quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Onde está teu irmão? (Inacio Carreira)

Abel, a primitiva vítima


 “Não sei, sou eu tutor de meu irmão?” Chorei quando ouvi essas palavras. Eu já as havia ouvido, mas não nesse contexto. Não depois que meu irmão resolveu abandonar a casa de nossos pais. No que ele era diferente? Ou melhor, vendo de outro ângulo, no que eu era diferente dele? Filhos do mesmo pai e da mesma mãe, criados sob o mesmo teto. Com diferença de dois anos frequentamos a mesma escola (ele nasceu primeiro), fomos às mesmas festinhas de família, dos filhos dos amigos de nossos pais, éramos como agulha e linha, como falavam os mais velhos. Inseparáveis.


Até que mudou. Eu ou ele mudamos? Ambos, decerto. Mas foi uma mudança radical. Enquanto eu continuei com as aulas de violino, ele abandonou o piano para tocar lata, ou quase: entrou para um programa de música experimental em uma associação de periferia, furou as orelhas (alargador, disse ele, para arejar as ideias), começou a fumar coisas que não são vendidas nos bares, usava incenso em demasia (para espantar os maus fluídos, justificava), banho só vez em quando, cabelos seguindo moda dos etiópicos. Será que ele sabia disso?


Não importa. Quantas vezes meu pai ou minha mãe perguntaram, tal qual o Senhor: “Onde está teu irmão?”. E eu não sabia dizer, ou não queria, na maior parte das vezes. Não podia? Ia mudar alguma coisa?


Ele, por ser mais novo, meio adoentado, foi cercado de gentilezas. Talvez, por isso, sem querer parecer psicologístico, cresceu em um mundo irreal. Onde o estudo, a carreira, o casamento, o futuro não tinham papel. Ou ele não tinha papel nessas funções. Não se via responsável, somente tutelado. Passou sua infância mimado por três pessoas embora eu, a pessoa mais nova dessa tríade, não gostasse muito do que era obrigado a fazer. Escondido, mostrava minha verdadeira face, talvez com isto afastando meu Abel de estimação. Matando, nele, o que de carinho pudesse haver por nossos pais e por mim próprio.


Será? Não sinto culpa, creio que se fosse essa a hipótese eu teria. Sim, teria, tenho certeza.


Mas não tenho nada a ver com isso. Continuei meus estudos de música clássica, corro o mundo e vejo, em cada jovem à beira da calçada, quer na Europa ou em qualquer outro lugar do mundo, a meu irmão. Ou a um ser parecido com ele, que desistiu de lutar neste mundo onde a lei do mais forte prevalece. Que não tem espaço para culpados. Para covardes. Para os que vão morrer e saúdam, saúdam, saúdam... Não sei quando vi meu irmão pela última vez, mas sei, que logo depois deste fato, ele passou a viver somente em minhas lembranças. Que eu tentava manter o mais saudável quanto possível. Éramos, então, dois irmãos brincando de orquestra, eu o maestro, ele o spala, um prestando reverência ao outro, um tentando ser melhor que o outro. Ele conseguiu?


 Inacio Carreira

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Olhe pra trás e ai sim, siga em frente! (Patrícia Grah)




Poucas são as pessoas que olham suas próprias fotos antigas e percebem que não mudaram, ou que mudaram muito pouco. Pode ser a cor do cabelo ou comprimento, o aumento de peso, o modo de se vestir, as amizades, o antigo carro ou a antiga casa. O certo é que muitas coisas sempre mudaram e sempre mudarão.


Assim como a aparência, é certo que nossa personalidade, nossos gostos, nossos sonhos também mudam e vão se moldando com o passar do tempo. Todos nós somos frutos de nossas escolhas e é comum que muitas delas não deem certo. Não é raro que depois de muitas desilusões e decepções, decidirmos “apagar o passado”, porque assim sofreremos menos e assim também teremos aquela sensação de que “não foi eu quem fez isto, “foi a pessoa que eu era”.


Dói menos, mas desta forma estamos apenas mentindo para nós mesmos, e ai? Se somos frutos das nossas escolhas, devemos agradecer ao nosso passado por ter nos mostrado o que é bom e certo para nosso bem estar e felicidade.


Sabe, eu mesma já me crucifiquei demais, já me cobrei demais, mas não, não sejamos assim! A questão é que é muito mais fácil olhar pra trás agora e se arrepender do  que você sabe que não deu certo, do que no momento em que você tomou as decisões sem saber à qual rumo iriam te levar.


Devemos nos libertar do nosso passado buscando não repetir os mesmos erros também buscando conhecer novos horizontes, mas sem aquela sensação de culpa, sem aquele medo de olhar pra trás. Dane-se o que/quem não deu certo. 
Porque uma pessoa de coragem precisa primeiramente não ter medo de conhecer a si mesma!




Patrícia Grah.


 

 

 

sábado, 22 de setembro de 2012

Pornografia Carnívora (Tiago Nascimento)

Pegou-lhe com firmeza
- Eu vou comer você sua vaca!
Era uma vez um hambúrguer.

Agarrou-a com destreza
- Eu vou comer você sua vaca!
Era uma vez uma virgem...

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Espelho, Espelho Meu (Vana Comissoli)


Margaerith mirou-se no espelho e sentiu o “Não” ordenando que parasse. Vacilou, mas não deixou de fitar o belo, translúcido rosto. Nunca vira olhos tão amendoados e profundos de um verde esmeralda camuflado num debruado de cílios longos e macios, negros como na noite mais fechada onde, a custo, a lua rasga espaços prateados.
A boca era cheia, sedimentada em rochas sensuais que se derretiam quando sorria. Balançou os cabelos negros, macios e salpicados de brilhante purpurina onde a luz incidia. Nem Vênus de Samotrácia teria um nariz tão perfeito e indiscutivelmente divino. Talvez o de Perséfone pudesse lhe fazer frente.
Tinha que reconhecer embora a modéstia lhe negasse esse direito: era linda. A mulher mais linda que o espelho já fixara.
Espelhos não são mesmo confiáveis por que um risinho de Silvana rosnou em sua boca e Margaerith se esfumaçou torcendo a boca cheia de escárnio onde os lábios afinaram em dois traços duros e os olhos fixaram um ponto que era nada e enegreceram em fundos poços. Os cabelos mostraram as pontas queimadas e duplas onde um creme ou condicionador poderia fazer milagres, mas não fazia.
A ira entonteceu os sentidos e levantou a mão para agredir a imagem tão verdadeira ou nem tanto, ou qual era a verdadeira face em meio à distorção que se oferecia quase prazerosamente aos desavisados? Golpeou sem muita força. Bem no fundo sabia que o sangue traria junto uma aguda dor de corte e de novo teria a ferida aberta por meses a fio sem que cicatrizante algum pudesse sanar o problema enosado no soco.
Lembrou que em algum lugar distante, perdida numa floresta onde tudo era pequeno demais e as cavernas lustravam diamantes que ninguém usaria, vivia uma princesa que esquecera o caminho de casa ou fora largada lá para viver uma vida que não deveria ser sua. Uma princesa deveria sempre se mirar em espelhos de cristal onde a imagem não acataria o peso dos anos e não haveria bruxas a espiar do outro lado para ver a pele se desmanchando.
Talvez se houvesse alguma mágica que lhe permitisse atravessar o espelho e enxergar pelo outro lado não sendo bruxa, pudesse perceber enfim a face que trouxera ao mundo para construir alguma coisa que esquecera por completo de tanto procurar a imagem dentro do espelho.
Quando chagava neste repetido ponto era hora do espelho falar e lhe dizer coisas ocultas que não queria ouvir e insistiam em bater à porta. Nesta noite ele se manteve quieto como todos os outros seus semelhantes, fossem feitos de água, prata ou vidro. Incrivelmente todos os príncipes que tivera saíram a cavalgar seus cavalos brancos pela sala pequena demais para tanta gente. Maçãs envenenadas se trincavam entre seus dentes e sentia o gosto acre da cicuta escorrendo pela garganta enquanto apertava forte na mão o vidro repleto de comprimidos fatais.
Alguns buscavam o beijo de Margaerith e outros mergulhavam incansavelmente na vagina de Silvana sem que nelas houvesse prazer por um ou por outro. Quem sabe aquele menino que, lá atrás, onde o tempo já esqueceu, pudesse fazer algum milagre e trazê-la de volta deste sonho real que vivia já há mais de quarenta anos e do qual não conseguia acordar.
Muita gente se pôs a chorar.Ela estava irremediavelmente morta dentro do vidro onde uma camada de prata, alumínio ou amálgama de estanho, se depositava quimicamente coberta com uma substância protetora.Ou era prisioneira das duas imagens dúbias? Ou de si mesma que não desabrochava nunca?
Se existem diversos tipos de espelhos, por que não encontrava nunca um do tipo plano que produzisse uma imagem virtual e simétrica dela mesma? Afinal a imagem dada por um espelho plano é do mesmo tamanho que o objeto, é virtual, uma vez que não se pode projetar num alvo, é direita e é simétrica, ou seja, invertida lateralmente. E real por refletir o que havia de concreto dentro do rosto espelhado, com olhos, boca, nariz e cabelos que não se torcessem ou distorcessem ao bel prazer em figuras que se sobrepunham conforme o latejar do coração e da mente.
Escapou da imagem misturada e antropomorfa e o olhar escorregou pelas paredes onde, pendurada por um prego desajeitado, uma menina se equilibrava instavelmente numa foto preto e branco. Era quase engraçado reconhecer que era bonitinha, mas não era a menina mais linda do mundo e talvez nem sequer uma princesa e não era também uma bruxa ou mulher malvada. Era apenas uma menina meio assustada com doces olhos expectantes que balbuciou algo em seu ouvido.
A mão se abriu e os comprimidos se misturaram aos cacos do frasco estilhaçado no chão. Em seguida, um raio flutuante entrou pela janela atravessando a grossa chuva e fez com que o espelho arrebentasse em mil pedaços. Um velho pensamento supersticioso escreveu rápido na lembrança: espelho quebrado são sete anos de azar. Estranhamente seriam seus sete anos de novas possibilidades já que azar significa o contrário de tudo que já aconteceu. Depois disso talvez não houvessem mais Margaerith e nem Silvanas a embaçar imagens. Por fim aparecesse a Maria das Marias, esse nome de batismo que misturou todas as imagens num enroscado sabor de desconhecimento.
Buscou a vassoura e recolheu os cacos assobiando pela primeira vez na vida. Uma imagem nunca é o que mostra, é apenas reflexo de algo que se transforma conforme a luz e o movimento e talvez fosse mesmo essa coisa cambiante, mas entre uma e outra haveria a si mesma num desfecho que não importa saber qual é, basta que se saiba que mostrará não mais imagens, mas uma pessoa real.


Vana Comissoli

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Causa sine qua non (Fernando Bastos)

 








Andava sempre de olhar afundado como uma garotinha que fizera traquinagem na sala de aula. Algumas vezes cheguei a suspeitar que fora violentada na infância, ou que fosse lésbica, dado sua habitual distância que mantinha dos homens que a abordavam.


Ana Maria era o oposto de Mariana. Ela, gelo, minha mulher, fornalha. Até hoje tenho complexo de Bentinho, aquele do Dom Casmurro. Por mais que Mariana defenda a tese de que não me corneia, estou sempre com um pé atrás. Às vezes faz hora extra no escritório de advocacia, e sabe lá o que acontece nessas ocasiões. Amo Mariana, mas Aninha me incendeia. Comecei a namorar Mariana quando eu tinha 20 e ela 17. Mariana morava com a avó e uma irmã. Gêmea. No dia seguinte, da minha primeira noite com a então namorada Mariana, quando fui lavar o rosto, levei meu primeiro susto. Como Mariana podia estar no banheiro saindo de toalha, se havia dormido comigo e a deixei no quarto antes de descer as escadas?


Aninha percebeu meu espanto e, timidamente, sem me olhar na cara, disse Não sou Mariana, sou Ana Maria, a irmã gêmea dela. Mariana, para de brincadeira, falei, como conseguiu chegar aqui antes de mim? E, sem deixá-la responder, abracei-a e apertei aquele
corpo ainda molhado sob a toalha felpuda. Estou falando sério, disse ela, Por favor, vovó pode acordar e nos ver...Mariana não me falara nada sobre a gêmea. Fazia parte do jogo. Ela gostava de jogos. Eu adorava vencê-los. A cópia se afastou e foi para o quarto, segurando
a toalha de banho com as mãos rente aos seios. Quis possuí-la, mas o fiz só com os olhos. Despedi-me do tornozelo bem moldado, e da sola branquinha do pé, antes dela entrar no quarto e fechar a porta para terminar de se secar.


Casei com Mariana, a avó morreu, a gêmea ficou morando conosco, Mariana se formou em direito, e, depois de um ano de casamento, começou a fazer hora extra. Não me preocupava com os serões de Mariana. Quanto mais tarde chegava, mais eu aproveitava os momentos para saborear a visão daquele corpinho, defendido sumariamente por uma camisola de algodão que ia até a metade das robustas coxas, deitada sobre o sofá, lendo Clarice. Com o tempo, ela foi perdendo aquele medo de animalzinho selvagem, e deitava em meu colo para lhe acariciar a cabeça. Quando sentia o perigo, levantava, dizia que ia ao banheiro, depois voltava para me dar boa noite, a uma distância segura, olhando-me obliquamente.


No finalzinho do outono passado, houve um Congresso de advogados na capital. Minha mulher voltaria no domingo. Na sexta, comecei a preparar o cenário. Vinho Cabernet, a lareira acesa, um filme romântico, o convite. Hesitante, largou o livro, e sentou-se ao meu
lado no sofá. Puxei o cobertor, e nos enfiamos debaixo dele. Nem deu a metade do filme, e ela já estava bêbada. Eu sabia que estava errado, mas a carne é fraca. Os primeiros códigos de Lei já proibiam esse tipo de relação. O judaísmo, maior influenciador sobre nossa cultura, avisa em Levítico 18,18: “não tomarás a irmã de tua mulher,...descobrindo a sua nudez...”.
Mandei à merda a lei de Deus, abracei-a, sob pretexto de esquentá-la, e ela concordou. Em dez minutos, sumiram nossas roupas, e ela galopava sobre mim, no tapete da sala. Seu moreno corpo rebrilhava as cores do fogo da lareira, dando-lhe um aspecto sobrenatural. Coloquei um travesseiro sob seu quadril. Suas unhas arranhavam minhas costas, mas não me incomodei. De repente ela começou a falar obscenidades, que jamais havia sonhado que pudesse dizer. Levei-a para seu quarto, e deitamos em sua cama, na esperança de acordar antes que minha mulher chegasse da farra.


No meio da madrugada, uma réstia de luz trespassou a fresta da porta. Lentamente, um vulto de mulher assomou na penumbra, como uma hetera, que chega em casa depois dos compromissos. Cheirava a bebida e perfume masculino. Sem dizer uma palavra, deitou entre nós e me beijou.






 

 

 

 

sábado, 15 de setembro de 2012

Festa na Grécia Antiga (Sônia Pillon)

 




Sempre fui fascinada por Mitologia Grega! Desde a infância, através da genialidade de Monteiro Lobato, viajei pelos mistérios da Grécia Antiga, com suas divindades com características muito mais humanas do que celestiais, mergulhadas em paixões terrenas e contradições tão conhecidas por nós, seres mortais e imperfeitos por natureza.


Pois ontem resolvi tirar aquele livro empoeirado da prateleira e reviver o fascínio que sentia ao conhecer as estórias de Zeus. Ah, o deus supremo dos gregos, amoroso e vingativo ao mesmo tempo, com seu séquito de divindades e sempre oscilando entre o Céu e a Terra!...


Lembrei de Pallas Atena, a deusa da sabedoria, de Hermes, o mensageiro dos deuses, incansável viajante a levar e a trazer notícias, de Afrodite, a deusa do amor...


Tinha também Prometeu, que como o próprio nome já diz, prometeu e levou o fogo aos homens e foi condenado por Zeus a ter seu fígado bicado por uma grande ave, todos os dias... Poseidon, o deus dos mares, Hades, o deus dos mortos, levados pelo barco de Caronte até as profundezas do oceano... De Ícaro, o audacioso homem que sonhou em voar e ingenuamente construiu um par de asas, com cera e penas, derretidas pelos escaldantes raios de Apolo, o deus do sol.


Nesse universo também tinha Héracles ( Hércules, para os romanos), símbolo da força masculina, filho de Zeus com uma mortal, meio deus, meio humano, condenado a 12 trabalhos de bravura. E Eros, com suas flechas certeiras, Dionísio, o deus do Vinho e o “Pai do Carnaval”...


Ah, e não dá para esquecer Narciso, que se apaixonou por si mesmo ao ver sua imagem refletida na água...  As amazonas, temidas guerreiras, as suaves ninfas, as discretas dríades, os espalhafatosos centauros, os assanhados faunos com suas flautas, a assustadora Medusa, com serpentes na cabeça e seu olhar petrificante... e tantos outros...


De repente, comecei a visualizar uma festa bizarra e multicolorida, com todos eles presentes, em uma grande clareira da floresta. Em noite de lua cheia, eram embalados por Dionísio, ao som das flautas de Pan...


Afrodite chegou exuberante, enquanto Narciso apareceu no esplendor de sua beleza. As amazonas apearam de seus cavalos rapidamente e também foram chegando. O mesmo aconteceu com os centauros, ninfas e dríades... Logo todos estavam ali, dançando sem cansar e rindo sem parar, na fantástica e inusitada festa pagã, que com certeza jamais teria sido esquecida por nenhum dos participantes, se realmente tivesse acontecido...


Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e radicada em Jaraguá do Sul (SC) desde 1996.


 

 

 

 

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Revolta cipeira (Marcio E. Ochner)

Cansado de chamar a atenção dos funcionários, revoltado, o chefe da fábrica solta: “Do jeito que estão fazendo cagada, terei que exigir que os Cipeiros coloquem no mapa de risco desse setor um círculo enorme, para Risco Biológico”.


Saiu falando alto para todos ouvirem. Mesmo com toda aquela barulheira das máquinas trabalhando no pavilhão, conseguia-se ouvi-lo até na Recepção. Novamente, enquanto chamava a atenção de mais alguns que por ali seguiam, andava apressadamente de uma máquina a outra... “Tá errado aqui, tu não está vendo?... Afrouxa lá, porra, vai arrebentar a maldita máquina...”


Beneto, cansado, seguia novamente para sua sala, nervoso, resmungando. Ainda estava tentando digerir aquelas conversar dos Cipeiros, que se reuniam na sala ao lado. Ele os escutava entre os biombos: naquela conversa tratavam de um tal Plano de Emergência... Beneto pensava: “Que merda é essa?” Permanecia ouvindo os discursos, cujo clamor adentrava a parede de plástico. Ele, quase que colado ao forro, escutava o plano. Nisso vê um de seus funcionários seguir para o refeitório, segue logo atrás, aproveitando para apanhar o maço de cigarros, fumando um no mesmo instante. Acompanha-o até fora da fábrica, deu suas baforadas e falou: “Que é isso, Zequinha, é café, não coca-cola, pega um copo menor, rapais... Já terminou o que tinha para fazer”? Nisso responde o Zequinha: “Não, Beneto, mas o novato ta cuidando da máquina...” Irritado, larga: “Tu deve ta ficando doido, se ele fizer merda lá, tu é que vai levar a comida de rabo, rapais!  Deixa pra toma isso depois, vá cuidar da máquina...” E o Zequinha abandona o copo e sai apressadamente. Chegando lá, conversa com seu companheiro de trabalho e aguarda mais ou menos uns 10 minutos na máquina, quando então a desliga. Zequinha chama seu companheiro para tomar um café.


Beneto, ainda no lado de fora, saboreando um café fresco que acabara se sair do coador, logo após o terceiro cigarro, vê os dois seguindo na direção dele, observa atentamente. Largou um e tirou o quarto cigarro, acendendo. Comenta, baforando: “Ta bom o café? Parece que ta, né? Vocês dois devem achar que pago vocês pra ficar tomando café, não é? Estão esperando o quê, ai parados, o final do mês pra receber? Já pro trabalho vocês dois, tenho que entregar aquela encomenda até sexta-feira. Vamos lá...”


Saem em disparada para a linha de produção os dois funcionários da fábrica que nunca para, nem para café, muito menos para conversas aleatórias.


Beneto ainda reclamando: “Não sei para que o Plano de Evacuação! Vivem aqui fora tomando café. E quando estão nas máquinas, fazem a melhor função retilínea que eu já vi na história, só cagada, uma atrás da outra!”

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Coisas de meninos e medos (Adriana Niétzkar)

Os dois meninos brincavam enquanto anoitecia, um ruído estranho os despertou para os perigos da escuridão:
Melhor ir pra casa...
Por quê? Você tá com medo de fantasmas? 
Sim... 
Você já viu um?
Não... mas existe sim! 
Existe fantasma e medo de fantasma. Quando você tem medo é porque não é fantasma. Quando é fantasma de verdade você não tem medo. Minha mãe que disse!
E daí?!
E dai que se minha mãe disse é porque é verdade.
Não sei não, porque a gente não tem medo de fantasma de verdade, se tem medo de fantasma de mentira?!
Eu perguntei isso pra ela.
E o que ela disse?
Que a nossa imaginação é muito pior que um fantasma de verdade.
humm..
E na hora do sono o segundo menino, iniciado nas artes do mistério, da sua cama, ouvia portas rangerem e janelas sendo batidas. Enfim lembrava-se do que ensinou o amigo e voltava a respirar fora das cobertas.
E, talvez, irritada por seus ruídos não serem suficiente, uma imagem translúcida apareceu. O menino tremia de medo, mas quanto mais o fantasma o apavorava mais ele o negava:
Fantasmas não existem, não exitem..
Menino... você não me engana, se não existo porque tem medo?!
 Para ter certeza de que você não é um fantasma.

domingo, 9 de setembro de 2012

O começo que nasce para morrer (Ítalo Puccini)




As coisas só começam porque um dia terminarão.
Eu gosto desta frase, apesar de não gostar da palavra coisa. Penso-a (a frase, não a coisa) apontando para direções que são várias: início, fim e meio do mundo; início, fim e meio da vida; início, fim e meio de um relacionamento; início, fim e meio de um livro. Há um meio depois do começo e do fim, assim como entre.
A tendência de um começo é a morte instantânea.
Linkando com a literatura, temos: o começo de um texto é aquilo que mais é renegado pelo escritor. É a substância que brota para ser jogada fora. É o apêndice. Nascido para morrer. E mesmo aquele começo – de texto ou qualquer outro começo - que se apresenta a todos como definitivo, aquele começo que ficou definido como o começo de algo, está entregue à mudança constante. Não à morte, mas à mudança. Pois ele nem sempre será lido como o começo que se propôs a ser. Por que não ser lido como uma possibilidade de final, então? Será daí que todo fim é um começo?, uma vez que cada nova leitura pode ser a morte e o enterro da leitura anterior, sugada antes de não mais existir.
Um começo de livro marcante pode ser este: "Na primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas de Emily Dickinson, e ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel". É do livro "A casa de papel", do argentino Carlos Maria Domínguez. Ou este: "Nu e cru, eis o facto: apareceu um pénis decepado, em plena Estrada Nacional, à entrada da vila de Tizangara. Era um sexo avulso e avultado. Os habitantes relampejaram-se em face do achado. Vieram todos, de todo lado. Uma roda de gente se engordou em redor da coisa. Também eu me cheguei, parada nas fileiras mais traseiras, mais posto que exposto. Avisado estou: atrás é onde melhor se vê e menos se é visto. Certo é o ditado: se a agulha cai no poço muitos espreitam, mas poucos descem a buscá-la". Do livro “O último voo do flamingo”, do moçambicano Mia Couto. Dois simples começos como estes, que apresentam ações pontuais em tão poucas linhas, que delineiam uma miríade de caminhos na cabeça do sujeito-leitor – que poderão ser alcançados ou não, afinal, cada leitura é uma leitura.
Há, ainda, o começo de “Bonsai”, do chileno Alejandro Zambra: “No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia. Digamos que ela se chama ou se chamava Emilia e que ele se chama, se chamava e continua se chamando Julio. Julio e Emilia. No final, Emilia morre e Julio não morre. O resto é literatura:”.
Dois pontos. Como que dizendo ‘agora vou contar a história’. E que o leitor deixe de lado a birra infantil de ‘ah, por favor, não me conte o final’. Há literaturas que se sustentam pelo seu durante. Há literaturas que encantam só pelo começo. Há literaturas que decepcionam principalmente no final.
[Um bom começo também pode ser um caminho para o abismo da decepção].
O começo como morte é a oportunidade de não se estranhar muito o novo começo, o recomeço. E de não sentir muito aquele que não mais existe, porque nada nem ninguém vem para substituir algo ou alguém, mas para acrescentar, para existir a partir daquilo/daquele que não mais.


ítalo puccini
professor de língua portuguesa, literatura e redação.
escritor nos blogs:
www.um-sentir.blogspot.com
www.rabiscosfutebolisticos.blogspot.com


 

 

 

sábado, 8 de setembro de 2012

Eu aceito (Thiago Daniel)

Eles se olharam
Por algum tempo
Depois se beijaram

Logo se encontraram
Em um estado
Nada esperado
Era como o céu e o seu lindo sol
E o anel que ele lhe deu
Brilhava
Enquanto na mão dela ele colocava
Então começou
Uma bela canção
Ele a pegou pela mão
Como não devia deixar de fazer

“Vamos dançar”

Eles dançaram a noite toda
Mesmo sem saber
Dançar direito
Ele dava um passo
Ela dava um, dois
Pisavam nos pés
Ambos sem jeito
Mas se quer saber
Levar pisão no pé
Se for pra ser feliz
Até eu aceito

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O imaginário e a vingança delas (Marcelo Lamas)




Não era pra ter vazado. Mesmo tendo o maior cuidado, o sigilo foi quebrado e a informação veio à tona.
Começou num final de sexta-feira, no escritório. Procurando uma distração momentânea, o sujeito tirou os olhos do monitor e olhou para a menina que estava ao lado, imaginou alguma coisa proibida, pensou, riu e comentou baixinho, com um colega:
– Jaime, como tu achas que é o estilo do corte - apontando para a região pubiana - da Cláudia?
– Máquina zero com certeza! Respondeu ele, controlando o riso.
E a Selminha?
– Moicano. E a Dona Mércia, consegues imaginar?
– Cláudia Ohana.
– Cláudia Ohana?
– É Claudia Ohana. Mata Atlântica, entendeu?
– Entendi.
Muito pró-ativo, o Jaime pegou um cartão de apresentação e no verso fez uma coluna com as iniciais ou os apelidos das mulheres. Ao lado, listou as alternativas, onde aparecia também a opção bigode do Hitler.
Em seguida passou a cédula única entre os mais chegados, com QI mais alto, que seriam discretos. Antes do sinal do expediente tocar, os dados estavam compilados e 68% disseram que a “Ajeitada” seguia o tipo moicano.
Mas como sempre acontece, a informação de que uma pesquisa do gênero havia sido feita chegou até o clube da luluzinha.
Elas deixaram transparecer que eram sabedoras da enquete. Pareceram ter levado na esportiva. Uma delas comentou: “Com esse meu cabelão, sem chapinha, o que será que não pensaram?”.
Outra indagou: “O ‘que que deu’ meu resultado na pesquisa de vocês, hein?”.
A intimidade que ela cultivava com o grupo até permitia que o resultado fosse revelado. Mas ela não fez parte da enquête. Não estava na repartição na hora do pleito. Foi esquecida. Não acreditou na versão. Tem certeza que houve um veredito e  que não foi poupada da análise. Ficou brava duas vezes, primeiro por estar na lista e depois por, talvez, não estar.
Numa outra reunião, realizada em um chá-de-panela, o clube decidiu retribuir a gentileza. Assim, foram coletadas informações com todas as participantes femininas.
O resultado foi impresso em fonte 18. Havia uma coluna com o nome de batismo de todos os colegas. Os percentuais estavam apontados embaixo das fotografias de uma garrafa de Coca-Cola, um sacolé, um pepino em conserva, um chocolate Baton e um oriental, entre outros.
Elas deram jeito de fazer a folha ofício passar na mesa de todo mundo. Neste caso, o sigilo, de fato, era mesmo para ser quebrado.


Marcelo Lamas
marcelolamas@globo.com