eles precisam agora, pensou. Eles ficaram por lá uns 15 dias, e depois a índia se foi com o filho, com um sorriso de agradecimento. Maria nunca mais os viu... Já se passaram mais de 30 anos, mas a imagem daquele dia terrível nunca mais saiu da sua memória...

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O Beijo (Tiago Nascimento)

Sozinho
parece tão grande o apartamento
me sinto abandonado pelo tempo
que teima em passar, sem parar.

Lembro
dos sonhos todos que sonhamos
coisas que juntos planejamos,
mas que ficaram para trás.

Agora
só a solidão me abre os braços
me acolhendo num abraço
do qual não consigo escapar.

Até sei
que a vida ainda continua,
mas sem a presença tua
falta vontade pra viver.

O beijo amargo do sisudo ceifeiro
me arrastará de corpo inteiro
até onde tu estás.

O contato frio desses lábios;
se existe um céu e um inferno
aonde pode me levar?

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Primavera (Márcio Erino Ochner)

Nas desbotantes folhas do ipê roxo...
dá-se a primavera...
...em seus secos galhos o companheiro inseparável...
...o cantarolante sabiá...
...que avisa o passear do tempo.


Tempo que grita ao vento... que de longe se vê...
...nele, uma estrada vazia...
...de insistente rumo ao oeste...
de pés enterrados na vermelhidão horizontal...
...pequenas formas coloridas que espargiam um cheiro agradável.


no trânsito, verdejantes moitas parecem ter mais vida,
insistentes, dividem espaço entre lenheiros desfolhados...
...disputando o sol... que nota-se mais pálido na primavera.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

URUBUSERVANDO (Vana Comissoli)

Uma sensação vaga, imprecisa, urubu adivinhando carniça pelo cheiro. Eu senti.
Ele era alto, moreno, de grandes e estarrecidos olhos negros. O cheiro de carniça estava soterrado sob um excitante Mont Blanc que devia custar quase, ou mais, do que um salário da plebe.
Eu sobrevoava os campos primaveris de minha fácil vida. Gostava de encantar, mais precisamente de seduzir, sem saber dos riscos servidos nos canapés de caviar com que me lambuzava nessa promessa de retornos jamais vindos.
Quando cheguei à festa o aroma me alcançou nos olhares famintos de minhas amigas, no ti ti ti que rapidamente foi confirmado ao enxergá-lo. Era ele, tive certeza. Vinha montado no cavalo branco e eu esperava seu beijo fingindo adormecida. Não era fingimento.
Envolvê-lo foi fácil, eu tinha todos os ingredientes necessários da receita de princesa. Flores, bombons, mimos... Princesas são tão bobas! Ouvem uma única melodia tocada em cravo secular onde a letra, canto-chão repete: Felizes para sempre...
Assim que pousei sobre ele a carniça exalou. Acontecia nas brincadeiras do amor. Amor, rosa, vermelha, cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... branco, uísque, vodka, caipirinha caipira de cachaça, cálice... cálice,,, cálice. Copos... copos... copos... “Pai, afaste de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue”.
No princípio culpei o vizinho que fedia e todos sabíamos, depois meu nariz osfrésico. Pulei para o alerta, deixei rastros de perfume de todos os tipos: reportagens, livros, avisos. Efeitos dos perfumes daninhos. Meu príncipe amava o odor afrodisíaco, hipnotizante, acostumara-se e não via mais a diferença, ou se a via, apaixonara-se por ele, acostumara os sentidos e se encharcava cada vez mais.
Por fim decidi que meu amor soberano o envolveria se eu o exercesse à exaustão. Desenvolvi aromas de carinho, entusiastas, chorosos, lamentosos, impediriam que ele se inebriasse do cheiro de desespero e infâmia.
Fomos deixando os duques e duquesas de lado, tinham começado a respirar fundo quando chegávamos, embora disfarçando, para logo em seguida passarem a usar máscaras protetoras descaradamente.
O príncipe já era quase um sapo disforme e coaxava noites a dentro transformando meu sono de pós prazer numa vigília de temor constante numa guerra ímpia e injusta como ouço no hino de minha terra.
Eu tinha que desistir. O urubu em mim crocitava não. Dizia que carniça tinha lá seu encanto, seu prazer. Quem sabe encontraria vida sob as carnes sanguinolentas, embaixo da aparência pútrida das olheiras. Quem sabe eu...
Não, por mais que ele me mostrasse as delícias de aspirar o odor branco das nuvens eu não podia, não conseguiria me habituar a ele.
Urubus comem carne morta, mas não apreciam se transformar em pasto de seus iguais. Exatamente para manterem a sua, linda e fresca ingerem a repugnante refeição. Eu fazia isso? Era isso que eu era? E a princesa, o castelo, o cavalo branco?
Eu voava, planava sobre tudo, além das nuvens e não me vinha coragem de abandonar a paisagem ruandense de 1994. Era a isso que assemelhava minha visão: facões cortando corpos, sonhos, planos. Cortando e estripando meu príncipe.
Os amigos dele tomaram o lugar daqueles que escolhem melhor seus perfumes e eu planava sobre eles também, cada vez mais alto e durante mais tempo, era a maneira de acreditar horizontes.
O príncipe tomou banho, sentou-se todo príncipe branco com o perfume nas mãos, acreditei em renascimento como uma entrega ao santo da devoção. Havia incenso queimando. Orei a ele que era meu tudo, meu deus particular:
- É tão importante? Mais importante que eu que te amo tanto? Te dou minha vida e meu ar? – Não mais chorosa, perguntei amassada, minha própria pele se desfazendo.
Ele jogou aquele olhar comprido e doloroso que sempre fisgava o perdão dentro de mim. Vi alguma coisa verde dentro dele, muito rápido e logo branqueou. Ronaldo abaixou a cabeça extremamente concentrado, fechou suas cortinas estendendo-me meu aviso de demissão e cheirou a primeira das cinco carreiras enfileiradas como soldados mercenários.

Vana Comissoli

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Castelo de areia (Sônia Pillon)

É inverno.
Chove e faz frio.
Tempestade.
Raios.
Trovão.
Dia que se faz noite.
Vento forte que sacode a aldeia.
Choro.
Castelo de areia desaba no chão.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

O menino que queria mudar o mundo (Tiago Nascimento)

Era um vez um meigo menino ladino
um menino pequeno de sorriso "facinho"
tinha um sonho, um belo sonho esse menino.

Queria mudar a ordem estabelecida,
mexer com o status quo da vida.
Era um sonho e tanto, imagina...

Mas o tempo passou, como sempre
e o menino mudou, ficou doente
adoeceu da doença maturidade
formou família, entrou pra faculdade.

E o sonho foi perdendo em detalhes,
foi sobrando nas listas de prioridades
e de tão ínfimo, o menino o perdeu.
A vida tal como é, outra vez a um rebelde venceu...


terça-feira, 13 de setembro de 2011

Em nome da Fé (Fernando Bastos)

Guerras e momentos de paz, ódio e amor, abandono e caridade fazem parte de nosso mundo orientado sobretudo por conceitos religiosos. Essa dicotomia que ora produz homens e mulheres santos, ora assassinos pode começar a se tornar compreensível se entendermos seus textos “sagrados”.

Vamos dirigir nosso olhar para os dois grandes livros, responsáveis por ditar regras de comportamento em mais da metade do planeta: a Bíblia e o Corão. Ambos trazem versos confortadores e amorosos. “Amai-vos uns aos outros” é um pedido cristão e a sura 4,36 (Corão) declara: “Tratai com benevolência vossos pais e parentes, os órfãos, os necessitados, o vizinho próximo, o vizinho estranho, o companheiro...”. É espantoso que duas religiões que sustentam esses versos de amor tenham sido causadoras de cruzadas, guerras santas, inquisições, e atos de terrorismo em nome da fé que seus devotos seguem.

Expandindo nosso olhar sobre as escrituras, veremos que nem só de amor e perdão nos “falam” aquelas páginas. A Bíblia traz em Deuteronômio 17,2 a sentença de morte para quem adora outro deus (quem tem outra religião). Em cima disso foi possível a Santa Inquisição, liderada pela Igreja, onde milhares foram mortos. O Corão ensina na sura 4,89 como tratar os que não seguem Alá: “capturai-os e então, matai-os, onde quer que os acheis”. Assim como papas autorizaram a morte na fogueira de hereges, os terroristas do 11 de setembro  tinham apoio da fé para o ato que cometeram.

Esse talvez seja o grande mal na religião: ensina que devemos dar a mão ao próximo, desde que ele acredite naquilo que acredito. Não há tolerância e respeito a pensamento diferente. É mais importante crer do que ser. A salvação é questão de crença e não de caráter. Agora podemos entender um pouco porque uma crença pode ao mesmo tempo motivar alguém a acolher um desvalido, bem como inspirá-lo a botar tudo pelos ares.

Fernando Bastos, cartunista e escritor.

sábado, 10 de setembro de 2011

Inverno, infirmo, inferno (Inacio Carreira)

O frio é incomum. Passa as tardes ao lado de um aquecedor cujo uso fará, no próximo mês, a delícia dos acionistas da companhia de energia elétrica. As manhãs passa-as na cama, sob uma grossa camada de cobertores, edredons, mantas, lençóis e outros artifícios /artefatos contra baixas temperaturas


Há mais de 20 anos, quando saiu de sua cidade para esta, em outro estado, preparou-se como para uma viagem ao Ártico (exagero, exagero), mas perdeu o investimento. O sítio mostrou-se cada vez mais quente, ele parou de fumar, engordou e as roupas foram para um amigo. Eram boas, quentes, mas não serviriam de nada, agora. A numeração passou de 48 para 54 (dependendo da fábrica). Devia utilizar-se de náilons e outros sintéticos ao invés da velha e boa lã, casimiras, flanelas, malhas flaneladas, veludos, couros... Ainda tem muita coisa a usar, mas carecem de cuidados, de lavações, de banhos de sol que lhes tirem os ácaros, os cheiros de naftalina, os ovos de barata. Resistentes, essas baratas. Fazem, da naftalina, desodorante. Continuam, perfumadas, o banquete em minhas roupas e agasalhos que, descobertos, ganham o caminho da rua, do lixo.


O frio é incomum. Existe uma vantagem: as comidas estragam menos. Estragando menos, também tem que cozinhar menos. Pilota o fogão, no máximo, duas vezes na semana. Guarda as sobras, aproveita-as bem, come fora vez em quando, às suas expensas ou convidado por amigos, vez em quando trazendo uma sobra para casa. Ainda agora tem, glória das glórias, camarão com molho rosé e maçãs no congelador, prato que degustou, de prima, à beira-mar em Itajaí, num restaurante chamado Sereia Tropical.


Outra vez, almoçando na própria cidade com uma amiga turista, levou para a geladeira um linguado ao molho branco com alcaparras, mas, quando quis utilizá-lo, estava virado em aguarela. Intragável. O molho branco se desmanchou, do peixe só sentiu o cheiro forte. O conjunto ganhou a lata de lixo e, ato contínuo, a lixeira comum do condomínio, não fosse ficar no apartamento atraindo moscas.


O frio é incomum. Ele, lamentando, falou de roupas, que esquentam por fora e de comidas, que esquentam por dentro. Mas encontra-se num impasse: nem as roupas nem os mantimentos, transformados em calorias, gorduras e vitaminas, podem ajudá-lo na atividade que enfrentará a pouco: o banho. Não, não irá colocar o aquecedor no banheiro. É contra-indicado, o fabricante informa que o mesmo não deve ser ligado em áreas molhadas. O que resta é o velho truque – perigosíssimo – de colocar fogo ao álcool, colocado em uma lata. Não fique preocupado, não. O banheiro, ou a sala de banhos, tem abertura suficiente para não asfixiar o usuário. Aliás, abertura perene, pois a janela não fecha, a ferrugem impede o acionamento da alavanca que vedaria o espaço.


Sofre duas vezes: no frio, agora incomum, tudo é pouco para aquecer o ambiente e a água. No calor, às vezes mesmo desligando o interruptor do chuveiro a água é tão quente (pela proximidade da caixa d´água com o telhado) que quase não aguenta a temperatura elevada. Isto faz com que cada banho hibernal exija uma reflexão, um buscar roupas no cesto e nas gavetas, acomodando-as no banheiro para uso imediatamente após secar-se; um planejamento estratégico para não deixar a embalagem de álcool perto do fogo, não deixar os fósforos perto do fogo, a toalha idem, sua pele mais cuidada ainda.


Como seria bom assinar, como suas, as afirmações acima. As queixas acima. As dúvidas. Mar aberto, fica à mercê de cuidadores, sem sentir frio ou calor, lembrando de quando tinha estes felizes desconfortos. Precisa entrar um pouco mais mar adentro, afundar, sumir, integrar-se ao grande nada. Com qualquer temperatura.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A cerimônia do chá (Sônia Pillon)


A sala estava impecavelmente limpa e arrumada. Quatro horas de preparação até a chegada daquele momento. O tatame estava precisamente no meio do recinto. Um quadro com ideogramas japoneses e um vaso de ikebana, com flores, folhas, galhos, frutos e plantas secas adornavam o lugar e transmitiam uma sensação maravilhosa de bem-estar.


Tudo lá foi arranjado, meticulosamente, para conduzir à harmonia, respeito, pureza e tranquilidade. Lá fora, o sol começava a se despedir com o cair da tarde, mas seus raios ainda atravessavam timidamente as persianas de madeira. Emanavam calor na medida certa.


Eis que chega a tão aguardada cerimônia do chá. O convidado entra no recinto, não sem antes tirar os sapatos, para depois se ajoelhar no tatame, com uma reverência de cabeça. Ele está nervoso, suas mãos tremem. Do outro lado, à sua frente, a anfitriã repete seu gesto e o ritual começa quando ela serve um doce num guardanapo ao convidado, que sorve cada pedaço, sem pressa. Por um longo momento, seus olhares se encontram. Depois, os dois baixam os olhos.


Ela então pega um lenço e cuidadosamente começa a purificar os potes onde serão servidos o chá. Primeiro, pega a concha de madeira para em seguida pegar a água aquecida e colocar nos potes. Depois abre o recipiente com o chá em pó e o mistura nos potes, em movimentos circulares.


Só então ela entrega o pote ao homem à sua frente, e suas mãos se tocam. Ele gira o pote e fica admirando a pintura a mão da delicada porcelana. Depois ela repete o ritual e finalmente ambos começam a beber o chá, vagarosamente, como se quisessem esticar aquele breve momento. A tradição milenar do chá os mantém unidos em corpo e alma.


Agora seus olhos se fitam profundamente, enquanto lágrimas involuntárias começam a escorrer de seus rostos. Ambos sabiam que aquele momento iria acontecer. A despedida era inevitável, mas como evitar o turbilhão de emoções desse momento? Como esquecer a beleza e a intensidade do que viveram?


O ritual do chá chega ao fim. Está na hora do convidado partir. Num impulso, a anfitriã pega seu pote, toma um gole e imediatamente oferece outro gole ao convidado, que retribui o gesto, quebrando as regras daquela tradição milenar.


Agora os dois unem suas mãos em sinal de prece, na altura do coração, e inclinam suas cabeças um para o outro, num gesto de reverência e agradecimento mútuo.


Com dificuldade e ainda com lágrimas nos olhos, o convidado se levanta e se dirige para a porta andando para trás, sem voltar as costas para a anfitriã.


- Nunca vou esquecer o que vivemos aqui, por mais que passem os anos!, diz o convidado, com a voz embargada.


- Eu também nunca vou esquecer!, responde a mulher, emocionada, enquanto ele alcança a porta e se dirige resolutamente para a estrada.


Naquele dia, durante muitas horas, ela ainda permaneceu ali, ajoelhada sob o tatame, relembrando aqueles felizes e fugazes dias que antecederam a partida do samurai.


Sônia Pillon
soniapillon@gmail.com
soniapillon@hotmail.com
http://blogpillon.webng.com

domingo, 4 de setembro de 2011

Necessário (Tiago Nascimento)

Eu só preciso de um instante
tenho tanto pra falar
nada de importante.
Eu só preciso de um romance
que embeveça o olhar
de todos os passantes.

Triste vida burocrática;
muito a se dizer
poucas as palavras.
Doce agonia monossilábica;
saudades de ser
infante, adolescente ou nada!

Eu só preciso de uma chance!
Quero respirar e ter
prazer de novo.
Eu até aceito um novo romance
ou ao menos ver você
de volta ao jogo...

Tiago Carpes do Nascimento; jesuscristohumano@gmail.com

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sensibilidade (Marcelo Lamas)



 

Procurei meu médico de confiança para fazer uns exames de rotina e ele sugeriu um macete:

– Faça o check-up anual bem no mês do seu aniversário, assim ‘você se dá de presente’ os exames e também fica mais difícil de esquecê-los.

No meio da boa conversa, sim, eu achei um médico que conversa com o paciente, ele mediu minha pressão e disse: “Esse negócio de medir a pressão no consultório nem sempre dá certo. Às vezes o paciente fica nervoso, ansioso com o resultado e sempre aparece um valor mais alto do que deveria ser. Nós chamamos de síndrome do jaleco branco”. E continuou:

– É o mesmo efeito que acontece quando o carro tem um barulho. Chegando ao mecânico o barulho desaparece.

Depois, dando uma olhada na ficha médica, toda manuscrita a lápis, e prescrevendo alguns exames, ele concluiu:

– Na tua idade esses exames aqui são suficientes. Depois dos quarenta o corpo vai começar a mandar uns sinais da idade, mas a coisa pega mesmo é depois dos cinquenta. Aí tudo começa a ficar mais sensível, começa a doer aqui, doer ali.

Quando ele falou em sensibilidade, lembrei da minha falta de sintonia com os sapatos. Todo calçado me incomoda. Antes qualquer pisante servia, fazendo jus ao provérbio popular: “Pé de pobre não tem número”. Agora, até os tênis com amortecimento me causam desconforto.

Será que estou envelhecendo precocemente?

Passei a ficar mais preocupado com isso, quando recebi o telefonema de um colega da empresa:

– Marcelo, queres jogar um campeonato de futsal. Vamos participar da categoria de veteranos, topas?

Em contrapartida, enquanto participava do Festival Nacional do Conto, uma colega literata, que eu não via há algum tempo, me disse:

– Como estás jovem! Fizeste plástica?

Fiquei confuso, mas logo lembrei do que o professor tinha dito no início daquela tarde:

– Vocês são um bando de loucos. Com o final de semana assim, com esse sol lindo e céu azul – evento climático raríssimo em Jaraguá do Sul – vocês aqui encerrados num auditório, discutindo literatura?

E tudo voltou ao seu lugar na minha mente.

  



Marcelo Lamas, autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.
marcelolamas@globo.com

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Profetas têm Cabelos Brancos (Vana Comissoli)


Anda por um mundo branco, nem sombra há. Sombras são escuras e escuro não há. Árvores brancas com seus brancos galhos não podem se silhuetar no ocaso branco.


Lembra vagamente de pessoas. Houve antes que esta nuvem sem embaço cobrisse o sol, o mal e quaisquer outras vidas, reais ou sonhadas.


É fácil e trágico caminhar sem passado neste branco que deveria ser luz e não é. Talvez seja um sumidouro, boca-de-lobo sugando a espuma de detergentes nitrogenados que deslizam plasticamente sobre as águas do Tietê. Pelo lado bom, encobre o que foi um dia água e agora é algo que não se sabe o que é. Sob essa massa gelatinosa e fétida está o vagido de um menino de rua que nunca pode deixar de ser neném, não deu tempo, antes apodreceram os ouvidos.


Começa a rir à bandeiras despregadas ou pregadas em mastros brancos tremulando paz lá no alto, inatingível. Ou no chão, uma vez despregadas e caídas. Paz um dia houve? Alguns, ou muitos, ou todos, homens com estandartes vermelhos, amarelos, azuis ou de as todas cores em um só, divisória armada até os dentes contra tudo, ou Deus, podia ser a favor, pelo menos uma melodramática mentira de pregar a decência, o perdão, alforria ou prisão. Qualquer coisa serviria para flamejar a beleza dos estandartes coloridos sob o céu para avisar por que lado se morria. São possibilidades quase ilimitadas, muitos Se e Ou...


Procura um herói solitário. Como? Apenas ele é. Resolve lavar o mundo encardido com sabão a fazer espuma que água nenhuma enxágua, fundo de panela grudado de gordura Mac Donald’s. Arranca a ponta dos dedos na tentativa até perceber que os seus não bastam, precisariam de todos que já tivessem vivido.


De dentro de um buraco com os olhos à superfície veria horizontes por todos os lados, assustadores 360º de nada. Um pensamento branco sussurrou que algo haveria depois de, ou antes. Estava cansado, caíra neste limbo branco num sonho, era assim que acontecera, tão logo despertasse se reconheceria colorido.


No tempo que o tempo era, as pálpebras descidas traziam algo em torno de claro e escuro, com flashs eventuais, até mesmo moscas luminosas passeavam trazendo notícias de brilhos. Talvez suas pálpebras tivessem caído na lata de leite condensado e não conseguissem se abrir, pesadas e inúteis, viera a noite sem lua e não havia possibilidade de outra coisa atravessar a firme e branca parede açucarada.


No antes do horizonte percebe movimentos em câmera lenta, ou seria apenas um teatro de sombras brancas? Parece que sim e guerras campesinas, campeiras, urbanas, corpo a corpo, teleguiadas, se mostravam esqueléticas formas. Nem o sangue jorrado aos borbotões era vermelho, já se esgotara o carmim dor.


Entre pausas de homens degolados caminha o profeta. Os longos cabelos brancos ao vento sem cor anuncia novos tempos de fraternidade. Quando terão cabelos ruivos, ou verdes, os profetas? Crêem tanto que cuidados esquecem e alguma discussão de alcova tórrida desenterra uma, e outra, e outra bela e sensual Helena por quem vale a pena lutar, morrer e matar.


As helenas deitam na terra se transformando em estados, países, regiões, campos acres servindo ao mesmo mortal objetivo. Dominadora na arte da manha, manhã sempre vinda, se retraem em notas de dinheiro, muito mais valoroso que o mero papel de que dizem não ser feito. Suas múltiplas formas retalham Osíris pelos campos alagadiços de nossos tantos Nilo. Em cada curva uma torneira de sangue e se luta por justa causa até que não sobre vontade de viver. Sobreviver.


Petróleo, ouro, diamantes, sede, fome, todos os sobrenomes posteriores a primeira: Helena de Tróia. Tánatos se justificando para realizar a volta da vida, segundo visionários, o fim total de qualquer modo. Momento onde o homem, tomando na mão a foice, antecipa o trabalho para se igualar a um possível e desconhecido criador.


Dói o cotovelo, aperta o sapato no pé. Há algo sob o chão instável. Chama: alguém aí? Nenhuma resposta. É sobre cadáveres que caminha. Um gigantesco Museu do Holocausto, do homem para o homem.


Nunca chora? Por medo? Assombro? Solidão?


Intui que não está sozinho, apenas os mundos não se tocam, não compartilham, nem se abraçam.  Nada, a distância é a salvação, começaram a dizer os cansados de guerra.


Está num deserto. É isso! Alucina. Cadê o Pequeno Príncipe e sua rosa? Cadê a raposa para responder que a jibóia tinha comido um elefante e chapéu é coisa para quem não sabe ver? Pelo menos uma vez a resposta certa. É essa a resposta? Esse branco sem fim? Armadilha.


O horizonte para trás não importa muito, logo tocará o da frente, haverá gente, vestígios de véus. Idade das Flores se avizinha, a Nova Era, é a hora e a vez de Aquário. Tantas linguagens!


O branco é transição, tudo será paz e amor, maconhavam fugas os hippies felizes enquanto enterravam a pior arma, o dinheiro, em caixões de chumbo. Imagine, orava John Lenon: “Você pode dizer que eu sou um sonhador, mas eu não sou o único. Eu tenho a esperança de que um dia você se juntará a nós e o mundo será como um só”. Adeus necessidade de crack, oxi, haxixe, armas, bombas, governos, pele, roupa, insanidade! Não precisamos mais de vocês. Uma única religião, a dos homens, um único chão, a Terra. Prisões virarão estábulos onde vacas de ubres de torneira despejarão leite para todas as cores da fome. As favelas se tornarão belos condomínios de jardins horizontais e verticais. A nova rotação do planeta o porá na curva do clima ameno em todos os hemisférios, os ursos polares simplesmente tirarão seu casaco e os pinguins boiarão de barriga para cima em Búzios enquanto engolem raios de sol.


A revolução fará com que muros e fechaduras se atirem das pontes numa água de PH 7.0, sorrindo para o futuro viveiro de peixes que serão. Muito melhor destino do que aprisionar homens em suas casamatas.


Ouvia-se esbanjando para o horizonte além a alegria do sonho afinal possível. Era só atravessar o portal 11:11 e se ouviria a sinfonia das estrelas anãs.


Surgiram os 2 primeiros homens do horizonte tão próximo, preparou-se para comemorar:


“Distância de 40 passos, no sinal atirem ao mesmo tempo.”


Helena, em macios lençóis de seda, ou de tantos, não sei quantos, fios de algodão egípcio se retorce de rir e leva o copo de uísque escocês aos lábios sempre sedentos.