quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Ingratidão (Inacio Carreira)
Apontado como sem perspectiva pois não tinha ganância, não era avaro, buscava auto justificar-se com a lembrança dos versículos “Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles” (Mateus 6, 28:29).
Buscava ser probo em ‘pensamentos, palavras e obras’, embora soubesse das dificuldades de andar no bom caminho, periodicamente analisando suas reações ante as oferendas que até ele chegavam, sopesando o certo e o errado nas atitudes, nas resoluções, nas respostas. Se o fiel da balança estivesse contra ele, ia até a pessoa que acreditava ter prejudicado e expunha seus sentimentos, buscando desculpar-se por algo que, às vezes, nem havia feito, ou não tivera a intenção de fazer.
Cultivava essa natural preocupação com o todo, que dirá consigo? Não, não era hipocondríaco, não vivia em academias, não buscava a última medicação para o que quer que fosse. Mas mantinha a alimentação saudável, dentro dos princípios do nutricionismo, segundo as informações que chegam a qualquer mortal por revistas, jornais, rádios, televisão. Sem contar a internet, com sites específicos sobre o assunto. Aproveitava as frutas da ocasião para refeições frugais, que completava com os necessários carboidratos e proteínas. Para este último item contrariava seus amigos veganos, a eles pedindo desculpas por não conseguir radicalizar nesse item.
O bem e o mal. Claro e escuro. Alto e baixo. Prazer e tristeza. Ocupação e preocupação. Dicotomias. Não. Não nasceu com esse conhecimento. Foi o mesmo sendo construído através de estudos de filosofia, incursões na psicologia, nos livros sagrados de diferentes povos, nas mitologias, nos demais conhecimentos místicos, na Teogonia, de Hesíodo, com Rabindranath Thakur (Tagore), com Bhagwan Shree Rajneesh (Osho), no dia a dia com familiares, amigos, leituras diversas. Periodicamente vinha-lhe à mente o discutível aforismo repetido por amigos: 'O diabo não é esperto porque é diabo, é esperto porque é velho'.
Saindo de consulta médica, lembrava a passagem shakespeariana: “Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se desfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não tivesse condenado o suicídio!” (Hamlet: Ato I, Cena II).
Pensou nas palavras do médico e reviveu seus sintomas: perda de apetite e, consequentemente, de peso, fraqueza, diarreia, tontura... Mas, por quê? Câncer? Ou melhor, para ser menos agressivo (o médico pedira que fosse com acompanhante, fora só), carcinoma. Mas precisava investigar, bastante e rápido, com exames, em parceria com o relato inicial, que o doutor chamou de anamnese: exames de laboratório (sangue, fezes, urina), além de tomografia computadorizada do abdômen; ultrassonografia abdominal; ressonância nuclear de vias biliares e da região do pâncreas e, também, a biópsia do tecido. Afeta mais os homens e, na sua idade, o índice de sucesso na cirurgia é irrelevante. A localização do pâncreas na cavidade mais profunda do abdômen, atrás de outros órgãos, dificulta a detecção precoce. Normalmente desenvolve-se, o tumor, sem sintomas, sendo difícil diagnosticá-lo na fase inicial e, quando detectado, já pode estar em estágio muito avançado. Como descobriu ser o seu caso.
Estão entre os fatores de risco o uso de derivados do tabaco: fumantes possuem três vezes mais chances de desenvolver a doença do que os não fumantes. Balançava a cabeça, como a dizer não ser seu caso. Outro fator (de risco, claro) é o consumo excessivo de gordura, de carnes e de bebidas alcoólicas. Como também a exposição a compostos químicos, solventes e petróleo, durante longo tempo. Um grupo de risco, com maior chance de desenvolver a doença, é composto pelos que sofrem de pancreatite crônica ou de diabetes melitus, os que foram submetidos a cirurgias de úlcera no estômago ou duodeno ou sofreram retirada da vesícula biliar. Só dizia presente ao último item, retirada da vesícula biliar.
Procurou e leu, na internet, tudo (ou quase) que estivesse relacionado ao pâncreas e tumores nessa glândula. Era muita coisa, muita cientificidade, muita pamonha para a sua festa junina (comparação idiota, repreendeu-se, estavam em novembro...). Castigo divino? Mas, por quê?
Andava com a cabeça cheia. Querendo arrumar justificativa para seu corpo, tão bem tratado, tão elogiado, tão abençoado cada vez que fazia uma coisa boa (vai com deus, diziam. Deus te proteja, desejavam. Deus aumente tuas dádivas e tua bondade, oravam os mais amigos).
Não, não queria recompensa, o que fizera fora sempre de coração aberto. Muita gente não entendeu seus cuidados, muitos lhe viraram a cara, acreditando que ele almejava algum cargo eletivo, alguma medalha, outra recompensa qualquer. Não. Já do berço ouvia a voz da avó: ‘Faz o bem sem olhar a quem’, embora o escorpião tenha picado a rã que ia leva-la à outra margem, aprendeu mais tarde nos livros.
Agora sabia, o inimigo estava dentro dele. Ele era a rã que carregava o escorpião para a outra margem, mas sabia que não chegariam. Sim, esta seria a metáfora final de sua vida. Ele a rã, o câncer sendo o escorpião. O rio? A rua, uma qualquer, que nessa época todas são perigosas, daqui ao fim dos tempos todas serão perigosas, cada vez mais. Era só concentrar-se enquanto anfíbio e atravessar a avenida-rio, esperando a picada fatal. Que veio na forma de um caminhão, apressados que sempre estão.
No rosto um sorriso intrigante: ao longo da vida, com suas idas e vindas, favores e agradecimentos, tours de force e promoção de mil ajudas, sofrera muita ingratidão. Superara a todas. Mas não pôde, humano que era, superar a ingratidão do próprio corpo. Ninguém entendeu...
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
E se... Uma história de amor (Vana Comissoli)
Para meus muito amados Philippe e Fernanda: tudo dará certo.
Aeroportos sempre me dão a sensação de entrar num formigueiro que começa a pegar fogo e teria que enfrentar este sufoco nas quatro nas próximas horas. Não suporto este bulício de gente que sabe para onde vai enquanto eu sei o local, mas não muito bem o objetivo.
Gosto mesmo é das chegadas. Os beijos dos apaixonados – jovens na relação -; os selinhos bobos que os casais antigos trocam como se fossem irmãos, mas ainda assim cheios de carinho permanente; a festa das crianças sendo recebidas ou sua total alienação nos abraços apertados que sufocavam dados por avós ou tios cuja existência conheciam por nomes planos em fotografias com cenários obscuros. Até mesmo a remota distancia dos homens de negócios esperados por pessoas absolutamente desconhecidas com cartazes nas mãos onde estaria seu nome ou mais impessoal ainda: nome de suas empresas. Felizmente os poucos astros da TV e futebol que encontrei, ninguém os estava assediando ou tendo delírios paranoicos com sua presença, por mais que arrastassem seu séquito de serviçais prontos a atenderem os desejos do amo num simples estalar de dedos. Fui poupada.
O que faço aqui? – me pergunto não mais podendo fugir da indagação que me corrói. Estarei fugindo, ou tentando escapar? Pela primeira vez atravessar o oceano, ser uma estrangeira, caminhar em terra alheia. Para uma sulista de meu país ir aos territórios cisplatinos não é exatamente uma viagem portentosa, éramos quase crias deles e fronteira uma linha invisível que não conseguia realmente nos separar, quase nem nos distinguia. Mais difícil era ir ao norte, muito mais distante e oneroso.
Eu o conhecera há escassos três meses e enquanto esteve no Brasil vivemos uma relação entre delicada e tórrida que derrubou todas minhas imensas barreiras, poderosas fronteiras onde meus guardas não permitiam travessia sem passaporte e muitas vezes revisado.
- O que? Estás louca! O sujeito é europeu e vais atrás? – Essa é minha mãe apavorada com o que considerava uma atitude impensada e infantil. Arriscadíssima. – Não sabes nada deste homem, nem sequer se existe de verdade! E se for um serial killer? E se for sequestrador? E se...
Deixei minha mãe falando sozinha. Eu tinha 39 anos e três casamentos ou pseudo casamentos de merda. De merda mesmo: o primeiro diabo carreguei nas costas, outro empurrei com a barriga e o último se borrou de medo de assumir compromisso se escafedendo na primeira esquina que encontrou. Depois disso tinha resolvido que ninguém mais dormiria na minha cama, só motel e cueca no encosto da cadeira. Chega! Bati a porta e joguei fora a chave por 2 anos, 7 meses e 21 dias.
- Que tremenda viagem! Vai fundo que pode não aparecer outra. E se ele for de fé, ficas por lá? – era minha irmã mais moca.
- Quem me dera uma paixão como esta, aventureira e em outra língua. Adoro francês. – era minha melhor amiga revirando os olhos e pondo Piaf no som. – E se...
- Loucura! Estás doente da cabeça! – minha mãe de novo, de novo e de novo.
Muita gente buzinando no ouvido só dá estrago, comecei a me indagar, o que não tinha feito nenhuma vez até a brotação dos E se... Fui flecha certeira até começarem.
Michel... Seria mesmo Michel seu nome? E se fosse uma alcunha? E se fosse casado? E se... E se... E se...
Agora era tarde para perguntar, a passagem para aquela terra distante e estranha ardia na minha bolsa. Existiria de verdade o tal país ou só em contos de fadas, em postais impessoais?
Tinha tempo, claro que cheguei adiantadíssima para o embarque. E se eu perdesse o avião? E se o “teto” fechasse? Teto... Essa coisa nebulosa bem diferente do que se tem casa para dar segurança e refúgio. Eu estava disposta a sovar durante cerca de doze horas num avião, na classe econômica onde os bancos são para tortura. E se tivesse trombose?
E se esquecesse da língua alienígena? Meu país é de proporções continentais, mas com pequenas nuances regionais perfeitamente identificáveis, podemos nos entender tranquilamente. Este povo europeu vivem em países quase do tamanho de minha cidade e outros até menores, falam trezentas línguas bifurcadas, sei lá em quantos dialetos arcaicos onde não se entende bulhufas.
Nos últimos três meses depois da partida de Michel eu frequentara um curso intensivo daquela língua que me embaralhava o pensamento embora tenha soado tão sedutora e “caliente” ao meu ouvido nos três meses antes desses três meses. Tudo três? Dou-me conta disso e aumenta a quantidade de suor em minhas mãos. Bom ou mau augúrio este monte de três? Não é número par, não dá casal. Devia ter trazido meu livro de numerologia. Esqueci, quase me esqueci de por calcinha na mala só pensando na fartura de roupas novas com as quais pretendia seduzir Michel. De íntimo só camisola. Lembrei a tempo das calcinhas e me desabalei a comprar as mais sexys que consegui encontrar às quase 10 da noite no shopping fechando. Muita sorte a vendedora ter ficado fissurada na minha história de paixão com a qual sonhava, é óbvio. Baixou as prateleiras todas, só não saí com a loja nas costas por que tinha medo de me perder do outro lado do mundo e não poder pagar hotel. Se... Qualquer coisa desse errado.
Estes três meses tão iguais e diferentes que faziam viés, trevas e luz antes deste aeroporto azul me pareceram a realização de sonhos muitas vezes sonhados em noites brancas. Eles eram reais mesmo pela Internet me trazendo as conversas ternas, saudosas e tórridas. Mas e se?... Se na terra distante ele fosse frio como a neve que lá caía e eu nunca tinha visto?
E se...
Olhei o relógio e fui para o portão de embarque. O céu não estava lá estas coisas e rezei. Na minha terra podia me por de joelhos diante de tudo que era santo, orixá e anjos, o Brasil tem destas maravilhas, mas lá... E se lá todos fossem ateus? Aqui até quem dizia que era tinha seu patuá escondido, seu “vai com Deus”. Coisas nossas, mas lá...
Chovia torrencialmente em São Paulo e o tal de “teto” sumira, tínhamos que esperar até que desse as caras novamente. E se a chuva voasse com o avião? Com certeza não seria um bom augúrio, era recado dos deuses: vais dar com os burros n’água. Não podia me preocupar com isso agora, também poderia ser uma limpeza na minha vida, precisava pensar positivamente e me concentrar para não ficar andando de um lado para outro, além de segurar as mãos que queriam ficar se esfregando sem parar.
Afinal embarcamos. Quando a comissária de bordo nos recebeu já foi na língua mãe dela, ou seja me deu um frio danado na barriga, eu entrara em outro mundo. E se não conseguisse entender nada? Entendi e pude escolher minha janta, mas louca de medo, estava tão nervosa. E se eu vomitasse? Procurei não pensar que minha próxima conexão seria em Paris. Ai meu Deus! E se perdesse as malas? Paris... Sonho de todo brasileiro e meu em especial por décadas, mesmo que seguisse viagem era Paris, La France. U lá lá!
Dormi um pouco, abri os olhos, dormi de novo toda torta. Esses bancos da classe econômica são mesmo de lascar. Resolvi dar uma espiadinha pela janela que nos obrigavam a manter fechada, mas nunca fui muito disciplina mesmo, não gosto de ordens irreversíveis. Eram 2 da madrugada. Espiei. Ai, socorro, eu atravessei o mundo! Duas da manhã e o sol está nascendo. Uma emoção colossal me assaltou e chorei, bem que queria sair gritando e falando de minha felicidade e surpresa por ter atravessado o mundo, sonho que já abandonara, se realizando. Meu Michel... Se nada der certo já me deste esta sensação louquíssima de felicidade imensa. Chorei mais um pouco, segurei por que estava prestes a começar a fungar e a vontade era de soluçar atirada no chão. Quase não dormi mais, não podia acreditar, estava sobre o Atlântico e isso é inenarrável. Milhões de borboletas, grilos, libélulas (adoro libélulas) na barriga e todos em movimento.
Aterrissamos e me senti o papa, cheia de necessidade de beijar o chão. Não dava tempo, corri para a alfândega louca de medo do extravio de malas, de não localizar o embarque e me perder neste imenso aeroporto francês. Quando pensava “francês” quase desmaiava, era mesmo eu ali, toda sorriso e engasgo.
Outro avião. Já estava me cansando deles, mas agora seria rápido. Na Europa tudo é logo ali, pelo menos era o que me diziam não sendo bem verdade, mas meu destino final era mesmo logo ali, não precisava pensar na França e na Alemanha que tem mais cara de país pelo tamanho. Pelo menos de minha ideia de país. Que longos e tortuosos limites! E se... E se... Todos “se” que ouvira e outros que criara. Nem sei se me lembrava direito da cara de Michel ou se o que via era resultado de sonho, de memória antiga que não se apagara. Nunca lembrava direito do rosto de meu pai que morreu quando ainda era menina.
E se Michel esquecesse o horário de minha chegada?
E se lá fosse um trânsito dos infernos como São Paulo e se atrasasse?
E se ele tivesse desistido desta brasileira de tantas raízes que não tinha mais nenhuma? E se...
Tinha o suplício de esperar as bagagens ainda. Não sei o que fazem para sempre ser tão lento, é por que não é no deles que arde. Uma vontade danada de gritar que estava ali para me casar e era brasileira sem entender nada de nada desses erres todos que falavam, cheios de us pelo meio, cheio de biquinhos que encantariam a qualquer um, mas agora não. Ia carregada, ficaria três (de novo o 3?) meses, a experiência que faríamos para uma vinda definitiva.
Agora o tremor das mãos, da fala, se instalou forte, estava com tudo ajeitado no carrinho de bagagem e pronta para atravessar a última fronteira que me poria diante de Michel: a porta automática da sala de desembarque. E se ele não me quisesse mais?
E se...
Lá estava ele, lindo como nunca, aquele sorriso arrasador. Que se danem todos que disseram que não era isso tudo. Os braços abertos que se fecharam em torno de mim enquanto seu beijo morno punha lágrimas em nossos olhos.
E se... Se desse certo?...
Vana Comissoli
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Jesus, sob dois olhares (Fernando Bastos)
Os dois nasceram no mesmo dia, 25 de dezembro, mas tomaram rumos diferentes na vida; a mãe, adepta do crack e da vida fácil, não sabia quem era o pai, largou-os num orfanato e sumiu. O que nasceu antes entrou num lar cristão, foi batizado e ganhou o nome de Salvador. Aos seis anos lia a Bíblia, rezava o terço. O outro, recebeu as simpatias de um casal estrangeiro e o nome Darwin, com o tempo saberia que o homem que o recolheu das mãos da madre e a quem chamaria pai trabalhava em meio a tubos de ensaio, microscópios, pipetas e livros de biologia molecular; a mulher dele, uma respeitada professora de mitologias, dava aulas e escrevia livros sobre civilizações antigas.
Os gêmeos cresceram amados, cada um em seu canto; Salvador fez catequese, ajudou o padre na missa, respirou a fumaça perfumada de olíbano que saía em forma de arabescos do turíbulo que sacolejava nas pequeninas mãos no momento da consagração, comeu hóstia na sacristia, formou-se em contabilidade, namorou, leu e releu os Evangelhos, casou, encheu a casa de santos e crucifixos, um sinal da cruz cada vez que passava por um deles, teve filhos católicos como ele e como seus pais adotivos, o que era de se esperar. Tivesse sido criado num kibutz, seria judeu; estudado numa madrassa, islâmico, e por aí vai. Darwin aos dez anos interessava-se por dinossauros, genética, neurociência, deuses gregos. Adulto, foi dar aulas de filosofia, apaixonou-se por uma aluna, casaram, tiveram um filho.
Poucos dias para completarem 33 anos, os gêmeos se veem pela primeira vez, desde que foram separados com poucos meses de vida. Seria o primeiro Natal juntos, e de quebra, comemorariam juntos seus aniversários. O que morava fora, veio ao Brasil com mulher e filho especialmente para reencontrar o irmão. Os dois deixaram as famílias em casa e saíram bem cedinho para andar pela praia, queriam exclusividade do momento. Caminharam abraçados, chutaram a água gelada que vinha lamber a areia, riram e choraram a dor dos anos longe um do outro.
Então, Salvador disse: irmão, gostaria que fosse comigo hoje à igreja, quero lhe mostrar o presépio; eu ajudei a montá-lo. Podemos aproveitar e confessar; não vai ter muita fila. Darwin sorriu e perguntou: confessar pra quê, Salvador? Ora, espantou-se o outro, todo mundo confessa seus pecados, assim Deus nos perdoa e temos as portas do céu abertas. O filósofo questionou mais uma vez: e se eu não me confessar, o que Deus fará comigo? Infelizmente você irá para o inferno, respondeu o beato, e seria muito triste para mim separar-me pela eternidade do único irmão que tenho e tanto amo. Darwin, você não é cristão, não teme a Deus?
Por que devo temer a Deus, Ele não é bom e misericordioso? Não creio nesse negócio de inferno, assegurou o que viera de longe. E explicou: é um mito inventado há muito tempo pelos sacerdotes mesopotâmicos, uma boa sacada pra manter o povo quieto e obediente. Todas as culturas que vieram depois emularam esse conceito, criando seus próprios infernos: egípcios, gregos, romanos...o cristianismo apenas o pintou com cores mais fortes. O zoroastrismo pelo menos dava oportunidade ao condenado se purificar numa espécie de purgatório de onde poderia sair a fim de se juntar aos outros no céu. O cristianismo não; fez vocês acreditarem que o inferno, além de ser um lugar real, onde haverá choro e ranger de dentes, é eterno, assim como o sofrimento dos infelizes que o conhecerem. Ora, um deus assim, que lava as mãos ao lhe da o livre arbítrio para amá-lo ou rejeitá-lo, mas se escolher a opção errada, aquela que ele não quer, o trancará num lugar de infinito suplício, se assemelha ao marido ciumento que diz à esposa que ela é livre para sair, mas se o trocar por outro, a encherá de pancadas até o fim de sua vida. Salvador, você é inteligente, piedoso, mas devia ler sobre mitologias pré-cristãs, para separar o mito da realidade. Desolado, e já prevendo o irmão sendo lançado às chamas do inferno, o católico perguntou: por acaso não crê em Jesus, acha Ele uma invenção como andam falando por aí?
Ele não é um mito, disse o outro, pois temos evidências do Jesus histórico. Mas sua biografia, ah essa meu irmão, essa ganhou retoques no Concílio de Niceia, organizado por Constantino. Jesus não podia ficar abaixo dos deuses romanos, tinha que superá-los. O galileu foi um professor da moral, como o foram Sócrates, Confúcio e Buda. Teve muitos acertos dignos de aplauso, mas cometeu alguns deslizes.
Darwin estava indo longe demais ao criticar o próprio Deus; o que teria aprendido naquela família secular a ponto de se tornar tão cego diante da única Verdade? Agarrando-se à piedade cristã, Salvador tentou trazê-lo de volta à Luz e convertê-lo: Jesus é perfeito, nunca encontrei uma falha em tudo que pregou...O filósofo escolheu as melhores palavras, pois não queria magoar o irmão, mas sabia que às vezes, para remover as chagas do obscurantismo, é necessário empregar remédio amargo. Parou de andar e convidou Salvador para sentar sobre uma pedra no final da enseada. O sol já despontava no horizonte, os barcos dos pescadores voltavam com suas redes cheias da valiosa mercadoria que logo seria vendida. Os primeiros compradores assomavam ao local onde os homens do mar desembarcariam. Rememorando um trecho bíblico, Darwin disse: Jesus falou à multidão que o seguia, se é mesmo que falou ou se colocaram em sua boca mais tarde, que ninguém vai ao Pai, isto é, chega ao céu, senão por ele. Nunca me conformei com essa frase, Salvador, pois demonstra acima de tudo arrogância, pois ignora que o mundo é habitado por judeus, hindus, muçulmanos, taoístas, agnósticos, ateus, que têm suas próprias crenças, dúvidas ou descrenças. Seguindo essa obtusa ótica cristã, os mais de cinco bilhões de seres humanos de hoje já estão condenados. Sem falar em todos que nos antecederam e morreram sem abraçar a fé cristã. O que é incrível e assustador, é que a teologia cristã ensina que um estuprador e assassino de dez crianças merece o céu, caso se arrependa, confirme a fé em Cristo e se confesse no último minuto de vida. Mas um judeu honesto, bom pai de família, vai para o inferno. Isto é, segundo essa visão desvirtuada, a crença é mais importante que o ser-no-mundo. Salvador, você consegue compreender a magnitude dos problemas que essa crença tem causado à humanidade? Não importa o quão honesto for o indivíduo, se não crer nessa Igreja que se julga a detentora da verdade, tem o passaporte carimbado para o fogo da Geena. Desculpa, mas isso é bem humano, demasiadamente humano.
Os gêmeos ficaram em silêncio por longos minutos, observando os barcos que atracavam à praia. Os peixes pulavam dentro das embarcações, reluzentes ao sol, impregnando o ar com seu característico cheiro, braços nus e bronzeados os colocavam em enormes cestos, pesavam-nos em balanças enferrujadas e os embrulhavam em jornais velhos, sob vigilância atenta dos compradores e das aves negras que voavam em círculos esperando alguma sobra para o almoço. Ali, naquela pedra, dois homens assistiam a tudo, mas suas mentes estavam distantes, remoendo o debate daquele início de manhã. Num acordo tácito, pois embora todo o tempo afastados um do outro, parecia que falavam telepaticamente, não teceram mais conjecturas metafísicas naquele dia. Levantaram-se e foram escolher algumas sardinhas e corvinas para o almoço.
O irmão católico não perdeu a fé, Jesus ainda é seu ídolo, mas não acha mais necessidade em se confessar. Desde que aprendeu sobre como as religiões exercem poder sobre a vida das pessoas, para o bem e para o mal, dispensou os intermediários entre ele e Deus. Agora, a conversa é direta com o Criador; se faz bem a ele, não serei eu quem irá julgá-lo.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Gatos e humanos (Sônia Pillon)
Existem muitos mitos relacionados aos felinos. Por conta de ideias trazidas no inconsciente coletivo, que remontam à Idade Média, a chamada “Idade das Trevas”, os gatos passaram a ser associados às bruxas e seus feitiços, apontados como criaturas maléficas e traiçoeiras.
E por mais que séculos tenham se passado e já estejamos em pleno século 21, ainda é comum ver pessoas declararem que que não suportam sua presença e até que odeiam os bichanos. Nos casos mais extremos, torturam e matam. Há os que nem sequer os dão o direito de viver, os condenando à morte por afogamento, tão logo são paridos...
Os intolerantes alegam que eles soltam pelos, que arranham e destroem móveis, roupas, utensílios... Outros justificam o não gostar porque eles seriam egoístas e se apegariam mais às casas e ao conforto que desfrutam, do que aos próprios donos...
As estórias infantis, os quadrinhos e os desenhos sempre foram pródigos em apresentar personagens sádicos, como “Tom” (Tom & Jerry), “Garfield”, preguiçoso e egocêntrico, “Manda-chuva”, que comandava uma gangue de gatos de rua, e o arteiro “Gato Félix”...
Mas, para os que conhecem de perto esses animais lindos e de pelagem brilhante, sabem que eles podem não ser espalhafatosos em suas demonstrações de afeto, como os cães, mas nem por isso são menos afetuosos. Um gato que é acolhido, alimentado, bem cuidado e tratado com carinho por seu dono (a) sabe, sim, retribuir a atenção de forma profunda e leal. Mas, se for tratado com hostilidade, agirá em defesa própria, seguindo a lei da sobrevivência...
É certo que eles se “adonam” da casa, se esparramam por todo o canto, são altivos e têm personalidade. Na verdade, em alguns casos, eles parecem agir como se fossem os donos e “permitissem” que os humanos ocupassem o espaço... Mas, pensando bem, para os que amam gatos e respeitam sua personalidade, essas características importam muito pouco, pelo bem que a sua presença faz na vida de seu dono (a).
Fatores como beleza, faixa etária ou recursos financeiros do dono não são levados em consideração por eles, que amam incondicionalmente os que entendem seu jeito de ser.
Os gatos eram venerados no Antigo Egito, e muitos acreditam que eles são profundamente sensitivos e sensíveis, atuando como “filtros” das energias negativas no habitat que dividem com os humanos. Nos casos mais extremos, há os que afirmam que eles podem até adoecer seriamente por serem tão protetores.
Por todos esses fatores, mesmo que você não morra de amores por gatos, pelos menos os respeite. Eles têm o direito de serem tratados com dignidade, até porque maltratar animais é crime e um ato que não se pode tolerar em seres que se dizem “humanos”.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Vivo para você (Elianete Vieira)
Observo tudo e todos à minha volta.
Sonhos, correria, vozes, silencio, dia, noite, vento, chuva, sooolllllll
Várias duas pernas passam e nem me olham.
Se não fosse a chuva me alimentar e o sol me fortificar, não resistiria uns poucos dias.
Pequenos tentam me tocar, mas tenho medo, espeto seus dedinhos xeretas.
Outros me tocam com carinho, sabem me acariciar e não se machucam. Alguns se aproximam para me sentir.
Para estes, libero meu aroma e meu mais belo sorriso.
Alegro seu jardim e sua vida.
Volte sempre.
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
Acorde Transversal (Vana Comissoli)
Algumas pessoas nascem e logo são percebidas porque já chegam berrando. Outras silenciosamente como um matinho qualquer e nunca se darão conta de que elas estão por ali, em meio às belíssimas e muito coloridas rosas e orquídeas.
Esta teoria fora criada desde que era muito pequena, tanto que talvez ainda não tivesse idade alguma e se fortificara ao longo da vida esgueirada silenciosamente pelas paredes. Às vezes não tinha muita certeza se os pais lembravam de a terem parido, outras tinha certeza total. O dia em que brotara deveria ter sido cheio de um sol absurdamente luminoso, onde tudo que se olha é apenas reflexo e não se distingue as cores mais claras, assim como ela com sua pele branca, tão branca que se amorenar nas areias da praia era inviável, até porque nunca vira o mar.
Não se incomodava muito por este cenário insípido, não tinha outro para comparar, nem sequer desejar, pelo menos não a obrigariam a falar e a se mostrar agradável a ninguém. No entanto, no silêncio das noites escorridas em lençóis brancos, ela sabia que algo se aproximava, a chamava, sem pensar que podia ser pura ilusão, ou angústia. Simplesmente esperava, sem nem contar os dias.
Quando a vizinhança de classe média e mexeriqueira se assanhou com a chegada do novo vizinho, não se deu ao trabalho de espiar por cima do muro, nunca falaria com ele e nem sequer lhe veria a face. Que importava se fosse velho ou moço, alto ou baixo? Devia ser nascido e não brotado, nada teriam em comum, como nada em comum tinha com qualquer pessoa de quem já tivesse enxergado a cara.
Maria Clara ouviu as primeiras notas como quem vislumbra o Anjo Gabriel anunciando uma graça divina. A música se estendendo pelo dia fez com que o sol deixasse de ser branco e tomasse uma cor amarelo dourada, que ela jamais poderia imaginar que tivesse. Pela primeira vez levou uma cadeira para o jardim e sentou-se. Não passava de um matinho em meio à grama e nela se perdia. Ninguém reparou nesta aparição, apesar de todos terem suspendido suas atividades, parando para ouvir a melodia que dançava pelos canteiros, escorregava nas paredes e pendurava-se em cachopas de acordes nas árvores mais frondosas.
À noite o piano continuava a cantar, às vezes com força aumentada, como se a escuridão lhe despertasse a fúria e a dor. Maria Clara atravessou a rua olhando para todos os lados e postou-se sob a janela sem sentir a umidade que chorara pelo gramado. Dormir era tão desnecessário quanto comer, ou se vestir, não perderia nada se estas atividades minguassem mais do que já eram. Os pais não se deram conta da ausência, ou se deram sentiram alívio, era estranho e atrapalhado ter uma filha muda que não era muda.
Maria Clara sentia o coração explodir de gratidão pelo pianista sem rosto, mas cheio de magia. Não lhe passou pela cabeça que era homem e algo poderia rugir em seu corpo. Nunca rugira. Moças brancas não têm transição, não aquecem, não sonham, não desejam. Seria doloroso demais ter esta ousadia e até uma moça branca tem medo do sofrimento, fechara todas as entradas desde que nascera, assim não haveriam saídas e nem tremores.
Um mundo se abriu para ela pleno de emoções, desde a alegria mais suave até a dor mais profunda que arranhavam a alma, mas não eram insuportáveis. Quem disse que a dor não pode ser bela?, ela descobrira que podia ser intensamente bela. Conheceu amores e rancores, vida e morte, mocinhas apaixonadas e traições tortuosas. Conheceu o viver.
Não tinha como expressar sua gratidão, sua felicidade: então, durante os recitais noturnos, cuidava do jardim do pianista que jamais soube disso. Descobriu que a cor da flores não feriam, eram lindas vibrando ao som das sonatas, dos acordes mozartianos, das rezas de Bach.
Quando o som do piano entrou pelas noites, os moradores não acharam tão bonito assim e, acostumados à voz estridente das novelas, não conseguiam dormir com os delírios de um pianista apaixonado. Foi feita uma enquete para descobrir alguém que se dispusesse a bater na porta sempre fechada, ou que fosse à janela sempre aberta para exigir respeito às horas de descanso, coisa que deveria constar da Constituição. Fosse lá pelo motivo que fosse, ninguém se ofereceu. Ficaram boquiabertos quando aquela moça sempre quieta, timidamente, levantou o dedo e, sem uma palavra, se candidatou à tarefa.
Ela tremia quando tão suavemente bateu à porta que não foi ouvida, precisou bater até o anoitecer, quando a porta se entreabriu não disse uma palavra de reclamação. O pianista nada perguntou. Voltou ao piano deixando a entrada livre para ela que passou a ouvi-lo sentada no chão, depois de se maravilhar com a sincronia transversal perfeita que havia entre o piano e as brancas tábuas de pau marfim. Sentou-se mantendo a harmonia, qualquer deslize perturbaria a melodia e isso não era aceitável.
Nunca trocaram uma só palavra, o pianista deixava a porta entreaberta e não era possível saber se percebia quando a moça entrava e saía, até que nunca mais saiu. Faziam uma refeição frugal na tosca cozinha. João Gustavo aliviado de não precisar preparar mais nada, comia ali apenas por cuidado para que manchas de alimento não viessem a macular as teclas brancas e marcar as pretas. As duas cores que se mantinham num paralelismo perfeito para todas as outras linhas da vida.
Às vezes, quando havia espaço para devaneios, a moça pensava que seus nomes, afinal, tinham sido bem dados: João e Maria. Marcavam, como na história infantil, o caminho de volta para casa, apenas suas pedrinhas eram musicais, feitas de notas que soltas nada significavam, mas diziam tudo alinhadas em desenhos mirabolantes, atravessando cinco linhas paralelas.
Ela não notou quando as primeiras notas vieram, pareciam soltas assim dispersas pelos dias, foram se emendando até que ouviu embevecida a Sonata nº 2 para piano em Si bemol menor, op. 35, de Frédéric François Chopin. Soube que este era o nome porque o pianista levantara e sussurrara ao seu ouvido. O lamento de despedida foi entrando nela, entrando tão delicadamente que não percebeu quando parou de ir à cozinha.
O último acorde foi sumindo sem alarde, soou através dos braços do pianista abraçando as teclas em transversal, assim como foi sem alarde o último olhar que lançou à moça, que apenas deixou escapar um suspiro enquanto em seu rosto resplandecia o arco-íris.
Vana Comissoli
domingo, 17 de novembro de 2013
Maria e a himenolatria – herança de um passado patriarcal (Fernando Bastos)
“As leis exercem vigilância sobre os crimes conhecidos, a religião exerce-a sobre os crimes secretos.” (François Marie Arouet - Voltaire)
Na maioria das sociedades atuais, a virgindade feminina continua um tabu, e mesmo na ocidental, que se diz laica e democrática, a preservação do hímen está ligada a decência e moralidade. Herdamos a moral judaico-cristã, e o cristianismo nos forneceu o protótipo de “mulher perfeita” – segundo a mentalidade machista e patriarcal.
Sabemos pouco sobre a filha de Ana e Joaquim. A fonte oficial quase nada fala dela, e mesmo assim, mulheres que nunca leram a Bíblia, e até aquelas que se dizem sem religião, são em maior ou menor grau, influenciadas por Maria, a israelita que aos 12 anos (14 ou 16 em outras fontes) foi visitada por um anjo, e após o Sim, engravidou sem a necessidade da seiva masculina, por obra e maestria do Espírito Santo; sendo que, cumprido o tempo necessário da gestação, gerou um bebê de nome Jesus, o filho de Deus.
Maria se tornou para o mundo ocidental, sobretudo a parte católica, a mulher mais influente na questão da moralidade feminina. A humilde hebreia, que não entendia o filho, mas o amava acima de tudo, serviu como uma luva para o clero da cristandade, pois foi usada para convencer filhas, noivas e esposas a não gostarem de sexo, a serem submissas aos homens e só abrirem a boca se um homem permitisse.
Para a doutrina católica ela permaneceu virgem mesmo depois de gerar o bebê (virginitas post partum) e criou--se o dogma da virgindade perpétua, com forte intuito de mostrar que Maria era assexuada, emulando assim as antigas vestais romanas; já os seguidores de Lutero atestam que depois do nascimento de Jesus, ela teve relações normais com José e gerou filhos, deixando de ser virgem. Os que não concordam, dizem que os irmãos a quem Jesus se refere nos Evangelhos, eram filhos somente de José, que os teve antes de conhecer Maria. Não pretendo discutir se Maria teve ou não filhos além de Jesus. Essa querela será discutida ad infinitum, e nunca se chegará a um consenso, cada um vai defender aquilo que lhe é conveniente.
O crucial é focar na “concepção virginal”, o momento em que a noiva de José engravida do Espírito Santo (Deus) indo contra as leis naturais. Por que essa questão é tão relevante? Qual a mensagem velada por trás dessa narrativa, onde a mulher que será a mãe do Redentor, fica desobrigada da relação natural? A mensagem (do clero, formado por homens) é: não é bom que a mulher tenha desejo por sexo, não é bom que ela sinta atração por homem, de modo que há menos risco dela se prostituir, e trair o futuro marido.
A castidade de Maria é o golpe de martelo nos ouvidos femininos, que ouvem desde o berço, que menina deve ser recatada, esperar o “homem certo”, e aceitar o poder masculino. O Mito da Virgem Maria, uma mulher que não conhece homem, no sentido bíblico, é o mais cruel arquétipo feminino, pois ensina a elas que o sexo não é bom, e uma mulher assexuada é o ideal de pureza. Já o arquétipo masculino é do homem viril, capaz de montar um harém, como os reis Davi e Salomão. Essa mentalidade machista ficará arraigada em nossa sociedade, e incrivelmente, são as mulheres que mais contribuem para a preservação desse preconceito, ao doutrinar suas filhas para que sejam “santas” e os filhos garanhões, os que irão “comer” as filhas das outras.
A supervalorização da virgindade feminina tornou-se uma verdadeira cruzada pela himenolatria, com seus defensores pregando que a pureza e a decência estão intrinsecamente ligadas ao hímen ainda não rompido pelo intercurso sexual. Cá no ocidente elas não padecem dos mesmos males de outras culturas, onde com frequência, a mulher que perde a virgindade antes de casar é morta pelos próprios parentes. Contudo, se em nossa sociedade ao homem é dado o direito de ter muitas parceiras na fase solteira, para ela, essa liberdade é mais cerceada. Aceitamos bem a mulher solteira ter intimidades com um homem, desde que esteja namorando, com vistas em casamento. Aquelas que mantêm relacionamentos abalizados apenas em sexo ganham logo uma etiqueta na testa.
A escritora Collete Dowling escreveu em Complexo de Cinderela: “A sexualidade da mulher é tão castrada que ela precisa da desculpa do amor para sentir prazer com o outro.” Isso é tão verdadeiro que mesmo entre as mulheres modernas, há aquelas que condenam suas colegas que têm uma vida sexual livre, com vários parceiros. Mas, assim como suas parentes do Paleolítico, muitas admiram e desejam os homens que saem com muitas mulheres; sinal de que são ótimos reprodutores.
O cientista social Luiz Mott declara: "Bem-aventurada para os crentes, maldita para os incrédulos, a mãe de Jesus carregará para sempre a culpa de ser a autora de um mito que levou e continua levando à infelicidade e à morte milhões de seres humanos culpados por um indevido prazer: o orgasmo".
Com efeito, o relato da mulher virgem que engravida de um deus e gera uma criança divina não é original do cristianismo; nas culturas anteriores é vasto o número de semideuses gerados da união de um deus com uma mortal. Zeus e outros habitantes do Olimpo viviam engravidando belas mortais, geralmente virgens e algumas comprometidas. Em Roma, os imperadores eram semideuses, pois foram concebidos com a semente de um deus com sua mãe mortal. O cristianismo pegou essa ideia, e a transformou para criar sua própria lenda, divulgando assim a importância para as mulheres preservarem a castidade e se afastarem dos perigos do sexo. Maria devia ser o espelho para as filhas de Eva.
Penso que a história ficaria mais bela se fosse contada como provavelmente aconteceu: Maria e José se amaram como qualquer casal, e dessa união nasceu Jesus; talvez ela teve outros filhos, talvez não. O que não podemos é deixar que um conto mítico continue sendo a pedra no meio do caminho que impede a mulher de se sentir plenamente satisfeita em sua sexualidade.
sexta-feira, 15 de novembro de 2013
Um brinde com a mão esquerda (Sônia Pillon)
Esquerda e direita representam os dois lados do observador a partir do centro. Portanto, se manter entre os dois extremos é alcançar o ponto de equilíbrio, certo? Tanto que a frase “O equilíbrio está no caminho do meio” é atribuída a Sidartha Gaumata... Porém, politicamente falando, muitos acreditam que é ficar “em cima do muro”, sem se comprometer...
Mas a verdade é que até na política os posicionamentos extremos, ideologicamente falando, causam transtornos tanto para dominantes como para dominados... A História confirma isso, em todas as épocas e nos cinco continentes.
Associamos o lado direito do cérebro com o pensamento racional, prático, objetivo, e o lado direito, à criatividade, à expressão humana, aos sentimentos e às emoções, e, em síntese, ao coração. Culturalmente, os canhotos durante muito tempo foram discriminados por usarem preferencialmente seu lado esquerdo, apesar de terem, assim como os destros, o comando dos movimentos mais hábeis do lado esquerdo do cérebro.
E é justamente pelo fato do lado esquerdo representar o coração que os noivos passaram a usar a aliança de casamento na mão esquerda... Registros históricos apontam que, por volta de 2800 a.C., os antigos egípcios já usavam um anel para simbolizar o laço matrimonial. Entendiam que um círculo, sem começo nem fim, representava a eternidade da união.
Cerca de dois mil anos depois, os mesmos gregos descobriram o magnetismo, o que acabou influindo também nessa simbologia, por acreditarem que o terceiro dedo da mão esquerda possuía uma veia que levava diretamente ao coração. Assim, passaram a usar um anel de ferro imantado, para que “os corações dos amantes permanecessem para sempre atraídos um pelo outro”...
Controvérsias à parte, a mesma analogia serve para o costume ancestral de brindar com a mão esquerda. O que pode parecer uma prática incomum para a maioria, mas que é habitual para alguns povos antigos. Aliás, só recentemente soube que levantar uma taça com a mão esquerda faz parte da tradição judaica.
Foi uma surpresa levantar uma taça de vinho com a mão esquerda. Senti uma sensação estranha, uma espécie de excitação, quase infantil, como se estivesse transgredindo algo que eu não sabia definir... A explicação que recebi é que entre os judeus, brindar com a mão esquerda é para equilibrar, como se fossem dois pesos em uma mesma balança...
Pensando bem, hoje é sábado! Esse pode ser um bom motivo para se brindar com a mão esquerda, ou não? Aí é com você...
Sônia Pillon é jornalista e escritora, autora dos sites de literatura Letras et Cetera e Cooperativa de Letras.
quinta-feira, 7 de novembro de 2013
Joana do Querer (Thiago Daniel)
Chorou até não querer mais
Quando cansou
Fechou o zíper
Joana cheia de querer
Chorou até querer mais ar
E quando suspirou
Lavou as mãos
Joana cheia de querer
Chorou até amanhecer
Quando viu o sol
Os olhos choveram
Joana cheia de querer
Chorou até o anoitecer
E quando os olhos tocaram o luar
Sentiu a mesma dor
Joana cheia de querer
Não queria mais chorar
Quando viu sangue no ventre
Chorou até morrer
terça-feira, 5 de novembro de 2013
Cálice de vinho (Marcelo Lamas)
Desde sempre tenho que me explicar por causa da abstinência alcoólica. Não posso por a culpa nos interlocutores, pois parte de mim a ansiedade de dar o motivo de não beber, antes que haja alguma expressão de estranheza do outro.
Meu pai tem um pouco disso. Quando criança eu o via tendo que explicar que não bebia porque sempre andara com o pai dele, o vô Chico “Lama”, que só tomava refrigerante. Uso sempre o mesmo expediente.
Já fui indagado: “você toma remédio?” ou “você é religioso?”. Sempre deixo claro que também não é questão ideológica familiar.
A minha avó Alice, esposa do Chico, a vida toda teve garrafas de vinho quase vazias na geladeira. Quando a questionávamos, ela explicava que era recomendado que se tomasse um cálice de vinho por dia. Só que o cálice dela era um generoso copo de requeijão, com volume 3 vezes maior! Nunca vamos saber se era “portuguesisse” dela (Martins Euzébio, seus sobrenomes) ou malandragem para escapar das piadinhas. A velha dormia tardes inteiras. Minha irmã e eu temos esta habilidade também, sem precisar do líquido.
Mas essa mania de ficar achando motivos é coisa da minha cabeça, a necessidade humana de sentir-se socializado. Certa vez fui numa festa que os copos eram escuros e achei o máximo que ninguém estava vendo que eu tomava água. Em férias no Caribe, fiquei maravilhado com o bar que fazia todos os drinks coloridos, com a opção: sem álcool.
Acho que simplesmente é uma questão de paladar, apenas não me cai bem. Outro dia vi um artigo de um cara que não bebe e ele dizia sentir-se “com a habilidade noturna de um leopardo, vendo mais do que os outros e lembrando de tudo depois”. A memória é a substituta da caneta na vida do cronista, não dá pra mandar parar o filme e acender a luz no cinema para pegar aquela frase emprestada.
Ainda vou escrever uma crônica com todos os convites que ouvi e recebi para festas, programas e eventos em turmas já divertidamente “embaladas”, que logicamente nunca aconteceram.
Posso garantir que jamais me aproveitei de presas embriagadas. Uma questão de princípio. Com algumas exceções, eu acho, não lembro bem.
Tenho inveja daqueles que podem usar a desculpa da canção do Kleiton e do Kledir Ramil:
“Depois do terceiro ou quarto copo
Tudo que vier eu topo.
Tudo que vier, vem bem.
Quando bebo perco o juízo.
Não me responsabilizo
Nem por mim, nem por ninguém”.
Marcelo Lamas, autor de “Arrumadinhas”.
marcelolamas@globo.com
domingo, 3 de novembro de 2013
Sonhar (Elianete Vieira)
Sonhar é saudável
Nos leva ao futuro que gostaríamos ter
Aos lugares que queremos visitar
Às posições profissionais que um dia viremos a estar
À presença no altar com o amor se casar.
Sonhar é planejar
Marcar as férias, agendar hotel e passagens
Traçar a rota e lugares a visitar
Além das reservas para gastar
E preparar a câmera para fotografar.
Sonhar é se preparar
Com cuidado, os cursos, escolher
Uma boa empresa selecionar
Cumprir os pré-requisitos para se promover
E a posição profissional almejada alcançar.
Sonhar é lutar
Vencer as barreiras escolares
Vencer a concorrência por vagas
Vencer o dia a dia estafante
Vencer o trânsito nas grandes cidades.
Sonhar é dormir cansado
Rolar na cama insone
Ou deitar e apagar num sono profundo
Ou ler um livro para relaxar
E assim, acordar leve para um novo dia.
Deitar e olhar as nuvens correndo
Formando imagens conhecidas
Também é sonhar
É nesse momento que nos imaginamos no amanhã
E enxergamos nosso eu futuro.
Sonhar é realizar
As ações executar
As vitórias comemorar
E aí sim, teremos a certeza
De que tivemos muita sorte.
terça-feira, 29 de outubro de 2013
Escritor Convidado (Marcos Santos)
terça-feira, 22 de outubro de 2013
sábado, 19 de outubro de 2013
Acordes (Vana Comissoli)
Abriu a porta cansado, era a décima casa que visitava para um possível aluguel que se mostrava impossível. Todas tão sem possibilidades, sem nem uma nota musical bailando à sua espera. Nem sequer entrou totalmente, a cabeça desencantada foi olhando o chão.
O piso de pau marfim tinha as tábuas colocadas de forma enviesada e ele fascinou. Atravessou o portal com olhos sonhando e já vendo como tudo ficaria. Nem se deu ao trabalho de olhar os outros cômodos, eram apenas mecanismos de sobrevivência: comer, dormir e banhar-se. Coisas que fazia na obrigação.
Voltou à imobiliária e não pechinchou o aluguel, fechou negócio para logo infernizar a transportadora, era absolutamente necessário que se mudasse no dia seguinte, tinha pouca coisa e fora o piano de cauda, com nada mais precisavam ter cuidados.
Os homens levaram o piano quase sob açoite, ele não parava de gritar impropérios e exigir delicadezas que espontaneamente estavam sendo feitas. Depois foi com régua na mão que ele escolheu o local do instrumento, bem ao centro da sala.
O escasso mobiliário foi colocado à vontade dos transportadores. Não tinham muito o que escolher, cama e armário apesar de capengas só podem ir no quarto, fogão e geladeira tinham a cozinha como destino certo. Algumas poucas caixas de roupas e louças, todas misturadas, ficaram no corredor à espera da disposição de seu dono para ir aos armários. Sabe-se lá quando.
Assim que a porta fechou atrás dos homens suados, ele abriu as janelas e o sol da manhã escorregou pelo chão, tornando-o mais claro e pondo reflexos de brilho sobre a lateral do piano lustroso. Fora colocado ao contrário do encaixe das tábuas, o que davam uma desconcertante transversalidade, como se os caminhos se cruzassem sem jamais se tocar.
Ficou vários e mais vários minutos em êxtase olhando o que lhe parecia uma obra prima, prestes a bocejar criando vida. Sentia o fluir do sangue através dele, pronto a entrar nas veias retas do piso e das teclas. Sentou-se em reverência no banco junto ao instrumento e acarinhou as teclas com devoção, para em seguida fazer soar os primeiros acordes de uma sonata de Schubert. Sabia de cor cada nota e fechava os olhos como se a música formasse imagens dentro dele. Algo perdido no tempo, muito antes dele ter vindo ao mundo para tocar.
A noite chegou e ele continuava tocando, levantou-se algumas vezes para admirar a transversalidade. Era atravessado na vida e tinha, depois de muita busca sem saber o que buscava, encontrado a representação de si mesmo. A música atravessando a planura dos dias e a paralelismo com que convivia no mundo. Toda a luz vinda das notas que dançavam em torno dele, numa corporificação não permitida aos outros simples mortais.
Não se achava um exímio pianista, não achava que ninguém era digno de ser assim chamado. Não tinha amigos e nem namorada, nunca tivera. Quem falaria com tanto acerto como o piano? Quem teria uma curva mais precisa e suave que a cauda do instrumento? Quem se deixaria tocar com tanta sensualidade, raiva, amor, dúvida, tristeza do que as teclas que falavam, ronronavam, gritavam e seduziam? O único filme que merecera sua atenção foi A Lenda do Pianista do Mar e pela primeira vez na vida desejara ser outra pessoa que não ele, para deslizar pelo balouçante salão de um navio enquanto guiava seu imortal amor numa suavidade ondeada.
Solitário? Jamais! Vivia acompanhado desta alma musical que se corporificava sob seus dedos. Já dormira incontáveis noites sob o corpo do piano, como quem está com a mulher amada. Seus orgasmos eram infinitamente mais completos e lúdicos sob ele.
Às vezes se lembrava de banhar-se, comer, trocar de roupa para em seguida voltar aos pés do piano quase humilde, quase culpado por tê-lo abandonado nas exigências da vida.
Não fechava as janelas, imaginava que as notas precisavam de fuga para o céu de onde vieram, tinha certeza. No início os vizinhos ouviam encantados a música elegante, refinada e perfeita que o novo morador trouxera. Todos os mestres estavam presentes nela, devia ser de acordo com o estado do morador, cogitavam meio em surdina por cima do muro, como se não quisessem incomodar o pianista. Quando a música, fosse de quem fosse, atravessara as noites roubando o sono tranquilo, começaram a não achar tão bom assim. Quem seria o escolhido para bater àquela porta que apenas se entreabria para receber compras do mercado, na certa feitas pela internet ou telefone? Teria telefone? Nunca ouviram um único tilintar.
O vizinho não vinha à rua cuidar do jardim, nem sequer por o lixo para ser recolhido. Talvez de noite fizesse isso? Porque o jardim estava mais impecável do que jamais fora e belas rosas brancas desabrochavam em grandes e perfumadas pétalas. Alguém teria que enfrentar a tarefa, pedindo ao estranho morador que não tocasse durante a noite. Quem? Sem nunca terem visto o pianista, como era chamado, tinham um estranho medo dele.
João Gustavo ficava alheio a esses movimentos, não se daria ao desagradável trabalho de pensar em vizinhos, eram formigas para ele, as quais se pisa sem se prestar atenção, ou talvez nem sequer existissem realmente.
Maria Clara era uma mocinha sem graça, meio escondida pelos escorridos cabelos mais claros do que o desejável e a pele que se perdia nele por tão parecida ser na cor. Franzina, com seios encolhidos e pernas longas e finas cobertas por vestidos fora de época. Talvez pela aparência desamparada, acreditaram que o pianista se compadeceria e foi a escolhida. Para surpresa da vizinhança e alívio, ela se ofereceu para a empreitada. Não sabiam que muitas e muitas noites ela se esgueirara para baixo das janelas musicais e ali ficara até o amanhecer pintar o céu, o que lhe deu umas olheiras escuras que mais apareciam no rosto de leite.
João Gustavo nem sequer ouviu a primeira batida na porta feita por dedos trêmulos e magros, sem força para um toque firme. Talvez na terceira ou quarta vez tenha ouvido, mas era treinado em ignorar vendedores e pedintes que nada encontrariam com ele. Irritado com a insistência atendeu, os olhos cuspindo raiva pela intromissão.
Olhou a insignificância da figura e esperou sem uma palavra. Ela gaguejou o pedido para em seguida acrescentar que não era sua vontade, que o ouvia hipnotizada sob a janela e que por sua vontade ele tocaria sem qualquer intervalo. João fincou os olhos nos dela, não ouviu muito bem o recado, mas o encantou a ouvinte inesperada. Mandou-a entrar e ofereceu o chão como assento. Maria Clara não achou nada estranho e sentou na transversalidade do piano.
A vizinhança não teve o alívio esperado e, ao verem que a moça entrava e por lá ficava horas a fio ao longo dos dias, também não teve o amor surpreendente e tórrido que levaria vida ao pianista, na opinião deles.
João Gustavo em nada mudou sua rotina, apenas acrescentou um abrir de porta. Maria Clara não abria a boca nem para o bom dia, isso era absolutamente desnecessário e era um acerto tácito entre ambos. Sabiam que o som de suas vozes atormentaria a perfeita harmonia das notas.
Ao contrário do esperado pelos maledicentes vizinhos, ela não se tornou cantora de ópera e muito menos apareceu grávida. Não aprendeu a tocar piano e continuou não distinguindo uma clave de sol de uma clave de fá. A música era algo vivo que bastava que fosse João Gustavo a ter a dor de parir através do estudo das bolinhas e riscos negros atravessados nas folhas pautadas.
Os anos se passaram e a vizinhança se acostumou a dormir embalada por Mozart, Bach e sua turma. Os pais de Maria Clara pararam de reclamar que ela ficaria difamada entrando na casa de um homem solteiro, não prestavam atenção alguma a isso e às vezes nem sequer notavam que ela não estava em casa.
A música cessou de repente, sem desafinar e sem o acorde final. No meio de Minha Amada Imortal, a Nona Sinfonia de Beethoven.
Houve alvoroço na vizinhança, algo novo e muito sério acontecera. Bateriam na porta? Lembraram-se da moça branca, nem os pais sabiam o que havia acontecido com ela, parecia sumida como uma última nota tocada que paira um pouco no ar e se esvai sem ruído algum. Pensaram em chamar a polícia, mas era um bairro tão família que negaram o alvoroço. Pensaram em bater à porta, a moça era maior de idade, alegariam o quê? O grandalhão da rua, que impunha respeito pelo tamanho dos bíceps, foi escolhido para espiar pela janela. Pé ante pé, nervoso como se o dono da casa pudesse enfrenta-lo numa briga, espiou.
Deitado sobre o piano, abraçando as teclas, João Gustavo parecia dormir. Transversal. No chão cruzando as linhas das tábuas do chão, tão clara como pau marfim, Maria Clara também transversal.
O duplo sepultamento foi feito ao som da Sonata nº 2 para piano em Si bemol menor, op. 35 de Frédéric François Chopin, que chamamos de Marcha Fúnebre, mas que o pianista jamais assim intitulara. A vizinhança assumiu os preparativos, não tiveram coragem de mandar o pianista para um enterro indigente, ele absorvera suas emoções transformando-as em música, de modo que jamais tomaram proporções abissais em seus peitos.
Após alguns dias e noites silenciosos, onde ninguém se acomodava muito bem no sono, acostumados estavam a ser embalados, muito fraco e depois no velho e desejado volume de antes, a música voltou a percorrer as ruas e bater nas casas com sua esperança, tragédia e luz.
Na primeira manhã após a volta das melodias houve certo alvoroço, uma curiosidade velada para descobrir quem tocava, ou quem ligara o som dentro da casa que nunca mais conseguiu ser alugada. Fracas tentativas de busca e insossas perguntas foram feitas e calaram rapidamente: sem combinarem nada os vizinhos aceitaram como vindas do céu, para onde subiram levadas pelo amor do pianista. Se descobrissem o encanto estouraria como bolha de sabão, ou então seria mesmo a alma de João Gustavo que buscava seu piano à transversal das tábuas de pau marfim. Também nunca comentaram, nem sequer deram a entender que ouviam um fraco suspiro de mulher.
Vana Comissoli
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
A inglória busca da Felicidade (Fernando Bastos)
Há pelo menos três necessidades imprescindíveis para nossa existência: beber água, comer e dormir. Alguém conseguiria ser feliz apenas tendo essas necessidades satisfeitas? Talvez alguns eremitas e os sadhus do hinduísmo. No entanto, não creio que existam pessoas que consigam ser felizes somente com essas três necessidades básicas, se forem visitadas ao longo da vida por dores e doenças.
De forma que chegamos à primeira conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono e saúde. Se alguns conseguem isolar-se, a maioria necessita viver em grupo, pois o homem é um ser social. Assim, precisa de gente ao lado.
Segunda conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono, saúde e ter amigos por perto. Mas e a moradia? É certo que há pessoas felizes vivendo na rua, e tendo alguns amigos, mas creio que são raras. O ser humano precisa de uma casa, que o abrigue dos humores do tempo. Casa é um bem material, para consegui-la, você deve trabalhar, a não ser que seja criança, viva sob favor de alguém, ganhou herança ou na loteria.
Terceira conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono, saúde, ter amigos por perto e um trabalho que nos permita ter uma casa onde possamos nos abrigar. Parece que isso bastaria para o ser humano ser feliz. E claro, há os que garantem sê-lo, mas são poucos. A biologia moldou nossos cérebros para nos acasalarmos. O sexo é um fator essencial para a felicidade humana. É verdade que alguns vivem sem ele, mas para a maioria é difícil. E mesmo para religiosos que escolheram a vida celibatária, sabemos o quão penoso é se manterem castos.
Quarta conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, comida, noite de sono, saúde, ter amigos por perto, um trabalho que nos permita ter uma casa onde possamos nos abrigar e sexo. Talvez o que foi exposto acima, mais o acréscimo de alguns prazeres fundamentais, como acesso ao conhecimento e algumas diversões bastaria para sermos felizes. Matérias em revistas e jornais mostram a existência de milhares de solteiros que vivem sozinhos e estão de bem com a vida. O problema é que o ser humano, diante do dilema “liberdade ou segurança”, geralmente escolhe o segundo. Essa segurança ele acredita ser possível apenas ao lado de outra pessoa, que seja somente dele, que lhe faça juras de amor eterno e o honre com fidelidade. Então, casa. Mas casamento sem procriação não é natural, pelo menos para a maioria. Portanto, fazemos filhos.
Quinta conclusão. Para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono, saúde, ter amigos por perto, um trabalho que nos permita ter uma casa onde possamos nos abrigar, sexo, acesso ao conhecimento, um pouco de diversão, uma esposa ou marido e filhos. Mas esperem. O número de divórcios no Brasil em 2011 cresceu 45,6% em relação ao ano anterior. Para cada quatro casamentos, há um divórcio. Os especialistas garantem que teríamos mais dissoluções do contrato conjugal se não houvesse as complicações de uma separação. O que falta ainda? Muitos argumentarão que falta o mais importante, a crença em um ser sobrenatural, que nos conforte espiritualmente. E ele é Deus.
Sexta conclusão: para nosso bem estar completo, precisamos, além do que já foi dito, acreditar em Deus. Entretanto, será verdade que a crença em Deus faz as pessoas felizes? Alguns dirão que sim. Mas olhando bem de perto, notaremos sem dificuldade que mesmo as pessoas mais fervorosas têm suas chagas para soprar. Paradoxalmente, muitas vezes é a própria crença religiosa a causadora da infelicidade, como atestam muitos especialistas em mente humana. Se pesquisarmos a vida de grandes nomes da Igreja, veremos que muitos padeceram com fortes crises existenciais, e morreram infelizes, apesar da fé que diziam possuir. Agostinho de Hipona lutou desesperadamente a vida inteira contra as tentações da carne; na obra “Confissões” revela como fora na juventude, um rapaz com gosto pela vida devassa. Lutero, em seus delírios, vociferava contra Satã, que nunca o deixou em paz.
Afinal, o que pode nos fazer felizes? Parece claro que a felicidade absoluta não existe; nossa vida é permeada por estados mentais em que nos sentimos muito alegres ou muito tristes, com variações que dependem de como lidamos com as mensagens externas que recebemos. O que parece não haver dúvida é que toda inquietação tem uma origem. Vem de dentro da pessoa, de seu cérebro, seu próprio eu. Como disse Buda, são seus desejos (fabricados pela mente, pelo seu eu) que o inquietam, e trazem sofrimento.
Todo ser humano deseja, logo, sofremos. Devemos, portanto, para diminuir nosso sofrimento, e aumentar o tempo de bem estar, ter equilíbrio e inteligência para lidar com nossos desejos, não sendo reféns deles, mas usando-os a nosso favor. Uma regra simples, mas por ser simples, tão difícil de ser seguida.
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
A festa de Wilfred (Sônia Pillon)
Os portões do Parque Municipal de Eventos se abriram. Era a primeira noite da Schützenfest, a tão esperada festa de outubro de Jaraguá do Sul. Era o momento máximo em que os alvos e a tradição do tiro passa a atrair os visitantes. Integrantes dos clubes e sociedades de tiro que resgatam a cultura trazida pelos exímios guerreiros e caçadores germânicos estavam todos lá. Garbosos em seus trajes típicos, com o peito estufado de orgulho e emoção, eles desfilavam e acenavam para a plateia, segurando bandeiras. Eles ostestavam faixas e medalhas.
Alguns sorriam e respondiam os chamamentos dos parentes e amigos, outros se mantinham solenes. Majestades do tiro e da beleza, eles eram seguidos pela banda alemã.
No palco do pavilhão principal estavam as autoridades e aqueles que nos bastidores prepararam a solenidade, com cobertura da imprensa catarinense. Até um canal vindo especialmente da Alemanha apareceu para conferir o que aquela cidade, encravada em um vale no Sul do Brasil, era capaz de fazer. Eles faziam um documentário para mostrar o que os descendentes dos imigrantes, que há dois séculos atravessaram o oceano para criar o Novo Mundo, foram capazes de empreender.
Em meio à rainha e às princesas, o sorridente personagem “Wilfred” esbanjava simpatia, sempre segurando a arma que, ao contrário do que inicialmente se poderia imaginar, só buscava atirar em cheio na alegria, levando a concórdia e a confraternização durante os 11 dias da festividade.
Um documento pela autoridade máxima do município foi assinado e lido. Era de para as majestades e todos os demais presentes, decretando que a partir daquele momento, apenas a alegria, o o entretenimento e o entendimento deviam imperar.
Ao circular pelos pavilhões, Wilfred observava os atiradores dos estandes de tiro, de artesanato, os deliciosos pratos da culinária típica germânica, assim como os boxes de batata recheada, crepes, do tão procurado chope gelado...
Casais de todas as idades rodopiavam na pista de dança, enquanto outros pulavam e seguiam a coreografia comandada pela banda... Wilfred olhava tudo e mantinha o permanente sorriso enquanto percorria os pavilhões, sempre muito festejado pelos participantes. Ele prometeu para si mesmo que iria distribuir alegria durante todo o decorrer da Festa dos Atiradores de Jaraguá do Sul!
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Mar (Thiago Daniel)
Cobriu seus pés cheios de areia
A colcha
de três gerações
Pensou na infância
os tapas das ondas
nos quadris
o beijo
no primeiro namorado
o filho
do único marido
o cesto de roupas no ombro
o pássaro roubando peixe
a ruga nos olhos do filho
que aos sete pediu um irmão
do pai falecido
Um sorriso brotou da lágrima
E quando o céu encheu de flores
Fez-se mar
domingo, 6 de outubro de 2013
Noivado e casamento (Marcelo Lamas)
E o Roberval chegou de mansinho na minha mesa e me intimou:
- Agora só falta a tua parte!
Fiquei pensando em alguma pendência profissional que eu tivesse com ele. Não lembrei de nada e questionei:
- Desculpa, não tô lembrando. O que estou te devendo?
- Não! Não é que tu estejas devendo. Mas é o seguinte...já encomendei o jantar e as flores e despistei a Luzmarina.
- E tu precisas de mim pra quê?
- Ora, pra quê? Tu não é o escritor?
- E o que isso tem a ver?
- Vou pedir a Luzmarina em casamento hoje à noite e agora só falta tu ‘escrever’ o cartão.
- Como assim?
- Ué!? Vou te dar o cartão que comprei e ai tu escreve o pedido de noivado por mim.
- Como eu vou fazer isso?
- Bem, aí é contigo né? Tu és escritor, deves saber o que escrever.
Além de obituário, estatuto de time, carta para antecipar passaporte, eu tinha um certo histórico no segmento “amor”, pois fazia cartinhas pra uma namoradinha do colégio – mas a prima dela que fazia o papel de carteiro foi quem apaixonou-se – e também participei de uma tentativa frustrada de fazer uma guria voltar pra um amigo meu.
Como o Roberval era bem parceiro e eu torcia pelo casal, fiz o texto pro caboclo. Ele disse que apenas transcreveu e assinou. E o bolo já foi encomendado.
Noutra ocasião, a Gertrudes aprochegou-se:
- Oh! Lamas, tenho um convite pra te fazer...aceitas ser o comentarista do meu casamento?
- Claro que sim, respondi prontamente.
- Não queres pensar com calma e responder depois?
- Já tá confirmado!
Dei a resposta de bate-pronto por causa da consideração pela guria, que mesmo sendo de uma família religiosa, convidou a mim, um colega de trabalho, impossível recusar.
Somente na véspera do enlace, fui entender o porquê dela ter oferecido “um tempo pra pensar”. Ela entregou-me uma “apostila” com as minhas falas e de vez em quando eu passava a bola para o padre. No dia que aceitei o convite achei que seria apenas para ler um versículo.
Fiquei com a consciência pesada, pois embora eu tenha amigo padre, tenha jogado futebol no time dos seminaristas de Corupá e o hábito de preencher cadastro atestando ser católico, eu NUNCA me confessei e mesmo assim tava lá em cima do altar, no meio dos graduados.
Em contrapartida, eu li a Bíblia três vezes. Coisas da vida de escritor.
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
Poema da vida (Elianete Vieira)
Poetisa, Iza me conquistou pela doçura. Com 74 anos, cheia de energia, preparou a festa de 80 anos do marido. Amiga virtual, descreveu os docinhos que fez ao me convidar para nos conhecermos.
Dia de comemorar a vida, a saúde, a família. Como é bom ver as pessoas chegando cada vez mais longe - semana passada, o tempo contou 5 anos da partida do meu pai a menos de 4 meses de completar 80 anos.
Me sentindo honrada com o convite, convidei o GPS para me acompanhar e lá fui eu desbravar as ruas desconhecidas de uma cidade vizinha.
No caminho, havia não uma pedra Drummond, mas um vale. Uma rua que desce íngreme e logo sobe mais íngreme ainda. Lá no final, um semáforo segurava os carros prestes a entrar na rodovia. No inicio da subida existe um semáforo que mede a velocidade máxima: 40 km/h.
Independente deste controle os carros nem saíam da 1a marcha. Motoristas sabidos mantinham distância de segurança uns dos outros. Subidona à vista.
Eu, parada, olhando o entorno, vi algumas senhoras bem arrumadas, com Bíblia na mão, caminhando juntas e conversando. Distraídas, atravessaram a rua sem perceber que estávamos em movimento lento parando dois metros depois.
Eu sai e logo parei. Continuei olhando pelo retrovisor. O carro que vinha atrás, havia deixado um espaço de um carro entre o meu e o dele, talvez imaginando que eu poderia dar uma "descidinha" porque foi isso o que ele fez ao iniciar o movimento.
O que ele não previu e uma das senhoras também não, foi que no exato momento da "descidinha", ela ainda estivesse passando por trás do carro.
Ela talvez não tenha sido motorista ou não seja tão ágil agora com seus belos cabelos prateados.
Eu, parada, aguardando o momento de andar 2-3 metros novamente, vi a senhora sumir atrás do carro. A "descidinha" do carro ao engatar a primeira, derrubou a vovó.
Imediatamente saíram do carro três homens que acudiram a senhora, levando-a nos braços para a segurança da calçada, enquanto o motorista procurava encostar e liberar o tráfego.
Até onde pude ver, a vovó conseguiu ficar em pé, já na calçada. Foi atendida prontamente e as amigas logo a rodearam.
Eu segui em paz, feliz em ver que o pequeno incidente não ficou sem atendimento.
Ah sim, e a festa? Foi maravilhosa.
Com o octogenário feliz cumprimentava a todos, no mundo dele, pois o Alzeimer lhe tira aos poucos a consciência presente, deixando apenas o passado na lembrança. O pastor a todos abençoou. A poetisa contou como eles se conheceram e citou momentos da vida deles em quase 50 anos de casamento.
Ela declamou um lindo poema de amor e confiança, dedicado ao seu príncipe e filha, emocionando os presentes. E assim, poetando a vida, ela comemorará seu aniversário em dezembro com o lançamento do livro que está no prelo.
Elianete Vieira
quarta-feira, 2 de outubro de 2013
Noites de Sábado (Robert Brotzke)
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
Aproveitando-se do caos (Patrícia Grah)
Inicio esta crônica filosófica ressaltando os últimos acontecimentos em nossa região. Enchentes, alagamentos, pessoas desabrigadas de um lado, comerciantes gananciosos e aproveitadores de outro.
Penso neste fato e a primeira coisa que me vêm à mente é a palavra HUMANO. Afinal, o que é ser humano?
Segundo o dicionário, - “O termo humano utiliza-se também como adjetivo com o significado de bondoso ou generoso, compreensivo ou tolerante.” (fonte: www.significados.com.br)
Mas, bem honestamente, é isto que estamos sendo? Será que em determinados momentos não estamos nos comportando como os animais, que brigam por alimento, pelo par, pelo espaço, tudo isto agindo de forma bruta e irracional?
Só pra refletir.
Fui informada de que em uma cidade vizinha atingida pela água, comerciantes estão cobrando R$ 24,00 por uma bambona de água – que normalmente não passa dos R$ 7,00. Estão vendendo pão francês pela “mixaria” de R$ 22,00 kg. E por ai vai, nem quero saber a exploração na alimentação básica.
Penso eu, que este seria o momento e a oportunidade de estarmos nos ajudando, de termos compaixão pelo próximo e não medir esforços – físicos ou financeiros – para contribuir com quem não teve muita sorte, mas não, ao invés disto nos deparamos com situações como esta, onde quem já perdeu o que tinha, se obriga a pagar preço de ouro por pão e água, o que há de mais essencial na alimentação e vida do ser HUMANO.
Queria terminar com uma frase mais bonita, mas não encontrei palavras, só me resta mesmo é indignação.
“Fazer o bem sem olhar a quem”, algo que muitos dizem, mas poucos vivem!
Patricia Grah, 24 de setembro de 2013
terça-feira, 17 de setembro de 2013
Por que ter Filhos? (Fernando Bastos)
Dou minha vida pelos meus filhos, não consigo imaginar minha vida sem eles. Filhos dão trabalho, mas os momentos de prazer ao lado deles superam qualquer dificuldade. Sei que estou repetindo frases clichês, mas que representam uma verdade para muitos pais.
Acredito que você também, que já é mãe ou pai, pensa igual a mim, que filhos são tudo isso que acabei de mencionar, mas será que somos a maioria? Será que filhos estão trazendo felicidade para a maioria dos pais? E estes, estão correspondendo ao que um filho necessita?
Um filho pode mudar a vida do casal para sempre. Nos dois sentidos. Esse artigo tem por objetivo conscientizar jovens enamorados a pensar muito antes de aumentar a família, pois percebo muitos casais fazendo filhos e não tendo maturidade suficiente para cuidá-los do jeito que toda criança merece.
Você já se perguntou por que geramos descendentes?
Basicamente, crianças vêm ao mundo por dois motivos: por descuido do casal ou por que os pais (ou um deles) acreditam que o filho irá completá-los (as). Nesse caso, o filho representa aquela centelha da felicidade que ainda falta ao genitor; uma espécie de salvador da Pátria, que irá dar sentido à sua vida.
Certamente há outros fatores que motivam as pessoas a ter filho, por exemplo, corresponder ao que a sociedade espera delas e não ficar para titia ou titio. Mas, de início devo dizer que não acredito que a intenção primeira seja a vontade de presentear um filho com esse mundo lindo e maravilhoso, cheio de justiça, paz e fraternidade. Sabemos que o lugar que ele encontrará não é esse. Ninguém faz um filho pensando primeiro na criança. É antes pensando em si mesmo. Em quais benefícios ela lhe trará. O homem que mal havia saído da pré-história não pensava em controle de natalidade; procriava porque os deuses queriam e pronto. E quanto mais descendente melhor, pois esse novo integrante representava a futura mão de obra (ajuda na lavoura e nos serviços de casa) apoio aos pais na velhice, e soldados para o exército. Hoje, filho não representa mais um auxílio econômico (ao contrário, embora as crianças sejam a alegria da casa, dão despesa) e passou a ter valor emocional, o apoio psicológico na vida do casal.
O pensamento de alguns filósofos niilistas é perturbador, mas gostaria de convidar o leitor a refletir sobre ele: se fôssemos racionais e menos egoístas, não teríamos motivo para colocar bebês no mundo. Antes, adotaríamos todos os infantes abandonados. Pois aí sim, estaríamos exercendo um dos maiores atos de amor. Ora, se fosse dado aos pais uma bola de cristal a fim de saber tudo o que seu filho iria passar, é bem certo que evitariam tanta dor a ele, desistindo da procriação. Quem colocaria um bebê no mundo se soubesse que ele padeceria de uma doença terrível, que o flagelaria por toda a vida ou que, na adolescência, seria atropelado e ficasse numa cadeira de rodas para sempre? Mesmo quando um bebê nasce sadio, terá outros obstáculos à medida que vai crescendo. Cólicas, dores de dente, de ouvido, na primeira infância; conflitos na adolescência; os medos e inseguranças na fase adulta e na velhice, as dores da idade, que culminam na morte, quase sempre precedida por meses ou anos de melancolia. A vida é tão dura, que a maioria da população precisa do estímulo de drogas para suportá-la. Lembre-se que o álcool e os antidepressivos também são drogas. Cerca de 3.000 pessoas por dia cometem suicídio no mundo, a cada 30 segundos uma pessoa se mata. Para cada ato que termina em morte, há vinte pessoas que tentaram e não conseguiram, muitas vezes deixando sequelas. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS).
No entanto, Bertrand Russel, filósofo britânico, criticava os niilistas, dizendo que eles só viam parte do problema, e que o mundo poderia ser um lugar melhor se as pessoas dessem as mãos e lutassem por um lugar melhor de se viver. Estou com Sir Russell, embora às vezes me desanimo com tantas notícias desoladoras: crianças maltratadas e sendo rejeitadas pelos pais, que impelidos por um momento de prazer, não pensaram que daquele ato poderia surgir uma vida.
Ao ler várias pesquisas na internet, vejo que a maioria dos estudos científicos aponta para um resultado nem um pouco politicamente correto: dão que casais com filhos são mais infelizes que casais sem filho. No livro “O Ciclo Vital” de Helen Bee, psicóloga americana, ela concorda com esse pensamento. Ela ainda informa que casais com filhos são insatisfeitos até a hora em que eles saem de casa. Depois disso, a situação se inverte, de modo que os casais que tiveram filhos se tornam mais felizes do que aqueles casais que não os tiveram. A explicação: depois de velhos, a necessidade de se divertir a dois, sair à noite para festas declina vigorosamente, e o casal quer ficar o maior tempo possível em casa. Portanto, aquele casal que teve filhos e agora os vê crescidos, morando em suas próprias casas, sempre que quiser, poderá visitá-los, brincar com os netos, de modo que sentirá menos solidão do que aquele outro casal sem filhos.
Vi outro estudo, no entanto (Universidade de Milão), que mostra que casais com bom rendimento financeiro e têm filhos são mais felizes que casais pobres que têm filhos. É que os casais ricos podem manter a vida social, usufruir dos prazeres que o dinheiro proporciona, têm babás e bons colégios para deixar os filhos, conseguem suprir todas as necessidades básicas que um filho exige: proteção, educação, lazer. Uma das fontes de frustração de casais mais desfavorecidos é não poder dar o mínimo que seus filhos merecem.
Na minha opinião, precisamos relativizar o efeito dos filhos em nossa felicidade. Eles só serão obstáculos se não estivermos preparados psicologicamente para recebê-los. Infelizmente, na mais das vezes, é o que acontece. Acredito também que precisa ter vocação para ser pai ou mãe. E saber renunciar a muitos prazeres da vida de solteiro, porque filho exige responsabilidade, afeto, carinho. E dedicação total dos pais por pelo menos dezoito anos.
Penso que ninguém deveria fazer filho apenas porque os outros estão pressionando ou porque você anda triste com a vida. Se alguém deseja casar e ter filhos, deve estar preparado para tudo que virá pela frente. Não são apenas beijos e sorrisos enternecedores que irão encontrar; ser pai ou mãe demanda muita paciência, renúncia e responsabilidade. Não há dúvida de que aquelas pessoas cujo temperamento é mais calmo, conciliador, gostam de ficar em casa e adoram crianças terão maiores chances de serem felizes no casamento com prole do que aquelas de espírito livre, amantes da vida noturna, e que são impacientes por natureza. Como esse segundo grupo é a maioria, fica fácil de entender porque as pesquisas revelam tantos casais decepcionados com a missão de cuidar de seus rebentos.
O que não deveria mais acontecer é casais sem estrutura psicológica colocando filhos no mundo. Muitos desses casais vão depois largá-los para outros cuidarem ou os deixarão em orfanatos, na rua, e em lugares piores. Quem está pensando em gerar um filho, devia se perguntar: tenho condições de dar o que a criança merece? Saberei renunciar a assuntos de meu agrado pelo filho? Penso que o mundo já esta cheio de crianças abandonadas pelos pais. Elas não merecem isso.