quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Escritora Convidada: Elyandria Silva

O LEITEIRO


A cena visitou minha mente naquele instante duvidoso. Era bem cedo. Ainda na cama, sonolenta, escutava o barulho de palmas lá embaixo. Segundos depois minha vó descia a longa escada de nossa casa, abria a porta, tão fechada quanto entrada de calabouço, com uma enorme tramela na horizontal. Poucas palavras trocadas com um homem, trotes vagarosos de cavalo pela rua, o retorno pela escada e a porta sendo fechada. Quando levantava lá estava a garrafa transparente de leite, ainda morno, em cima da mesa. O homem era o leiteiro que, praticamente todos os dias, trazia o nosso leite. Nunca vi seu rosto e durante anos ele foi apenas uma voz que ouvia pela janela. Certa vez ganhamos leite de graça por um ano por conta de uma aposta. De presente de casamento meus pais ganharam uma leiteira que apitava escandalosamente quando o leite estava quente. O leiteiro, sujeito simples e caipira do interior, quando ouviu isto de minha mãe, não acreditou e disse que nos daria leite de graça por um ano caso comprovassem o feito. Perdeu a aposta! Encantado com a geringonça doméstica ele fez questão de cumprir o que prometeu até o último mês, embora meu pai relutasse em aceitar.
Muito tempo depois, eu, a garota que aguardava a chegada do litro branco e morno para levantar e tomar o café me via ali, mais uma vez, diante da comprida prateleira com tantas opções de tipos no supermercado. Olho para a fila do pão e uma ideia inusitada me ataca: uma vaquinha devidamente instalada dentro do supermercado, as pessoas pegando senha, o Sr. Leiteiro sentado no banquinho tirando o líquido das tetas da vaca, enchendo as garrafas, fazendo a chamada do número e entregando aos clientes. Volto para a realidade, me dá uma saudade do tempo em que a vida, de maneira geral, não era encaixada, em que a falta de opção era algo bom. Desejei abrir os classificados dos jornais e ler anúncios do tipo “Precisa-se de leiteiros com experiência. Paga-se bem. Urgente!” ou então “Abertas inscrições para o curso de leiteiro”. Foi para minha surpresa que encontrei este curso na internet com módulo I e II, estrutura curricular, direito a certificado após passar nas provas, claro, tudo pelo valor de 12 pagamentos de R$ 30,00 mensais. Uma barbada não? É, a vida moderna tem dessas coisas!
Fiz a escolha e segui com um poema de Carlos Drummond lá no canto do pensamento “Então o moço que é leiteiro/ de madrugada com sua lata/ sai correndo e distribuindo/ leite bom para gente ruim”. Isso é assim mesmo, são essas lembranças líquidas que, às vezes, nos transportam, por segundos, para uma lasca fina do passado.


Sobre a autora:
Elyandria Silva é graduada em Administração, com pós graduação em psicopedagogia. Além de atuar como cronista fixa e blogueira de literatura do Jornal O Correio do Povo ministra oficinas literárias e de crônicas.
A escritora l
ançou recentemente o seu terceiro livro, Labirinto de nomes (crônicas, Moleskine Editora, 2012). Antes a autora já havia publicado os livros Fadas de Pedra (contos, 2009) e Um lugar, versos e retalhos (poemas, 2010) ambos pela Design Editora.
Além dos livros publicados Elyandria, que transita bem por vários estilos, já havia participado das seguintes coletâneas:

Contos Jaraguaenses (Contos, Design Editora, 2007).
Jaraguá em Crônicas (Crônicas, Design Editora, 2007).
Preliminares (Contos e poesia, SESC, 2009).
Palavra em Cena (Textos teatrais, Design Editora, 2010).
Mundo Infinito (Contos, Design Editora, 2010).

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Lágrimas de crocodilo (Inácio Carreira)

   Saiu de casa. Pela última vez, dizia. Nem que chore lágrimas de sangue (bonita figura, apreendida na infância e que algum escaninho mental, aberto agora com toda essa emoção, deixava vir à luz da consciência). Não via vantagem alguma em estar atrelado a uma instituição que dava, a ele, somente casa, comida e roupa lavada. Cobrando, pensando não exigir nada em troca, o que de mais importante ele prezava nessa vida: a liberdade.


   Liberdade de ir e vir, de ficar na rua até altas horas com os amigos, de não lavar a louça do café da manhã atrasado, de deixar seus pertences por toda a casa (afinal, diziam sempre que a casa é dele, que ele faz parte da família, que todos o amam!)...
   A partir desse amor apontavam seu futuro: teria que ser médico, detetive, advogado, escritor ou qualquer outra coisa que a mãe vivia escarafunchando naqueles sites de horóscopo e consultando tudo que era vidente que aparecia na cidade. Controle remoto. Sim, era assim que ele sentia-se: manipulado por controle remoto.
   Que amor é esse que cobra pedágio, ágio, explicações? Deixassem que vivesse sua vida em paz e ele ficaria ali, sendo o exemplo (mau?) para os pequenos, para os vizinhos, para os filhos das ex professoras. “Veem o Zé? Deu pra nada, não... Virou chupim”... Chupim o catso... Ele tem dois ovos, mas não os colocou no ninho de ninguém para serem chocados... Aproveitador?... Passa... Ele não pediu pra nascer, pediu? Teria, agora, que entrar nessa de provedor do capitalismo selvagem e virar escravo de empresas internacionais, de rede de computadores, de nomes absurdos de empresas telefônicas que disputam os ouvidos dos incautos com as mais absurdas ofertas, fazendo o infeliz (que se acha feliz) esquecer que pode estar adquirindo um tumor pela proximidade das ondas eletromagnéticas com seu cérebro?
   Sempre procurei ser social, cortês, observador, colocar meu senso crítico a serviço do próximo, tentava justificar-se. Do que valeu? Nada, nada, nada, repetindo o refrão do “Você não soube me amar”... Valorizava a amizade, colocando no freezer os traíras. Sem piedade.
   “Sexo, drogas e rock n’roll”, sua máxima, somente dele, ninguém mais entende. No começo sexo era tudo para ele, espírito e matéria. Além dos Beatles e dos Rolling Stones amava de corpo e alma suas parceiras em relacionamentos profundos, mágicos, trágicos. Trágicos? Sim. O rock foi substituído pelo funk, o sexo foi substituído pelas drogas, o funk foi substituído pelas drogas. “Zé, sai dessa vida, vai estudar, trabalhar, ser gente!”, diziam, como se ele não fosse gente. Gente e respeitado no pedaço de beco em que cada pedrinha é disputada às vezes na mão grande, às vezes no tapa, mesmo...
   Aquela camisa laranja vai ser seu amuleto: no sábado escapou de uma batida policial, deu sorte, os homens entraram quebrando tudo, ele soube pela zinha...



Inácio Carreira. CONTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NO LIVRO TRAMAS, MOLESKINE EDITORA, NOVEMBRO DE 2012.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Nostalgia parte I (Patrícia Grah)

Mais um verão se aproxima, sempre acompanhado de uma estranha e inexplicável nostalgia que ela sentia. Aquele vento gelado trazia consigo uma mistura de medo com uma “coisa boa”.


Já passaram-se anos e é sempre a mesma coisa, a toda troca de estação ela fica assim, estranha. Quando era solteira, este sentimento se agrupava ao de solidão, agora que tem companhia, ela sempre lembra de agradecer à Deus por ter alguém do lado, não somente na troca de estação, quando surge este estranho sentimento, mas em todos os dias, a questão é que esta nostalgia lhe traz de volta o tenebroso passado, mas ela não consegue entender exatamente o quê.


O que passou,  ela procura não lembrar, não pensar, mas também não esquecer, afinal de contas, foi ele quem à ensinou a ser quem ela é, como ela é, agir como ela age. Talvez no futuro ela mude de ideia, mas por enquanto prefere pensar/agir/ser assim.


Não que sua vida tenha sido sem graça, mas alguns problemas na adolescência refletiram em seu jeito de ser mais tarde, algumas pessoas más apareceram no caminho e lhe deixaram cicatrizes muito profundas, então sempre que alguém remexe em seu passado,Tata procura desconversar, afinal de contas seu passado amargo hoje lhe faz dar mais valor à quem ela tem ao seu lado.


Abre a janela, vem aquele vento frio se misturando ao ar quente. Ela prefere fechá-la e deitar, vai pesquisar em sua mente algo que ela saiba explicar o por quê, afinal tudo aquilo que não se explica é sempre muito estranho...


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A ferocidade da beleza (Vana Comissoli)


             Eu a conheci de uma maneira tão prosaica que jamais poderia imaginar que se tornaria parte de mim e que sem sua presença em minha vida eu seria sempre metade.


            Era um dia quente, monótono, do tipo que eu denominava tirânico, seu único objetivo era me obrigar a viver. Nesses dias em que sair da cama, acordar, trabalhar, comer, eram atos desgastantes que levavam embora minha paciência e habitual acomodamento à respiração automática. Não havia nada que eu pudesse fazer com ela, simplesmente existia e eu me submetia a contragosto, mas nunca me passara pela cabeça, nem nas noites mais insones, que eu pudesse simplesmente abortar o movimento sistêmico dos pulmões.


            Era meio dia e não me restava outra coisa a não ser fugir do sol a pino me escondendo sob as marquises por duas quadras até chegar ao restaurante mais próximo. Para meu azar era o mais caro, mas estes dias são sempre sem sorte e por isso não me cansei reclamando. Agora ter todas as mesas ocupadas foi demais!


            No fundo do restaurante, perto dos eflúvios gordurosos e odientos da cozinha tinha uma mesa com uma mulher de costas para a entrada. Dane-se, pensei contra minha solidão arraigada, sentarei lá mesmo. Dispus-me a caminhar como quem tem que andar muito rápido sobre areia movediça, senão afunda.


            Pelo tamanho da cabeleira já vi que a mulher deveria ter uns vinte centímetros a mais do que eu, tinha cabelo para dar e vender. Poderia cobrir facilmente minha careca incipiente com a qual eu brigava todos os dias. Já não bastava ter cara de fuinha, boca de chupar ovo e um nariz a la Gerard Depardieu?


            Adoro cinema. É minha grande oportunidade de viver, posso mergulhar num filme com muito mais facilidade do que mergulharia numa piscina e então ser quem eu quiser e ter as mulheres que desejar. Viver o que jamais me seria permitido. Não estou reclamando de nada, apenas pensando no meu perfil que acabei aceitando: uns são favorecidos, outros não. Assim é e brigar só faz tudo se tornar ainda mais difícil.


            Esta minha paixão me deu conhecimento sobre todos os atores e atrizes, meus verdadeiros e fiéis amigos, uma fidelidade bem próxima da real, já que mudavam de nome, histórias e sentimentos, com o mesmo desprendimento com que meus amigos de carne e osso me deixaram para trás. Eu não era uma companhia muito agradável, fazer piadas para compensar seria uma humilhação que não me facilitaria em nada. Me deixaria humilhado. Ser o engraçadinho da turma me traria apenas vergonha e medo do ridículo. Eu já era ridículo o bastante.


            Aquela mulher era a encarnação perfeita da desaparecida Sophia Loren. É eu também tinha disso, gostava das antigas. Era como se o tempo as tivessem levado embora e não a minha palidez de espírito. Enfim, era a minha Sophia. Pedi licença e sentei à sua frente.


            Foi difícil levantar-me e servir um prato no bufê farto. Fiquei pensando qual comida a Sophia julgava conveniente para um almoço que tivesse um pouco de refinamento que eu não tinha. Era um artigo que não precisava me dar ao luxo de conquistar, nunca repartia minha mesa.


            Quando voltei ela levantou uns olhos de Elizabeth Taylor, juro que eram lilases, e sorriu. Não sei como consegui me sentar e muito menos segurar o tremor das mãos. Fiquei sabendo que seu nome era Darlene e que era médica. Viera fazer um atendimento especial numa pessoa querida, não costumava frequentar aquela zona da cidade. E passou o almoço todo tagarelando, contando coisas, piscando os olhos e me deu uma alucinação, só podia ser isso, por que imaginei que me olhava de forma a me enxergar. Mulher alguma até esse dia fizera isso, meus problemas sexuais eu resolvia chamando um Sex Delivery e mal acabava descartava a sem nome com uma gorjeta gorda que a fizesse voltar sem bater boca com a dona do cafetinagem.


            Mas Maura me enxergou. Ao se despedir me estendeu seu cartão e pediu que eu ligasse para ela, gostaria de me conhecer melhor por que era muito simpático. Um homem natural que não tentou me seduzir foram suas últimas palavras.


            O sol não me torrou, as horas deslizaram e os colegas não foram tão distantes. Tudo se coloriu e eu não podia acreditar que aquilo acontecera comigo, alguma coisa estava errada e tinha certeza que Maura não era cega e nem surda.


            Depois de tomar três vidros de Rescue, esse abençoado floral que era meu socorro, eu liguei. Nem sequer fiquei mudo como via nos filmes, falei alto e forte. A convidei para jantar e ela aceitou.


            Eu nunca fora à mãe de santo fazer trabalho e nem acendera vela para santo, então aquilo só podia ser uma paranoia que tomara conta de mim a tal ponto que eu misturava verdade com imaginação. Só o filé Chateaubriand à minha frente e o caldo delicioso rolando na minha língua me deu certeza que estava acontecendo realmente. Maura entrava na minha vida com seu maravilhoso perfume de folha de limoeiro.


            Foi tudo muito rápido, logo sabia o quanto era desesperançada do amor, como fora usada por sua aparência que odiava e me encontrar fora um recado dos céus que confiar em alguém ainda era possível. Ser feliz também era. Fui estonteantemente feliz.


            No fim de ano, pela primeira vez, fui à festa oferecida pela empresa onde trabalhava na gerência administrativa. Quando apareci de braços com meu mulherão, todos os olhos caíram sobre mim, as bocas ficaram entreabertas e teve gente deixando o queixo cair no chão.


            Maura estava deslumbrante. Até o diretor veio me cumprimentar e pedir que apresentasse minha companheira. Não tive dúvidas:


            - Dr. Gonçalo, lhe apresento minha noiva.


            O homem não soube o que responder e Maura depois de lhe apertar a mão, beijou-me no rosto, me fazendo um carinho na face. Era a glória. Eu estava redimido de todos os miseráveis anos passados de minha vida.


            Naturalmente ela se transformou no centro de tudo. Nada havia sem Maura, nem mesmo eu existia. Eu era ela. Passei a caminhar com sua firmeza, a colocar opiniões como quem acredita no que diz, sair à noite sem medo e conduzi-la pela cintura na frente de todos. Pelos ombros seria bem complicado, então pulei este impedimento.


            Após três meses ela propôs se mudar para minha casa. Não podia acreditar, ela me queria de verdade e nem sequer a deixei carregar a menor das caixas, se pudesse até a ela eu carregaria.


            Fui promovido, perdi o medo de mostrar que não era o parvalhão que pensavam, eu entendia do meu trabalho e o fazia bem, muito bem. Meus colegas passaram ir em nossa casa e tínhamos belas noitadas de conversa inteligente e música de primeira qualidade. Maura preparava jantares estupendos e aprendi a comer, a beber bons vinhos e a degustar um verdadeiro Tiramisu, feito com mascarpone legítimo. Se Maura queria mascarpone, ela teria mascarpone. As estrelas, os sapatos, as roupas, as grifes e as férias na Tailândia, pode pedir, eu dizia enquanto ela cortava minhas unhas.


            O sexo foi uma viagem espacial até que Maura resolveu que melhor seria vir por cima de mim. Eu não conhecia luta livre até este momento. Nem grito, tapas e socos na cara. Mas se a fazia feliz... Quem era eu, um quase anão de jardim a contrariar? Não perderia a mulher de minha vida nem que precisasse rastejar.


            Não devia ter pensado isso por que eu rastejei. Ela engordou 10 quilos nos poucos meses seguintes e seus seios me sufocavam, enormes e famintos por comer minha boca. Seu apetite era insaciável e gozava apertando meu membro até me fazer chorar. Ria desbragadamente me chamando de fracote e inútil.


            Mas era Maura...


            Minha casa foi fechada aos meus medíocres colegas e infestada de gente pernóstica que se dizia cult para cheirar cocaína e trepar uns com os outros enquanto eu me enrodilhava no sofá sem saber quem eu era, ou o que eu era.


            Deveria ser miseravelmente banal, não entendia estes rebuscados encontros de prazer, não falava pornografia em francês, não usava o banheiro de portas escancaradas.


            E Maura engordava. Tornou-se imensa, pelo menos era como eu a via, mas os homens na rua, continuavam se voltando para olhá-la. Isso ainda me gratificava. O sacrifício não era em vão e eu tinha Maura.


            Não muito lentamente o sexo acabou, as unhas cresceram, os cabelos caíram mais rápido e voltei a ser calado e distante. Eu tivera Sophia, virou obsessão saber onde ela se escondera. Comprei todos os presentes caros e finos que eu imaginava que a agradassem, os jogava num canto até sair com as joias penduradas nas orelhas e nos dedos para lugares e reuniões onde eu não era admitido.


            À noite eu sonhava com a Maura sentada na mesa do restaurante me dizendo como eu era simpático e quanto queria estar comigo. Deixei que esses sonhos me sustentassem até que se tornaram pesadelos. Ela estendia os braços sobre a mesa, tirava nacos de minha carne e me engolia enquanto um fio de sangue escorria do canto dos lábios.


            Em algum lugar minha culpa deveria estar me espiando e precisava acha-la, me ajoelhar e pedir perdão. Então Maura voltaria para mim com seu riso cheirando a folhas de limoeiro.


            A cama está vazia nesta manhã chuvosa, a chuva bate na vidraça como lágrimas caindo nos óculos. Procurei Maura por tudo, quem sabe a vontade de me trazer café retornara e ela estava na cozinha preparando as torradas do jeito que gosto? Quem sabe escovando os dentes? Quem sabe lendo na sala? Quem sabe? Quem sabe onde ela está?


            A porta do cofre onde guardava as joias estava aberta e ele era uma boca de lobo vazia e escura. Os armários estavam pelados, as sapateiras descalças e eu... Eu estava à poucos centímetros da loucura.


            Fui à sacada sentindo o peito respirando como sempre, naquele mesmo ritmo que não podia mudar apenas permitir. Olhei para baixo e ainda pude ver o carro, último presente que dera à Maura, dobrando a esquina.


            Mudei de emprego, de cidade, procurei a mais obscura que pudesse me engolir e sumi de mim mesmo. Não via televisão, não lia jornais, comia feijão com arroz e um naco de carne sem gosto num boteco qualquer que me obrigava a viver.


            Foi sem querer, foi um relance que me fisgou. No jornaleiro, um periódico aberto puxou meus olhos. Lá estava ela, linda, grande, a cabeleiras lustrosa refletindo sol de piscina. Na cadeira ao lado um homenzinho ridículo, meio careca, meio gordo, de idade a meio, sorria feito um boi de presépio.


Vana Comissoli

sábado, 17 de novembro de 2012

Davi e Jônatas (Fernando Bastos)

 

Israel era governado pelo rei Saul, mas ele fizera o que era mal aos olhos do Senhor, de modo que o profeta Samuel fora chamado para escolher um substituto. Em Belém, ele ungiu um jovem de bela aparência, de cabelos ruivos, chamado Davi. A partir desse dia, o garoto foi tomado pelo espírito de deus, que o acompanhava a todo instante.


Conhecendo a fama de bom músico, Saul mandou chamar Davi, o belemita, para perto dele. Todas as vezes que um espírito maligno se apoderava do rei, Davi tocava a harpa e Saul se acalmava, de maneira que o filho de Jessé ganhava cada vez mais pontos a seu favor, tornando-se escudeiro do rei. Quando Davi lutou contra o gigante Golias e o derrotou com uma simples funda, todos o temeram, pois sabiam que deus estava com ele. Como prêmio pelo ato de bravura, o rei o convidou para morar em seu palácio. Jônatas, filho de Saul, no mesmo instante em que viu Davi, apaixonou-se pelo belemita. Quando Davi saiu da reunião com o rei, Jônatas chamou-lhe num canto e disse, Davi, filho de Jessé, eu o amo como minha própria alma, façamos um pacto para nunca nos separarmos!


Após um carinhoso abraço, Jônatas presenteou Davi com seu manto, dando-lhe também armadura, espada, arco e cinto. Davi foi nomeado chefe dos guerreiros. A cada nova batalha crescia sua fama de grande líder, a ponto das israelitas cantarem, “Saul matou aos milhares, Davi, às dezenas de milhares”.  Aos poucos, a admiração do rei Saul pelo jovem belemita se transformava em ódio. O rei ardia em uma inveja que lhe corroía as entranhas, e logo começou a maquinar um plano para matar Davi.


Um dia, enquanto Davi tocava cítara para o rei, Saul arremessou duas vezes a lança contra ele, mas lépido que era, Davi saiu incólume do ataque. Saul pensou consigo mesmo, Esse filho de uma vaca é protegido do Senhor; então , que não seja a minha mão que o ferirá, mas a dos filisteus.


Saul mandou chamar Davi e lhe disse, Filho de Jessé, em troca de seu êxito nas batalhas, vou lhe dar por mulher minha filha mais velha, contanto que continue a ser um filho valoroso e destemido nas guerras do Senhor. Davi não quis aceitar a mão da filha do rei, julgando-se não merecedor de tão elevada honraria; essa foi a desculpa, mas o motivo da recusa foi que já estava ligado até a medula  ao amor de Jônatas. Entretanto, acabou aceitando depois de ouvir os rogos de Saul.


Como não tinha dote para pagar pelo casamento, Davi foi engenhosamente mandado à linha de frente na luta contra os filisteus, para, segundo imaginava o rei Saul, fosse morto em campo de batalha. No entanto, além de voltar vivo, Davi ainda trouxe duzentos prepúcios de soldados mortos em batalha. Era o dote que Saul pedira.


Conforme o trato, Mical foi entregue como mulher a Davi, mas a ira de Saul pelo tocador de cítara aumentava dia após dia. Numa reunião de emergência, em que chamara seus melhores generais e o filho Jônatas, o rei disse, Matem o belemita! Jônatas saiu correndo e avisou seu amado, Meu pai deseja sua morte. Fuja, querido, enquanto há tempo. Davi fugiu e foi morar em Ramá, junto ao profeta Samuel.


Numa noite, enquanto jantavam, o rei disse, Hoje é o segundo dia que Davi não aparece para cear conosco; onde ele está? Jônatas respondeu, Ele pediu-me para ir a Belém realizar um sacrifício em família e eu deixei. Mas o rei já suspeitava da relação proibida de ambos, e grande foi a explosão de fúria do monarca de Israel, atirando pratos e jarra de vinho contra o chão. Então, mirando a cara de Jônatas, gritou, Seu filho de uma cadela, todo o povo sabe que você escolheu Davi para sua vergonha e vergonha da sua mãe. Enquanto Davi estiver vivo, você não estará seguro, nem seu trono. Agora, parta e traga-me a cabeça dele.


Jônatas foi ao encontro do amado, e quando Davi avistou a figura do filho do rei, saiu de seu esconderijo e o beijou. Dependendo da versão bíblica, foi apenas um abraço, mas de qualquer modo, a essa altura, por mais que os defensores da tese de que o amor entre Davi e Jônatas era como de dois irmãos, se deixarmos os preconceitos tolos de lado, veremos que sim, havia entre eles um amor homoafetivo, do qual ninguém pode negar. Muitos, de fato, se mostram contrários às provas desse amor homossexual, pois pelos padrões da moral homofóbica da Bíblia, não pegaria bem que gerações mais tarde, o Messias cristão seria descendente de um gay, ou bissexual, como preferem alguns autores, o que, para os conservadores, isso abalaria profundamente a reputação do filho de deus.


Tempos depois, os filisteus atacaram Israel, e mataram Saul e seu filho Jônatas. Quando a notícia chegou aos ouvidos de Davi, ele compôs um cântico fúnebre em honra de Saul e Jônatas, o verdadeiro amor de sua vida. À noite, ao redor da fogueira, sob olhar dos companheiros de luta, o belo filho de Jessé se cobriu de cinzas, rasgou as vestes e, com a alma enlutada, cantou num brado dolorido,


“Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; muito querido me eras! Maravilhoso me era o teu amor, ultrapassando o amor de mulheres.” (Segundo livro de Samuel 1,26).


 Fernando Bastos, cartunista, ilustrador e escritor.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Clown time: A hora do palhaço (Sônia Pillon)

As arquibancadas estavam lotadas.

Especialmente pelas crianças, que se agitavam,

olhos brilhantes e sorrisos de expectativas.

Estavam acompanhadas dos pais, irmãos e

coleguinhas de escola. Algumas seguravam balões

coloridos, outras pacotes de pipoca, que comiam

avidamente, com os olhos fixos no picadeiro.

E pouco importava se parte da grande lona do

circo estava remendada e com goteiras em alguns

pontos. Eles estavam ali para assistir o palhaço,

com sua roupa espalhafatosa e desajeitada, sua

maquiagem engraçada e suas tiradas ingênuas.

Mas não eram só os pequenos que se

encantavam com as palhaçadas desse artista

de tradição milenar. Os adultos, também! Eles

voltavam à infância, ao tempo em que andavam

descalços pelas ruas e jogavam ‘pelada’ no

campinho do bairro... “Bons tempos, aqueles!”,

pensavam, num instante de nostalgia... As

obrigações do dia a dia de gente grande os levou

para caminhos nem sempre coloridos, cinzentos,

muitas vezes...


José olha para o filho João e reconhece nele

mesmo brilho no olhar de quando era moleque,

quando e o circo chegava na cidade. Na época,

era um verdadeiro acontecimento! Hoje, em

muitos momentos, a vida lhe pareceu um circo

de horrores... Mas também lembrou de uma

frase do ator brasileiro especializado na arte

de fazer sorrir, Nico Serrano, de que ‎"a alegria

de palhaço não é ver o circo pegar fogo. É ver a

alegria incendiar o picadeiro”... Pura verdade!

A música começa a tocar e o espetáculo

está prestes a iniciar. “Respeitável público!

Senhores, senhoras, senhoritas, gente pequena

e gente grande! Temos a honra de apresentar o

palhaço ‘Tagarela’, o maior mímico do Brasil!

Palmas para ele!”... A criançada entra em delírio.

Todas as atenções se voltam para o Tagarela,

que fala pelas mãos, expressões do rosto e

pelos movimentos do corpo. As palhaçadas e

trapalhadas do Tagarela arrancam gargalhadas

da plateia, que se torce de tanto rir. Sucesso

absoluto!

A apresentação do palhaço chega ao fim

e o público o aplaude de pé. Ele se despede,

sem dar as costas para a plateia e se recolhe

ao fundo do palco. Agora Tagarela está no

camarim, senta em frente ao espelho e olha

para si mesmo. Tira o nariz de palhaço e

começa a remover a maquiagem. Estava feliz. O

entusiasmo do público compensava as tristezas,


a solidão, as dívidas acumuladas, a incerteza

do futuro... “Tudo vale a pena!”, disse para si

mesmo, enquanto uma lágrima escorre pelo seu

rosto...




Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC).

domingo, 11 de novembro de 2012

Perspectivas para uma segunda (Adriana Niétzkar)

- Você poderia cortar os galhos da sua árvore?
O vizinho se aproxima do outro até o limite do muro alto:
- Bom dia! o que disse?
- Sua árvore. As folhas dela estão sujando meu quintal.
O vizinho olha as britas através do muro alto, sufocando um pensamento


                                                                                               "quintal?!":


- Folhas... Ah sim, as flores do ipê!
O outro pensa,


                                                                                        "Flores?! mas a árvore está toda amarela..."
E por fim diz:





- Certo. Passei a tarde de ontem limpando meu quintal e hoje está tudo assim de novo, você poderia cortar o galho?




                                                          "Ou eu mesmo posso encostar uma escada"

- Sim. Posso, mas ainda assim o vento pode carregar algumas flores...
- E cortar a árvore?

                                                                                        " Cortar meu ipê? Vou plantar um pé de manga pra cheirar no seu quintal..."


- ahhh... bem, ela logo para de florescer e essas flores são lindas, não são?! passei a manhã admirando elas... eu as deixo sobre meu gramado, veja?!


o vizinho estica o pescoço a contragosto para ver o verde-amarelo do outro:
- Sim, estou vendo...


E lhe dá as costas em um último pensamento.


                                                                                      "Vizinhos"


- Tenha um bom dia!!!
Grita o outro antes de seguir para seu trabalho,


                                                                                       "vizinhos!"


e vai sorrindo para as flores sob seus pés no gramado e em sua calçada antes de caminhar no cimento friu.

                                                      " Que mal ha em ter um pouco de vida nessa cidade tao sem terrra e cor?!"


O vizinho despede-se com um braço meio levantado, sem olhar pra trás, evitando olhar sua brita, mas logo caminha sobre flores na calçada, mal humorado, as pressas para chegar ao lado limpo. Vê o varredor na outra esquina, quando voltar o serviço dele já terá desaparecido.


                                                                                    "Qual a dificuldade em se deixar a vida no campo?"


Alguns pássaros cantantes pousam sobre os galhos amarelos. A rua povoa-se com o frenesi de carros de todas as cores.


sábado, 10 de novembro de 2012

O medo que um livro ainda provoca (Ítalo Puccini)


Em 2009, lembro-me, foram retiradas mais de centenas de milhares de exemplares do livro “Aventuras Provisórias”, do escritor catarinense, radicado em Curitiba, Cristovão Tezza – o, à época, ganhador do maior prêmio de literatura do país, o Jabuti, com o romance “O filho eterno”. Isto devido ao chilique de alguns pais e professores alienados que argumentaram que o livro continha elementos “perigosos” para os adolescentes: alguns palavrões e referência a uma relação sexual. Como se na vida para além dos livros os adolescentes não estivessem em contato com esses “perigos”. Imagino que estes mesmos pais e professores tenham cortado as novelas televisivas de seus filhos e alunos também. Seria o mais coerente.


A falsa moralidade sofre com as diferenças.


Agora, 2012, deparamo-nos com a proibição do uso do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, nas escolas, devido a uma ação, junto ao MEC, do Instituto de Advocacia Racial (Iara), que vê nesta obra a presença de trechos preconceituosos à cor negra.


A literatura era, para Monteiro Lobato, um instrumento de transformação. Literatura, para o maior escritor infantojuvenil que o país já teve, era a própria vida. Foi a partir da vida à sua volta que Lobato construiu sua literatura – tanto a adulta quanto a infantil, esta última alcançando uma repercussão inigualável até os dias de hoje. O Monteiro Lobato homem pouco difere do Monteiro Lobato escritor. Crente de que a literatura representava a vida, em sua obra Lobato deixa claro esta convicção. Seus personagens retratam pessoas próximas, retratam pessoas que existem na vida real, retratam modos de viver e de pensar, retratam uma linguagem que reaproximou o leitor do texto literário, porque coloquial e nem por isso menos inteligente.


Era, o autor, um nacionalista que acreditava na independência do Brasil através da independência econômica, e não era preconceituoso racialmente, como alguns afirmam em função de Negrinha ser apresentada numa posição inferior em sua obra, ou de Dona Benta ser uma empregada doméstica de cor negra. Quando discorria sobre as figuras negras inferiorizadas, ele apenas apresentava uma leitura crítica de uma realidade social da época.


A literatura é tão importante para uma sociedade justamente por permitir aos seus leitores o direito à liberdade de interpretação de um texto, o aprendizado do respeito às diferenças. Porém, ela não tira do leitor aquilo que ele traz dentro de si – no caso, o preconceito. Assim como não existem escritas inocentes, da mesma forma não existem leituras inocentes. “Toda história é uma interpretação de histórias: nenhuma leitura é inocente”, já afirmara o crítico literário Alberto Manguel. Não há como se ler algo sem relacionar a outro algo, ou já lido, ou já ouvido, ou já presenciado. É dessa forma que a leitura, seja ela literária, seja de jornais, revistas, de imagens, ou de qualquer outro meio, enriquece aquele que dela faz uso, desde que devidamente contextualizadas. Ler um livro ajuda a ler o mundo.


O ato de ler pressupõe uma leitura não somente de textos, de palavras escritas. Não somente de imagens ou de sons. Mas sim uma leitura de nós mesmos e daqueles com quem convivemos. Ler é, também e principalmente, saber ler a si mesmo e ao outro com o qual se estabelece uma relação de viver. E cada leitor constrói uma história própria de suas leituras, assim como cada texto apresenta também sua história própria. É preciso saber que a vida não pulsa somente na televisão ou nos best-sellers. Ela está, também, nos livros que provocam o leitor, que propõem um revisitamento às próprias vivências. Ela pulsa da mesma forma nos livros de um Cristovão Tezza, de um Rubem Fonseca, de um Marçal Aquino, de um Dalton Trevisan, de um Monteiro Lobato. Privar alguém de conhecer a vida por este meio é lhe cercear a liberdade de interpretar o mundo no qual está inserido, de aprender com o livro, este elemento de subversão que ainda provoca medo naqueles que querem ter o mundo para si e aos seus olhos como se fosse uma bola de futebol da qual se é dono.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Mensagem (Thiago Daniel*)

Eu queria dizer a ela, mas o tempo é o bote de uma cobra peçonhenta.

Sempre fui um cara “na minha”, falo pouco, jogo pouco, e, em jogos de coração, sempre fui o mais cabação.

Ela sentava ao meu lado, na sala da 6ª série 02. Terceira cadeira.

Acho que ela nunca olhou para mim. Eu queria chamar atenção, juro, sempre quis, mas nunca tive sequer coragem. Não havia santo fazedor de olhares, que a fizesse voltar sua atenção a mim.

Dessa vez era diferente, questão de honra, estava convicto que agora ela me olharia. Precisava disso. Pensei ser discreto, com leves estalos de dedos, uma tossezinha falsa. Nada.

Bolei planos. Era preciso enviar minha mensagem de qualquer jeito. Pensei no Código Morse e comecei a bater compassadamente com minha caneta na carteira. Eu não sabia como funcionava tal código, então logo percebi que não surtiria efeito, e mesmo que eu soubesse tal mensagem, duvido muito que ela atentasse ao meu comunicado. Desisti.

Lembrei de outro velho código dos índios americanos, descoberto pela minha pessoa, assistindo filmes de faroeste com meu pai, os sinais de fumaça. Logo pensei em pedir para o professor licença para ir ao banheiro, assim procuraria algo pra colocar fogo do lado da janela da nossa sala. Ela olharia e pronto, nosso amor estaria a salvo. Logo desisti da ideia, primeiro porque o professor não me deixaria sair da sala em meio a uma prova, segundo que se alguém me visse colocando fogo, dentro da escola, em qualquer coisa que seja eu seria expulso.

Não havia mais tempo. Peguei um pedaço de papel e decidi escrever nele. Em velocidade desumana, pelo menos para mim que sempre escrevi muito lentamente, rabisquei o que eu tinha a dizer. Foram os cinco segundos mais intensos da minha vida. Lembrei das festas juninas, alguém sempre entregava os bilhetinhos de amor para o destinatário, mas agora era diferente, não havia esse tempo, não havia ninguém entre nós. Nem pombos correio. Amassei o bilhete e joguei aos pés dela torcendo para ela ver e catar o papel.

Tarde demais, o papel rolou entre os pés do professor. Estava de costas para mim e de frente para ela. Ele pegou a prova dela, ela se levantou e foi embora.

Estava acabado. Se ao menos eu fosse um tanto mais corajoso.

Ao fim da prova, peguei o bilhete debaixo da cadeira dela. Ele a faria olhar para mim pela primeira vez, talvez até arrancasse um sorriso de seu rosto. Um sorriso dela só para mim.

Abri o bilhete para ler uma última vez antes de jogar no lixo. Li, rasguei e o joguei fora, mas as palavras ecoariam na cabeça por um longo tempo. Aquelas que salvariam o meu amor.

“Guarda esse livro, o professor está te vendo colar”.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Arrumadinhas (Marcelo Lamas)

Sempre preferi as princesinhas. Aquelas que iam arrumadas para a escola, que combinavam o prendedor do cabelo com a estampa da blusa. Se entrar a Miss Brasil desarrumada e uma outra “normal”, mas ajeitadinha, eu só vejo a não titulada.


Quando eu tinha uns nove anos cometi um delito grave com uma guria dessas. Ela era uma índia muito linda. Eu fui lá e passei a mão nos glúteos dela. Acho que eu não era um tarado precoce. Devo ter imitado os líderes mais velhos da gangue. Ela e uma amiga foram até a minha casa e fizeram uma reclamação formal. Recebi punição severa. Eu tinha uma irmã, então eu deveria respeitar as outras meninas e por aí foi a reunião, que cancelou mesada, futebol, televisão e audição de música no carro. O problema é que a morena cresceu e virou a número um do colégio. Segundo os outros eu tinha chance com ela – será que ela preferia os caras de óculos? –. Mas eu, eternamente envergonhado, não tinha coragem de olhar para a guria.


Na faculdade de engenharia, bem escassa de mulheres, apareceram duas retardatárias no final do curso. Eu só enxergava uma. A outra não se ajeitava. Um colega me corrigia: “Cara, tu tá loco! Ela é gata. Olha o corpo dela!”. No dia da formatura eu vi que ele estava certo. A falsa-magra toda produzida deixou aquela que eu admirava no chão.


A minha namorada treina kickboxing, assiste ao canal Combate, gosta de futebol e anda de skate, mas outro dia ela me confidenciou que não consegue mais ficar sem esmalte, de tanto que eu falo da minha admiração pelas meninas vaidosas. Certa vez, em Buenos Aires, um argentino tentou ver as horas no relógio dela e curioso, perguntou-me se havia fuso entre nossos países. Aí eu percebi que o relógio dela estava parado. A pilha tinha terminado, mas ela levou-o porque combinava com a roupa. Recentemente, numa viagem de três dias que fizemos, ela levou cinco relógios pra garantir os looks.


Quando eu ventilei que escreveria estas passagens, ela disse que me mataria. Bem, supondo que ela “apenas” termine o relacionamento, se eu tiver que procurar outra namorada o perfil da pretendida já está bem definido. Desde sempre.


Por Marcelo Lamas
marcelolamas@globo.com