domingo, 29 de julho de 2012

Escritor Convidado: Luiz Carlos Amorim

VALORIZANDO A LITERATURA DE HOJE
Por Luiz Carlos Amorim – Escritor – Http://luizcarlosamorim.blogspot.com

Recebo mais uma carta do professor Celestino Sachet, escritor catarinense estudioso da literatura catarinense. Ele lê tudo o que se produz no Estado. É dele o livro “ A Literatura Catarinense, que registra tudo sobre a produção literária em nosso estado, desde a sua origem mais remota até a época da publicação do livro. A primeira edição do livro saiu em 1985, mas ele está preparando uma nova, atualizada, que deve sair este ano.


Pois o professor Celestino lê tudo, tim-tim por tim-tim do que lhe cai na mão. Por isso ele sabe o que está acontecendo quando se trata da produção literária em Santa Catarina. Mando-lhe regularmente a revista Suplemento Literário A ILHA, do grupo do mesmo nome, do qual sou editor, e ele lê e me retorna comentando o que leu.


Pois a carta que recebi dele é sobre a leitura da edição de número 120 da revista do Grupo Literário A ILHA. Entre outras coisas, ele diz: “Apreciei o texto “Tecnologia de ponta na escola pública”. Também penso que de pouco adianta entupir menininhos e menininhas com os últimos inventos da tecnologia digital. Entendo que adquirir informação não é aprender. Aprender é transformar essa informação empacotada em capacidades para instalar em nossos educandos o hábito da inovação – capacidade para domesticar a informação que nos passam – não importa o meio pelo qual ela chega a nós – e tirar dela o que nos serve para criarmos valores que nos valham na hora em que o desconhecido nos agarrar pela perna.”


Não é a mais pura verdade? Professor Celestino fechou com chave de ouro o meu artigo. E ele continua: “Vamos aos poemas que enfeitam a revista. Há tantos... Fico com “A falta que eu quero”, na última estrofe: ´posso ensinar a fazer / a sentir a minha ausência / melhor, / sentir a falta de outro / que sentir a falta de si´. Está aí um excelente desafio à inovação a partir do próprio título: A falta que eu quero, onde a necessidade pessoal vai além de todas as convenções filosóficas e linguísticas. Sentir a falta do outro é o que a humanidade está precisando.” (O poema é de Adriana Niétzkar e Vanucci Deucher).


Obrigado, professor Celestino, por apreciar a nossa revista. Isso a valoriza.


                            *****************

SAUDADE
Luiz Carlos Amorim

Ah, essa saudade vadia,
a passear, insistente,
pelo fundo dos meus olhos;
não se decide, afinal,
a ir embora de vez...
Brinca com a tristeza
que transcende o meu olhar,
invade o meu coração
e mata todas as flores
que desabrocharam

em mim...


CHAMA
Luiz Carlos Amorim

Um menino
cruzou o meu caminho.
Despido de tudo,
até quase de vida,
restava-lhe, apenas,
no fundo dos olhos,
uma chama pequena,
quase apagada,
de pura inocência.
Dei-lhe um sorriso,
velho e surrado
de esmola
e fui procurar
a minha chama
perdida...


___________________

Sobre o autor:


Luiz Carlos Amorim é Coordenador do Grupo Literário A ILHA em SC, com 32 anos de atividades e editor das Edições A ILHA, que publicam as revistas Suplemento LIterário A ILHA e Mirandum (Confraria de Quintana), além de mais de 50 livros.
Foi eleito a Personalidade Literária de 2011 pela Academia Catarinense de Letras e Artes e ocupa a cadeira 19 da Academia Sul Brasileira de Letras.
Editor de conteúdo do portal PROSA, POESIA & CIA. e autor de 27 livros de crônicas, contos e poemas, três deles publicados no exterior. Colaborador de revistas e jornais no Brasil e exterior – tem trabalhos publicados na Índia, Rússia, Grécia, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Cuba, Argentina, Uruguai, Inglaterra, Espanha, Itália, Cabo Verde e outros, e obras traduzidas para o inglês, espanhol, bengalês, grego, russo, italiano -, além de colaborar com vários portais de informação e cultura na Internet, como Rio Total, Telescópio, Cronópios, Alla de Cuervo, Usina de Letras, etc.



sexta-feira, 27 de julho de 2012

Roupão (Suzi Daiane)

Que ela tinha um baita par de coxas ela tinha. Eu nunca me preocupei
com isso, afinal peito grande já me excita horrores, mas aquelas coxas... Bem, antes de ficar de pau duro de novo ao lembrar das coxas
de Teresa, deixa eu contar como a conheci.


Era uma manhã de domingo, eu geralmente caminho de chinelo de pano e roupão logo cedo porque gosto de ver a cara de espanto do povo dessa cidade. São uns bestas mesmo. Fazem tipo, uns chegam a atravessar a rua, outros dão risinhos falsos, principalmente as gostosonas que caminham ao lado dos maridos cinquentões cheios da grana. Odeio seus maridos. Adoro as gostosonas.


Mas isso não vem ao caso, porque Teresa não era uma dessas, voltemos ao chinelo de pano e ao roupão. Eu caminhava exatamente vestido assim, e digo exatamente porque eu não usava mais nada. Era só o chinelo de pano e, claro, o roupão. Eu estava indo em direção à padaria, a única da cidade que abre no domingo de manhã. Estava quase lá, mas não entrei.


Teresa me parou na esquina, estava distribuindo uns panfletos de
alguma igreja e, talvez seja por isso mesmo que não reparei nela logo
de imediato. Não! Mentira! Eu não reparei, porque Teresa era gorda e quando digo gorda, quero dizer gorda mesmo.


Teresa tinha tudo farto, tudo mesmo. Olhou-me de cima a baixo, meio que esnobando meu roupão. Desgraçada. E sorriu falsamente. Entregou-me um panfleto, se apresentou e disse: Jesus te ama. Eu me irritei no ato, não por conta de Jesus, mas por conta daqueles olhos esbugalhados de Teresa. Quis esnobá-la também. Peguei o papel, fiz cara de nojo, cuspi e rasguei na frente dela.


Ela ficou puta. Sério! Nunca vi uma beata tão enraivecida como aquela. Aquele monte de carne vermelha começou a tremer, era como um terremoto e um vulcão acontecendo ao mesmo tempo. Ela me deu um tapa. E doeu.


Eu quis revidar, mas a Teresa, bom a Teresa era... uma Teresa putiada e beata e vermelha e gorda. E o seu problema não era um panfleto de igreja rasgado, nem sua infinita banha, seu problema era mesmo com o meu roupão.


Nos conhecemos ali, na esquina, no mesmo lugar que cato as outras, mas não a Teresa. Com ela foi assim eu de roupão e ela vulcão. Eu a
convidei pra um café. Ela negou, de cara, coisa de beata mesmo, mas aí eu fiz menção de abrir o roupão, disse que se ela não aceitasse eu...


E Teresa ficou mais vulcão. Aceitou. Finalmente a padaria.
Teresa não quis comer nada. Grandes coisa, ela ainda era gorda. Eu
comprei um francês e um cappuccino. Sentamos numa mesa bem no canto. A atendente riu quando nos viu chegando. Ela sabe da minha fama, mas a Teresa já era demais.


Não conversamos. Eu comi devagar e fiquei olhando pra ela. Ela me
olhava também. Era tanto silêncio que eu preenchi olhando as coxas
dela que a saia não conseguia tampar. Teresa tinha de por as pernas
pro lado, debaixo da mesa não dava. Que gorda.


Teresa fingia que não via que eu a via, mas não ficava vulcão. Vez ou
outra tapava as coxas com os panfletos da igreja e olhava meu roupão. Olhava tanto que era como se me olhasse por dentro. Olhava meus pelos escapando por cima e olhava querendo ver os pelos que estavam embaixo.


Agora Teresa amassava os panfletos nas coxas e me olhava. Teresa
olhava meu roupão, era como se ela fosse arrancá-lo e me morder
todinho.


Eu não aguentava mais olhar pra Teresa, aquela gigante, aquelas coxas. Meu pau ficando duro. Paguei a conta.


Saímos juntos, ela caminhava ao meu lado e eu não disse nada, fui em
direção ao meu apartamento, ela me acompanhando. Ainda o silêncio.
Eu caminhava olhando pra baixo, pra debaixo da saia de Teresa. Que
coxas, ai meu Jesus que coxas tinha a Teresa.


E numa outra esquina qualquer Teresa parou, estávamos quase lá. Então ela arrancou meu roupão, assim de súbito, e o rasgou. Cuspiu. Eu fiquei parado, não sabendo o que fazer, meu pinto duro comungando o silêncio. Ela fez cara de nojo, e se foi a Teresa, levando suas coxas, o seu Jesus que me ama e o meu roupão.


______________________________
Suzi Daiane


www.tonalidadesuzi.blogspot.com
http://twitter.com/tonalidadesuzi
msn: suzidaiane@hotmail.com

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Conto quase crônica, lembrando Marilyn Monroe (Inacio Carreira)

Para Norma Jeane Mortenson *




Ao longo do tempo, depois de muitas confidências, conselhos, trocas de informações, descobertas de gostos (in)comuns, souberam-se amigos. A amizade é um sentimento que, após implantado, cresce tomando todos os espaços, confunde-se com outros sentimentos, às vezes. Mas requer cuidados, a amizade. Como bem disse Saint-Exupéry, “Tu és eternamente responsável por aquilo que cativas”. Algumas farpas foram trocadas, claro, como em todo o relacionamento sincero, onde cada um sente-se no direito de dizer isto e aquilo ao outro, às vezes magoando (sem intenções, claro, sem intenções...), mas, nada que abalasse a troca de e-mails, postagens no facebook, telefonemas, indicações para este livro, aquele filme... "Gostas desse cantor?"


 "De repente, não mais que de repente", como disse muito bem o Poetinha, (quem ele pensa que é para aquilatar o Vate?) ela sumiu. Das mensagens enviadas voltavam apenas confirmações, automáticas, de recebimento. Estaria viajando? Sim, parece que ela disse sair em viagem paga pelos filhos, presente-surpresa, alegria alegria: excursão internacional num país vizinho, sul-americano igual ao nosso. Daquele que dizemos ter rixa. Mas, exageros à parte, tudo fica sendo uma grande brincadeira de meninos grandes, sabemos de muitos brasileiros que se abrigam de nossa falta de civilidade nesse país ombreado, dito e havido detentor de cultura europeia.


Ele foi ao seu estado, também vizinho, recentemente. Mal se falaram ao telefone: ela estava (estará ainda?) engajada num serviço que toma quase todo o seu tempo, além do filho que voltou ao ninho; a filha que está longe e inspira cuidados; os demais filhos, de perto e de longe, já com proles e cônjuges, cheios de histórias, pedidos de colo; a manutenção do apartamento; os fazeres e afazeres de seus muitos dotes, pois que pinta, borda, prega botões (não, este final é propaganda de máquina de costura...)!


Se o alheamento for causado por alguma dessas hipóteses ele ficará feliz por ela. Pois que a tem em boa conta. Falaram-se muito, escreveram-se mais ainda, visitaram-se pouco: ele, umas três ou quatro vezes, ao longo de mais de dez anos, foi ao encontro dela. Ela, apenas uma vez visitou-o. São ambos muito ocupados, cheios de compromissos pessoais, artísticos, sociais...


Se este texto fosse uma carta ela veria estas letras? Ele sabe que não verá a resposta, se vier. Pois, – lembrando a Marilyn Monroe –, os telefones para quem ligou não foram atendidos. Inclusive o dela, agora, que responde com uma monofônica monotonia, até entrar na gravação da concessionária do serviço. Chanel nº 5 é muito caro para nossa economia, que gira conforme a música do Fundo Monetário Internacional, movida a dólares. E a euros.


“Mas está muito frio!”, ele reclamou...


Inacio Carreira


 




* Norma Jeane Mortenson (Los Angeles, 1º JUN 1926 — Los Angeles, 5 AGO 1962), foi uma das mais célebres atrizes norte-americanas com o pseudônimo de Marilyn Monroe.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Tempo (Marcio E. Ochner)

Nas horas que cabiam, observava as paredes perdidas ao movimento do tempo, desconcretavam-se virando areia...
Das folhas verdejantes que se abriam ali em caminhos fissurosos, desconstruíam o homem, sem ele mesmo notar.
Cada tijolo vibrava ao novo dia, perdendo sua cor majestosa, pela imponência solar.
Cada vivente que passava ali, nem o viam-no passar...
Pois o tempo estava ocupado, trabalhando na massa nuclear.

domingo, 22 de julho de 2012

Silêncio (Tiago Nascimento)

Helena parou abaixo dos umbrais da porta e sorriu. Disse de si para si que já era. Que já não estava mais ali quem sofreu, quem penou. Pensou rapidamente um verso, uma antiga canção popular, nenhum deles lhe ocorreu no momento, mas deu de ombros. Na hora do recomeço a melhor música pode ser o silêncio.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Chapéu Vermelho (Vana Comissoli)


Mania, gosto, estética, esquisitice, arcaica escolha, podem chamar do que quiserem, mas eu amo chapéus! Principalmente os vermelhos. Minhas primeiras lembranças são de tocas e capuzes vermelhos, a explicação que encontrei é que minha mãe e eu somos do signo de Áries e, portanto, vermelho é nossa cor.
A medida que cresci sofistiquei minha sensibilidade e passei às boinas à francesa e chapéus. Fui motivo de gozação na escola, mas na faculdade já começaram a achar um charme e se tornou parte de minha identidade. Não era para esconder cabelos feios, sempre os tive sedosos e brilhantes, castanho claro onde o sol coloca pinceladas douradas nas pontas suavemente encaracoladas.
A primeira notícia que se tem de um chapéu numa cabeça feminina data aproximadamente dois mil anos antes de Cristo. Com o passar dos séculos foi deixando de ser usado como proteção do sol para se transformar em acessório embelezador e, não raramente, indispensável.
Os chapéus sempre foram muito utilizados pela realeza que tinha na rainha francesa Maria Antonieta (a mais “fashion” das rainhas) uma grande fã e, atualmente, todas as suas variações, são a paixão da futura princesa da Inglaterra, Kate Middleton, embora a preferência seja a casquete que é um charme e não precisa ser tirado à mesa. Se não princesa, alguma coisa que o valha para o povo britânico que se ufaniza com sua nobreza.
Pois é, eu sei tudo sobre chapéus, cada um com seu fetiche, embora digam que apenas os homens os têm. Se fetiche é masculino sou homem, embora tudo em mim o negue. As bobagens que inventam! Freud tinha razão, um charuto, à vezes, é apenas um charuto.
Minha avó sentava-se empertigada na poltrona mais adequada a um soltar de corpo, era o jeito dela, ou talvez temesse amassar o indefectível chapéu. Fazia algum tempo que não falava coisa com coisa, os médicos ainda investigavam a possibilidade de Alzheimer. Aos 95 anos que diferença faria se fosse isso ou aquilo? Minha mãe passou por nós e falou baixinho balançando a cabeça resignada: Caduquice... Caduquice... Daqui a pouco serei eu. Tropeçou no tapete em seguida, saiu mancando. É a velhice é resignação que dá topada no dedão de todo mundo que se aproxima dela.
Vovó Nívea mexia os lábios sem que eu conseguisse entender uma palavra do que dizia, ajeitava os cabelos sob o chapéu de abas caídas que um dia fora útil em praias ensolaradas.
Ora, uma menina moça deve usar chapéus, mostra sua linhagem, sua posição na sociedade. E são tão sedutores, imagina um romance sob um chapéu, um beijo roubado, o rubor escondido pela sombra provocada no rosto.
Entendi uns fiapos da frase solta e compus uma compreensão interna. Vovó teria voltado no tempo? Não sei se era triste acompanhar o que considerávamos declínio, ou se era uma alegria saber que ela não sintonizava na falência, na escuridão que lentamente a envolvia. Prefiro crer que assim fosse melhor: eternamente a jovem que fazia footing na calçada de paralelepípedos lisos e desenhados da rua mais conhecida da cidade: a rua da Praia que teve praia em perdido tempo quando ainda não tinham aprisionado o Guaíba e suas águas beijavam quase o centro da cidade.
Quando eu crescer, conhecerei um belo homem de chapéu, daqueles que tem a peninha colorida na copa. Ah... que romântico...
Fiquei imaginando o Nando de calça jeans, jaqueta de motoqueiro de chapéu de feltro muito composto na cabeça. E se ficasse bem? E se a calça tivesse friso? E se a camisa fosse de colarinho e não a camiseta casual chic? E se ele tivesse carro em vez de moto e abrisse a porta para mim? E se me mandasse flores? E se fizesse poemas de amor?
Cinturinha de vespa, que orgulho tenho da minha, feita no elástico da cinturita. Ter 18 anos é uma delícia e logo casaremos. Serei moderna, casarei de chapéu e sem véu. Um casamento de verão, minha ousadia convencerá que seja no jardim do clube e todas minhas amigas estarão com suas lindas luvas brancas, saias esvoaçantes sobre a armação e belos chapeuzinhos com renda para encobrir o flerte. Logo casarei...
Vovó falava alto e claro agora e parecia não me ver, fiz movimentos com os braços para chamar sua atenção e, só depois de algumas tentativas, percebi que ela se limitava a imitá-los como se estivesse frente a um espelho. Sorria quando eu sorria e quase encostou o nariz no meu para dizer sussurrando que estava muito magrinha, amanhã começaria a comer mingau, precisava de umas carnes. Pensei no trabalhão e esforço que eu fazia para não comer chocolate, malhar três vezes por semana, pizza só uma vez por mês, tudo para impedir que o ponteiro da balança desse um pulo de susto quando me pesasse.
Dois filhos, um casal. Certamente é o que toda mulher sonha. Maurício e Marília. Combina perfeitamente. Serão lindos e rosados, depois, eu ensinarei Marília a amar chapéus, a se cuidar como toda moça deve fazer, ser composta e não oferecida que é coisa de menina sem família.
Minha mãe chamava-se Marília, mas casara grávida de meu irmão enquanto vovó fingia que achava tudo normal e sorria um esboço forçado, era o que se via claramente nas fotografias. Há quarenta anos, quando meu irmão nasceu, não era ainda tão normal e a festa não foi num jardim como vovó dissera que seria. Tão lindo e romântico quanto o dela. A filha merecia a mesma deslumbrante felicidade, mas nem tudo que se sonha se torna realidade, muitos sonhos são divagações da alma que a carne não consegue realizar. Muitos sonhos, são deliciosas visões cor-de-rosa que se guarda junto com pétalas secas dentro de diários que não se lerá mais.
Era um belo sonho e eu... Achei que também poderia sonhá-lo.
Mais alguns meses e vovó não se reconhecia mais em seu velho e desgastado corpo, se reconhecia no meu, ainda no auge de meus 30 anos. Trinta anos... Tinham me dito e eu não acreditar, são os melhores anos da mulher, sempre achei que a fresca vida dos vinte fosse o melhor tempo, mas havia em mim uma riqueza e ao mesmo tempo um fogo, que nascera na fronteira dos trinta, não posso negar.
Vovó me tratava como se eu fosse ela e ela, ela não existia mais. Para agradá-la, enfeitar seu tempo do adeus, comecei a usar chapéus. Aos poucos, com certo medo, timidamente, mas também aos poucos fui me vendo especial de chapéu e passaram a fazer parte de mim.
Enterramos vovó Nívea de chapéu vermelho, o seu preferido, eu encontrara um muito parecido e fiz questão de usá-lo neste dia: uma homenagem, uma consideração amorosa. Ao sair do cemitério que me roubara vovó havia um homem parado na calçada e me olhou com os mais penetrantes olhos que eu já vira. Parecia me esperar, me conhecer. Não era bonito, tinha nariz grande, aqueles olhos, uma boca larga com caninos pontudos que apareceram quando sorriu para mim. Usava cabelo mais comprido do que o normal, parecia esconder as orelhas, mas nas mãos e logo depois na cabeça, tinha um lindo e sedutor chapéu de caça.


Vana Comissoli

terça-feira, 17 de julho de 2012

A queda (Fernando Bastos)

Chegaram ao Pronto Socorro antes da aurora. Ela, de camisola branca de algodão, com manchas roxas nos braços e coxas, e fortes dores nas costelas. Ele a esperou no pátio, fumando nervosamente alguns cigarros. Ela explicou ao médico de plantão que caíra no banheiro. Praguejou contra a labirintite.


Voltaram para casa e fizeram amor. Com cautela, por causa dos ferimentos.


No meio da semana, lá estava ela, na recepção do hospital. Dessa vez, um galo na cabeça. Na queda, batera no vaso sanitário. O noivo, lá fora, aguardava a amada, devorando um cigarro atrás do outro.


No mês seguinte, foram mais quatro idas ao hospital. Hematomas na bacia, pulso fora do lugar, seios doloridos, um olho roxo, resultado da batida contra o box do banheiro. O remédio contra labirintite parecia não resolver o problema da tontura. As últimas gotas de paciência do noivo precipitavam como coquetel molotov sobre a equipe de enfermagem. Foi preciso chamar um segurança para conter a fera. Responsabilizava o médico e dizia que procuraria outro hospital. Queria a saúde da amada de volta.


À noite, fizeram amor como se tivessem se conhecido há meia hora. Juras de amor eterno a fez se sentir a mais desejada das mulheres. No domingo foram à missa, caminharam no parque, lançaram migalhas de pão a um bando de pombos na pracinha. Ao observarem as crianças nos balanços e no escorregador, sonharam com um filho, que teria o nome do pai, e a beleza da mãe. Ela não precisaria mais trabalhar fora, pois ele não achava decoroso para uma mulher passar a madrugada atrás de um balcão. Ela sorriu, maneou a cabeça e disse que gostava daquele trabalho.


No fim do dia a ambulância chegou. Outra queda. Mas dessa vez não resistiu. Dos olhos da mãe, lágrimas rolavam com gosto de ausência. A enfermeira lamentou que os remédios para a labirintite não a ajudaram, e ficou sem chão ao saber pela mãe da jovem, que ela nunca sofrera de tal doença.


 

domingo, 15 de julho de 2012

O livro mágico (Sônia Pillon)

Angelina abriu os olhos e se virou em direção à vidraça do quarto, iluminado pela lua cheia. As cortinas com babados balançavam com a brisa da noite, e a menina sentiu uma vontade irresistível de pular a janela e ir para o jardim. Olhou para as bonecas de pano enfileiradas na estante:
- Vocês não podem sair daí, mas eu posso!


Ela queria ouvir de perto o coaxar dos sapos, o som dos grilos... Ver os vaga-lumes e sentir o aroma das flores. Olhou para o relógio de cabeceira. Passava da meia-noite e o silêncio reinava na casa.


Ela se levantou decididamente, calçou os tênis, abriu a janela e pulou. Caiu sentada na grama úmida, molhou um pouco o pijama cor-de-rosa, mas não se machucou. Ficou rindo por dentro. Se sentia vivendo uma das aventuras da Narizinho, do Sítio do Picapau Amarelo...


Toby, o cachorro da vizinha, começou a latir logo que ouviu o ruído da queda da menina, mas parou, quando a reconheceu. Ao longe, pássaros cantavam, enquanto Lola, a gata de estimação, miava no telhado. No céu, estrelas cintilavam.O coração de Angelina parecia que ia saltar pela boca e os sentidos estavam cada vez mais aguçados.


Foi quando ela avistou um grande livro com capa dourada na escada da varanda. Curiosa, se aproximou e o abriu. Feixes de luzes coloridas saltaram em todas as direções e um grande portal de abriu. Corajosamente, ela atravessou o portal.


Fadas, duendes, faunos, centauros e ninfas pulavam e dançavam alegremente na mata iluminada pelo luar. Um sátiro tocava a Flauta de Pan, atraindo mais e mais dríades em suas vestes esvoaçantes. Ao verem a fascinada Angelina, a convidaram para fazer parte da festa, e ela passou a dançar também.


O Chapeleito Louco, Alice, Branca de Neve e os Sete Anões apareceram em seguida. Zangado preferiu ficar parado, com os braços cruzados e ar de reprovação, como sempre... Cinderela chegou com as fadas madrinhas. Mogli, o Menino Lobo, Aladim e sua Lâmpada Maravilhosa e Saci Pererê, com seu cachimbo, chegaram lado a lado. Mais e mais personagens da literatura universal se integraram àquela festa bizarra! Encantada, Angelina esfregava os olhos, sem acreditar no que via...
- Angelina! Angelina! Vamos, filha, acordaaa!
- Ai, mãe! Só podia ser sonho, mesmo! Era bom demais para ser verdade...


* Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre e radicada em Jaraguá do Sul desde 1996.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

As palavras que (não) devem ser ditas ou escritas?! (Adriana Niétzkar)

Os meninos vasculham os livros da sala de leitura, os folheiam e deparam-se com um do Tezza, pois encontraram ,o único, palavrão no livro: "Deus é um filho da puta!". A frase impressa os perturba, correm ao meu auxilio para ouvir uma reprovação, digo para lerem o livro e eles se afastam incompreendidos. Pois são recriminados ao dizer, mas não ouvem recriminação à escrita. Tento explicar o que o cinema brasileiro não conseguiu. A ficção imita a vida e a vida tem palavrões, ainda que os tradutores substituam todos os “!fuck you” por “filho da mãe”.
Algumas coisas nunca mudam, como na primeira semana da aula de inglês. Ano após ano, eles sempre procuram o embaraço do professor ao pedir a tradução: “O que quer dizer fuck you?” Querem tirar o palavrão de minha boca e eu os inquiro;“então já perceberam que cinema estadunidense também tem muito palavrão?! “Eles não resistem a oportunidade e o teste - “é vai se foder né professora?” - pois é umas das poucas vezes que "podem" dizê-los em sala. No entanto, a escola é um laboratório deles, usa-se toda hora.
Fazer intensivo de palavrão? procure um grupo de adolescentes, eles são quase uma linguagem própria, e esqueça os “filho da puta”, “vai te foder.”.. isso é ultrapassado, de outra geração, eles são muito mais elaborados e “criativos”que misturam vários gêneros em uma única frase incompreensível, mas “dolorida”, pelo acúmulo de “besteirois”.
Aliás, “vai tomar no cu” era o que minha amiga do segundo grau (agora ensino médio - outra época) falava, cada vez que precisava de uma interjeição. Os meninos adoravam dar tapas nas suas costas só para ouvi-la. As meninas cobravam; “olha o palavrão”. Mas o vai tomar no cu fazia parte da linguagem dela, ninguém conseguia explicar de onde, o irmano não falava os pais eram educados. A verdade é que pra ela era palavra como outra qualquer. Eu que nunca os dizia interessava-me pela sua naturalidade. E, depois, mais próximas nunca a vi xingar ninguém, mas falava “vai tomar no cu” pra tudo.
E quem as vezes não tem vontade de dizer? E quantos não usam de habilidades elaborando frases polidas que agridem e ferem, humilhando até a alma?
Criatividade eu admirava em um colega da sétima série, que decorava nomes científicos para xingar os que o perturbavam: "seu sistosoma mansone!"Funcionavam pela sua sonoridade e incompreensão, mas não feriam.
Tem outras palavras consideradas “incompreensivelmente” como palavrões; preto, viado, retardado, animal... Aliás, nunca entendi como essas palavras podem funcionar com xingamento. Meu avó era polaco, alguns mais velhos, sempre me corrigem a frase; “polonês!” - porquê o seu sinonimo é ofensa?!
Trocar besta por desprovido de intelectualidade também não modifica o que penso e parece que quanto mais “enfeitamos as palavras” mais elas “vestem” nossos preconceitos, mas não os retraem. É como a famosa frase: “ eu trato ele com gente igual a mim”. Por essas e outras que eu gostava das interjeições “diferentes” daquela minha amiga.
E na escola, há também os corajosos, que desafiam a “merda” da redação escrevendo alguns palavrões, sugiro os textos marginais e não entendo porque os palavrões não retornam nas redações seguintes.
De qualquer modo, "uma frase a lá Nelson Rodrigues” ainda gera fascínio ou repulsa, dependendo do que o freguês procura em suas leituras. E fazem estilo de transgressores para os leitores mais rebeldes que os amam por seus retratos e linguagens marginais. Ainda que muitos destes textos nada tenham de discussões novas a arte tem tido forte tendência marginal, porque retrata essa geração desestimulada que quer mandar tudo à PQP e manda! Mas continua se fodendo, gozando ou não.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Fodidos pela arte. E pela linguagem. (Ítalo Puccini)

"Somos, enfim, o que fazemos para transformar o que somos. A identidade não é uma peça de museu, quietinha na vitrine, mas a sempre assombrosa síntese das contradições nossas de cada dia. Nessa fé, fugitiva, eu creio. Para mim, é a única fé digna de confiança, porque é parecida com o bicho humano, fodido mas sagrado, e à louca aventura de viver no mundo".
Esse Eduardo Galeano, no texto "Celebração das contradições/ 2", no "Livro dos abraços", leva-me à palavra. Que por si só contradiz. E consequentemente acontece com quem dela faz uso. E que bom que assim é. Perfeição de entendimento tornaria o mundo mais caótico do que já é, acredito.
Existimos pela incompletude da linguagem. Não nos há como fugir disso.
Há uma passagem da peça "Passport", da Companhia Rústicos Teatral, em que um dos policiais diz ao outro algo mais ou menos assim (porque toda transcrição de fala é imperfeita por natureza): "O que me tranquiliza, chefe, é saber que nessa vida estamos todos fodidos".
E não é assim?
A sinopse da peça diz: "Tudo acontece em alguma cidade, algum país esquecido. O Oficial e o Soldado exercem suas funções cotidianas sob a ordem dada em outro tempo. E em eterno presente, o Cidadão se vê em alguma cidad, algún país olvidado. Mesmo falando a mesma língua, Cidadão e Soldado não conseguem se entender quando chegam ordens do Oficial (o chefe). O Cidadão é preso como um suposto terrorista e é na cela que, segundo o diretor da peça, Samuel Kühn, os personagens são envolvidos “em situações absurdas desencadeadas, sobretudo, pelo conflito linguístico, em que são abordadas questões como a incomunicabilidade e a perda de sentido". A peça, baseada em um texto do dramaturgo venezuelano Gustavo Ott, explora os limites da linguagem, a incapacidade de comunicação entre as pessoas, mas não só. Ela inquieta o leitor que assiste a ela porque não há o que ser feito numa situação em que duas vozes dialogam cada uma em uma dimensão própria, podemos chamar assim. Nós que a assistimos alcançamos essas duas dimensões (quem sabe?), mas não nos cabe intervir. Talvez se tornaria, a nossa, apenas uma terceira voz se perdendo entre as outras duas. Quanto mais alto o barulho, menos se ouve dele.
Mas voltando à frase presente na peça, desde que assisti a ela duas vezes, não me sai da cabeça. E eu vivo a repetindo, às vezes em alto e bom som. Como que para internalizá-la mais e mais. E para me sentir mais leve também. Porque haja mania grandioloquente de nossa parte em tornar maior aquilo que é tão pouco, não é mesmo?
Eu escrevo personagens por aí. Dia sim, outro também. Vários personagens, às vezes. Noutras, grudo-me em um só. Sinto-me sempre acompanhado. Não só ouço, como também falo. Dividimos pedaços de vida. Compartilhamos felicidades e frustrações. Trilhamos caminhos separados, sim, mas unidos de alguma forma. Pela fala. E acreditamos num entendimento mútuo do que falamos entre nós. É melhor assim. Por mais que saibamos que entender mesmo a gente continua entendendo só o que queremos dizer e o que queremos ouvir. E o nosso querer não é nosso, no sentido de ser de dois. É um querer de cada um. Compartilhados. Misturados. Mas não tornado um só.
Então que ter essa ciência, de que estamos fodidinhos - graças a deos - no mesmo barco alivia muito a vida.
É uma forma de nos abraçarmos, talvez.


Ítalo Puccini

domingo, 8 de julho de 2012

Voar (Thiago Daniel)

Ela nunca entendeu por que as pessoas pagam duzentos reais para voar
de parapente. Sentia pavor só de imaginar-se em um.
Não temia as alturas, mas achava muito mais seguro voar com suas próprias asas.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Mario, o gênio (Marcelo Lamas)


O recordista de citações nos meus escritos é o poeta Mario Quintana (1906-1994). Pesquisei sua vida e obra em livros, artigos, biografias, entrevistas e documentários. Fiquei alguns dias “ilhado” no centro de Porto Alegre, em museus, bares, cafés, na rua da Praia e na praça da Alfândega, seu habitat.
O poeta foi um solteirão convicto e sempre morou em hotéis. Antes de falir, o Majestic hospedou Mario por 12 anos. O prédio imponente foi recuperado e re-inaugurado, em 1990, como Casa de Cultura Mario Quintana (www.ccmq.rs.gov.br) e o poeta pôde ver seu sonho realizado.
Ao longo da vida, foi tradutor de telégrafo e da Editora Globo (Proust, Balzac, Voltaire e outros), além de jornalista. O escritor fora alcoólatra. Um médico alertou: “Se o senhor não parar de beber, nunca ficará famoso!”. Submeteu-se ao tratamento e livrou-se do vício na década de 50.
Aos 60 anos, rompeu as divisas do sul e tornou-se nacionalmente conhecido. Conseguiu, definitivamente, colocar a conta do hotel em dia. Recebeu a titulação de Doutor Honoris Causa de várias universidades. Escreveu 20 livros (5 de poesia infantil) e 14 antologias. Na coluna Caderno H — que virou livro da Editora Globo —, no Correio do Povo, do Rio Grande do Sul, publicou infinitas máximas universais, como: “A preguiça é a mãe do progresso. Se o Homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda” e “A morte não iguala ninguém: há caveiras que possuem todos os dentes”.
Mario tinha um humor sarcástico. Certa vez, uma jovem repórter, usando um jargão jornalístico que estava na moda, indagou-o esperando uma autodefinição: Quem é Mario Quintana? Com a ironia habitual respondeu: “Sou eu mesmo, minha filha!”.


marcelolamas@globo.com

quarta-feira, 4 de julho de 2012

O Quarto - Parte 1 (Kênia Cris)

Seis e meia da manhã - anunciava uma longa cadeia de galos -  e os primeiros raios de um sol pálido e fraco começavam a surgir, mas o despertador não tocou para acordar Tomas para o trabalho como de costume. Os olhos fixos em algum lugar no teto não mostravam qualquer vestígio de pressa ou preocupação. Tomas não sairia da cama - não naquela manhã. O que diriam o chefe e os colegas de trabalho quando ele não aparecesse? Alguém ligaria para saber o motivo da falta? Certamente presumiriam que estivesse indisposto ou doente, aguardariam seu retorno e atestado médico sem muitas expectativas. Pelo menos não enfrentaria o trânsito preguiçoso ou os tipos estranhos que costumavam sentar-se ao lado dele no ônibus, nada de "bons dias" involuntários e sorrisos amarelos, nada de papéis, ou cálculos, ou prazos, ou telefonemas, ou piadas sem graça das quais precisasse rir.

As janelas fechadas o impediam de ver o movimento matinal do universo, no entanto, podia apostar que havia nuvens no céu. Apesar da moça da previsão do tempo ter dito o contrário na noite anterior, os cheiros trazidos pelo vento não deixavam dúvidas: a chuva não tardaria a limpar gente e coisas, encher barragens e regar plantações de prosperidade, inundar casas de pouca fortuna e fé. A julgar pelo silêncio absoluto o gato não estava em casa. Na certa fazia sua caminhada rotineira pelos telhados da vizinhança. Por que diabo não comprara um cachorro?

Nascido prematuro num parto deveras complicado, Tomas lutara muito para vir ao mundo e trinta e seis anos mais tarde sua vida se resumia em acordar às seis e meia todas as manhãs por um trabalho que ele detestava com todas as forças, alimentar o gato, pagar as contas, dar telefonemas, apertar mãos e se viver era só isso, então ele precisava fazer algo a respeito.  Já estava decidido: não sairia da cama até provar-se peça de um quebra-cabeça divino, até sentir-se verdadeiramente necessário. Precisava com urgência de um pensamento feliz que o levasse a crer no ser humano, crer que havia uma chance de mudança, que havia sentido em abrir os olhos e levantar-se pela manhã, que existia esperança. Vivera até aquela manhã como um pássaro manso numa gaiola apertada, mas agora tinha um plano de fuga.

Há meses planejara esse momento e mal podia se conter tão satisfeito estava por ter resistido ao nervosismo e seus efeitos colaterais para iniciar seu novo projeto. Quanto tempo suportaria sem água ou comida, retardando ao máximo suas necessidades biológicas? Teria vontades? Desobedeceria as ordens dadas ao corpo quando fosse tomado pela agonia seca?

Deveria ter atendido a ligação da moça da casa funerária - ao menos teria serviços fúnebres de excelente qualidade, caso precisasse. A idéia de ter pagado um seguro de vida durante oito anos agora lhe parecida estúpida. Quem ficaria com todo aquele dinheiro? A irmã? Imaginava como estariam as coisas em... Como era mesmo o nome? Na fazia muita diferença, ela não compareceria nem mesmo à leitura do testamento, se houvesse um.

Poderia ter um final digno de grandes reis medievais se pelo menos pudesse chegar à cozinha, ligar o gás, acender um último cigarro e esperar - o plano perfeito já que não tinha um mordomo para culpar. Talvez conseguisse se safar do inferno. "Uma fatalidade", concluiriam os bombeiros. "Ainda ontem estive com ele", "Parecia tão sereno", diriam alguns vizinhos.

Ouvira desde a infância que o avo morrera dormindo, mas naquele momento tinhas grandes dúvidas disso. Só pelo fato de terem-no encontrado na cama não significava que dormia quando o barqueiro o avistou. Não reagiu ao beijo de bom dia dado pela esposa todas as manhãs por cinqüenta e seis anos, não se levantou aos som dos pássaros. Mas isso não quer dizer que dormia quando a alma deixou para trás o velho corpo cansado. Talvez tivesse sido acordado no meio da madrugada por um sonho ruim, talvez tivesse passado a noite em claro num acesso de insônia, revivendo as poucas lembranças que a cabeça ainda lhe permitia guardar, olhando ali ao seu lado a mulher que amava mais do que qualquer outra coisa na vida e imaginando em que sorte de sonhos sua mente estaria mergulhada. Provavelmente não sabia que não chegaria a ver a manhã seguinte.

Tomas odiava velórios e toda a ladainha sobre o último adeus. Se pudesse de alguma forma voltar logo após a morte, tentaria desaparecer com o próprio corpo para evitar de tirar os poucos amigos de suas atividades diárias e incomodá-los com o dever de comparecer ao seu velório. Com tanto barulho, poluição violência e engarrafamentos nas grandes cidades, alguns poderiam dizer que a morte de um amigo ou parente representava uma pausa valiosa para qualquer cidadão urbano, uma oportunidade de refletir sobre suas ações e reações diante dos obstáculos preparados pela vida. Afinal, havia aqueles que aproveitavam a morte de entes queridos para iniciar uma verdadeira (ou falsa) reflexão sobre a vida e a morte - filósofos de fim de semana. Podia-se ouvi-los dizendo "é rapaz, pra morrer basta estar vivo", "o que é homem, veja bem. Nós não valemos nada". Pensando em seu círculo de relacionamentos, haveria alguém lá para despejar tais bobagens nos ouvidos dos outros, se houvesse mesmo um corpo a ser velado. Mas o que aconteceria se o corpo nunca fosse encontrado? Quem desconfiaria de sua morte? Quem o procuraria em casa?

O carteiro sempre tinha algo para ele, perceberia o estranho acúmulo de cartas na caixa de correio, seria o primeiro a notar sua ausência. Ora, mas que bobagem, o serviço postal já tinha trabalho suficiente para se ocupar da vigilância e monitoramento dos destinatários das cartas. Mudou-se, desconhecido, recusado, falecido, ausente entre outras opções davam o recado. Reclamava incisivamente da falta de privacidade da vida em edifícios mas agora pensava se não deveria mesmo ter ficado com aquele apartamento com vizinhos que olham pela janela, vizinhos que pedem coisas emprestadas o tempo todo, um porteiro simpático e curioso que controla a correspondência e a vida de todo o edifício, um sindico chato e disciplinador que insiste para que 'os senhores moradores não subam com os cachorros pelo elevador social' - as maravilhas da vida em condomínios perdidas para sempre.

Por que escolhera um gato? Rex, o melhor amigo do homem, faria barulho e chamaria a atenção de alguém, mas Bichano, o gato inútil... Onde estaria até agora?