Não sei se naquela época já conhecia as histórias do descobrimento e das caravelas que vieram de Portugal. Mas aquela lata, que chegava pontualmente às vésperas do Natal, ele conhecia bem. Ela o intrigava. Era promessa de risos de alegria e lágrimas de lembranças e saudades. Uma tia-avó da "terrinha" mandava, pontualmente, aquela insólita embalagem contendo cartas, panos de prato, às vezes um corte de tecido, um xale, bolachas caseiras e balas, divinas balas... Divididas entre os muitos netos, as poucas balas eram iguarias divinais. Saboreá-las era transformado num ato às vezes cerimonioso, quase sagrado: só depois da janta ou após beber um gole do copo de água que a avó depositava todo santo dia, na frente do rádio, para ser bento desde Aparecida do Norte. Daquelas balas ele sempre se lembra, mesmo agora que a variedade de guloseimas nos supermercados, padarias e lojas de conveniência oferecem, ao olfato e ao paladar, até odores e sabores que não existem na natureza. Mas tinham um cheiro e um gosto peculiares aquelas balas anuais, embrulhadas em papel manteiga por mãos que ele nunca viu, nem veria; com certeza, feitas de forma artesanal em algum tacho de cobre, num fogão à lenha, numa pequena aldeia com ruas estreitas, medievais, casas de três andares erguidas de pedra e madeira, embranquecidas àquela época pela neve que ele só conhecia por devaneios e sonhos, as pegadas e os uivos longínquos dos lobos arrepiando a alma... A memória guardou a lembrança do gostar do gosto e do olor daquelas balas natalinas, mas não o próprio gosto e cheiro. E ele tenta recordar e associa - talvez erroneamente - com cheiro/gosto de cabo de guarda-chuva (que só bem tarde da vida acreditou ser o gosto/cheiro da cola de madeira); cheiro de São Jorge na lua; de bolinhas de gude; de seixos rolados; de nuvens formando figuras; de asas de borboleta nos quadros da sala de estar daquela tia rica; de borracha de areia; de pedra sabão; de sabonete no lavabo daquela casa bonita onde não passou do hall; de hóstia de primeira comunhão... Gosto/cheiro de selo de antes, quando a cola era molhada na língua; de mão com o zinabre dos pegadores dos bondes abertos; do beijo no rosto daquela tia que a mãe falava à boca pequena ser doente, "não podia passar sem homem"; de chuva de verão misturado ao forte cheiro da terra quente, molhada; de grama sendo cortada nos quaradores que ladeavam o caminho de chegada a casa. Cheiro de saudade, de flores misturadas ao odor dos pavios queimando nos velórios... Nas balas, cujo cheiro e gosto ele não lembrará jamais, um cheiro de infância, de inocência, da alegria de um dia talvez poder conhecer aquelas gentes que faziam aquelas balas naquela terra de onde ele veio (como semente genética não transgênica) e para onde só irá, tem certeza, quando misturado à terra e aos demais elementos, contribuindo algures para formar cheiros e gostos de outras infâncias, em outros tempos, outras crianças.
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