terça-feira, 29 de outubro de 2013
Escritor Convidado (Marcos Santos)
terça-feira, 22 de outubro de 2013
sábado, 19 de outubro de 2013
Acordes (Vana Comissoli)
Abriu a porta cansado, era a décima casa que visitava para um possível aluguel que se mostrava impossível. Todas tão sem possibilidades, sem nem uma nota musical bailando à sua espera. Nem sequer entrou totalmente, a cabeça desencantada foi olhando o chão.
O piso de pau marfim tinha as tábuas colocadas de forma enviesada e ele fascinou. Atravessou o portal com olhos sonhando e já vendo como tudo ficaria. Nem se deu ao trabalho de olhar os outros cômodos, eram apenas mecanismos de sobrevivência: comer, dormir e banhar-se. Coisas que fazia na obrigação.
Voltou à imobiliária e não pechinchou o aluguel, fechou negócio para logo infernizar a transportadora, era absolutamente necessário que se mudasse no dia seguinte, tinha pouca coisa e fora o piano de cauda, com nada mais precisavam ter cuidados.
Os homens levaram o piano quase sob açoite, ele não parava de gritar impropérios e exigir delicadezas que espontaneamente estavam sendo feitas. Depois foi com régua na mão que ele escolheu o local do instrumento, bem ao centro da sala.
O escasso mobiliário foi colocado à vontade dos transportadores. Não tinham muito o que escolher, cama e armário apesar de capengas só podem ir no quarto, fogão e geladeira tinham a cozinha como destino certo. Algumas poucas caixas de roupas e louças, todas misturadas, ficaram no corredor à espera da disposição de seu dono para ir aos armários. Sabe-se lá quando.
Assim que a porta fechou atrás dos homens suados, ele abriu as janelas e o sol da manhã escorregou pelo chão, tornando-o mais claro e pondo reflexos de brilho sobre a lateral do piano lustroso. Fora colocado ao contrário do encaixe das tábuas, o que davam uma desconcertante transversalidade, como se os caminhos se cruzassem sem jamais se tocar.
Ficou vários e mais vários minutos em êxtase olhando o que lhe parecia uma obra prima, prestes a bocejar criando vida. Sentia o fluir do sangue através dele, pronto a entrar nas veias retas do piso e das teclas. Sentou-se em reverência no banco junto ao instrumento e acarinhou as teclas com devoção, para em seguida fazer soar os primeiros acordes de uma sonata de Schubert. Sabia de cor cada nota e fechava os olhos como se a música formasse imagens dentro dele. Algo perdido no tempo, muito antes dele ter vindo ao mundo para tocar.
A noite chegou e ele continuava tocando, levantou-se algumas vezes para admirar a transversalidade. Era atravessado na vida e tinha, depois de muita busca sem saber o que buscava, encontrado a representação de si mesmo. A música atravessando a planura dos dias e a paralelismo com que convivia no mundo. Toda a luz vinda das notas que dançavam em torno dele, numa corporificação não permitida aos outros simples mortais.
Não se achava um exímio pianista, não achava que ninguém era digno de ser assim chamado. Não tinha amigos e nem namorada, nunca tivera. Quem falaria com tanto acerto como o piano? Quem teria uma curva mais precisa e suave que a cauda do instrumento? Quem se deixaria tocar com tanta sensualidade, raiva, amor, dúvida, tristeza do que as teclas que falavam, ronronavam, gritavam e seduziam? O único filme que merecera sua atenção foi A Lenda do Pianista do Mar e pela primeira vez na vida desejara ser outra pessoa que não ele, para deslizar pelo balouçante salão de um navio enquanto guiava seu imortal amor numa suavidade ondeada.
Solitário? Jamais! Vivia acompanhado desta alma musical que se corporificava sob seus dedos. Já dormira incontáveis noites sob o corpo do piano, como quem está com a mulher amada. Seus orgasmos eram infinitamente mais completos e lúdicos sob ele.
Às vezes se lembrava de banhar-se, comer, trocar de roupa para em seguida voltar aos pés do piano quase humilde, quase culpado por tê-lo abandonado nas exigências da vida.
Não fechava as janelas, imaginava que as notas precisavam de fuga para o céu de onde vieram, tinha certeza. No início os vizinhos ouviam encantados a música elegante, refinada e perfeita que o novo morador trouxera. Todos os mestres estavam presentes nela, devia ser de acordo com o estado do morador, cogitavam meio em surdina por cima do muro, como se não quisessem incomodar o pianista. Quando a música, fosse de quem fosse, atravessara as noites roubando o sono tranquilo, começaram a não achar tão bom assim. Quem seria o escolhido para bater àquela porta que apenas se entreabria para receber compras do mercado, na certa feitas pela internet ou telefone? Teria telefone? Nunca ouviram um único tilintar.
O vizinho não vinha à rua cuidar do jardim, nem sequer por o lixo para ser recolhido. Talvez de noite fizesse isso? Porque o jardim estava mais impecável do que jamais fora e belas rosas brancas desabrochavam em grandes e perfumadas pétalas. Alguém teria que enfrentar a tarefa, pedindo ao estranho morador que não tocasse durante a noite. Quem? Sem nunca terem visto o pianista, como era chamado, tinham um estranho medo dele.
João Gustavo ficava alheio a esses movimentos, não se daria ao desagradável trabalho de pensar em vizinhos, eram formigas para ele, as quais se pisa sem se prestar atenção, ou talvez nem sequer existissem realmente.
Maria Clara era uma mocinha sem graça, meio escondida pelos escorridos cabelos mais claros do que o desejável e a pele que se perdia nele por tão parecida ser na cor. Franzina, com seios encolhidos e pernas longas e finas cobertas por vestidos fora de época. Talvez pela aparência desamparada, acreditaram que o pianista se compadeceria e foi a escolhida. Para surpresa da vizinhança e alívio, ela se ofereceu para a empreitada. Não sabiam que muitas e muitas noites ela se esgueirara para baixo das janelas musicais e ali ficara até o amanhecer pintar o céu, o que lhe deu umas olheiras escuras que mais apareciam no rosto de leite.
João Gustavo nem sequer ouviu a primeira batida na porta feita por dedos trêmulos e magros, sem força para um toque firme. Talvez na terceira ou quarta vez tenha ouvido, mas era treinado em ignorar vendedores e pedintes que nada encontrariam com ele. Irritado com a insistência atendeu, os olhos cuspindo raiva pela intromissão.
Olhou a insignificância da figura e esperou sem uma palavra. Ela gaguejou o pedido para em seguida acrescentar que não era sua vontade, que o ouvia hipnotizada sob a janela e que por sua vontade ele tocaria sem qualquer intervalo. João fincou os olhos nos dela, não ouviu muito bem o recado, mas o encantou a ouvinte inesperada. Mandou-a entrar e ofereceu o chão como assento. Maria Clara não achou nada estranho e sentou na transversalidade do piano.
A vizinhança não teve o alívio esperado e, ao verem que a moça entrava e por lá ficava horas a fio ao longo dos dias, também não teve o amor surpreendente e tórrido que levaria vida ao pianista, na opinião deles.
João Gustavo em nada mudou sua rotina, apenas acrescentou um abrir de porta. Maria Clara não abria a boca nem para o bom dia, isso era absolutamente desnecessário e era um acerto tácito entre ambos. Sabiam que o som de suas vozes atormentaria a perfeita harmonia das notas.
Ao contrário do esperado pelos maledicentes vizinhos, ela não se tornou cantora de ópera e muito menos apareceu grávida. Não aprendeu a tocar piano e continuou não distinguindo uma clave de sol de uma clave de fá. A música era algo vivo que bastava que fosse João Gustavo a ter a dor de parir através do estudo das bolinhas e riscos negros atravessados nas folhas pautadas.
Os anos se passaram e a vizinhança se acostumou a dormir embalada por Mozart, Bach e sua turma. Os pais de Maria Clara pararam de reclamar que ela ficaria difamada entrando na casa de um homem solteiro, não prestavam atenção alguma a isso e às vezes nem sequer notavam que ela não estava em casa.
A música cessou de repente, sem desafinar e sem o acorde final. No meio de Minha Amada Imortal, a Nona Sinfonia de Beethoven.
Houve alvoroço na vizinhança, algo novo e muito sério acontecera. Bateriam na porta? Lembraram-se da moça branca, nem os pais sabiam o que havia acontecido com ela, parecia sumida como uma última nota tocada que paira um pouco no ar e se esvai sem ruído algum. Pensaram em chamar a polícia, mas era um bairro tão família que negaram o alvoroço. Pensaram em bater à porta, a moça era maior de idade, alegariam o quê? O grandalhão da rua, que impunha respeito pelo tamanho dos bíceps, foi escolhido para espiar pela janela. Pé ante pé, nervoso como se o dono da casa pudesse enfrenta-lo numa briga, espiou.
Deitado sobre o piano, abraçando as teclas, João Gustavo parecia dormir. Transversal. No chão cruzando as linhas das tábuas do chão, tão clara como pau marfim, Maria Clara também transversal.
O duplo sepultamento foi feito ao som da Sonata nº 2 para piano em Si bemol menor, op. 35 de Frédéric François Chopin, que chamamos de Marcha Fúnebre, mas que o pianista jamais assim intitulara. A vizinhança assumiu os preparativos, não tiveram coragem de mandar o pianista para um enterro indigente, ele absorvera suas emoções transformando-as em música, de modo que jamais tomaram proporções abissais em seus peitos.
Após alguns dias e noites silenciosos, onde ninguém se acomodava muito bem no sono, acostumados estavam a ser embalados, muito fraco e depois no velho e desejado volume de antes, a música voltou a percorrer as ruas e bater nas casas com sua esperança, tragédia e luz.
Na primeira manhã após a volta das melodias houve certo alvoroço, uma curiosidade velada para descobrir quem tocava, ou quem ligara o som dentro da casa que nunca mais conseguiu ser alugada. Fracas tentativas de busca e insossas perguntas foram feitas e calaram rapidamente: sem combinarem nada os vizinhos aceitaram como vindas do céu, para onde subiram levadas pelo amor do pianista. Se descobrissem o encanto estouraria como bolha de sabão, ou então seria mesmo a alma de João Gustavo que buscava seu piano à transversal das tábuas de pau marfim. Também nunca comentaram, nem sequer deram a entender que ouviam um fraco suspiro de mulher.
Vana Comissoli
quinta-feira, 17 de outubro de 2013
A inglória busca da Felicidade (Fernando Bastos)
Há pelo menos três necessidades imprescindíveis para nossa existência: beber água, comer e dormir. Alguém conseguiria ser feliz apenas tendo essas necessidades satisfeitas? Talvez alguns eremitas e os sadhus do hinduísmo. No entanto, não creio que existam pessoas que consigam ser felizes somente com essas três necessidades básicas, se forem visitadas ao longo da vida por dores e doenças.
De forma que chegamos à primeira conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono e saúde. Se alguns conseguem isolar-se, a maioria necessita viver em grupo, pois o homem é um ser social. Assim, precisa de gente ao lado.
Segunda conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono, saúde e ter amigos por perto. Mas e a moradia? É certo que há pessoas felizes vivendo na rua, e tendo alguns amigos, mas creio que são raras. O ser humano precisa de uma casa, que o abrigue dos humores do tempo. Casa é um bem material, para consegui-la, você deve trabalhar, a não ser que seja criança, viva sob favor de alguém, ganhou herança ou na loteria.
Terceira conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono, saúde, ter amigos por perto e um trabalho que nos permita ter uma casa onde possamos nos abrigar. Parece que isso bastaria para o ser humano ser feliz. E claro, há os que garantem sê-lo, mas são poucos. A biologia moldou nossos cérebros para nos acasalarmos. O sexo é um fator essencial para a felicidade humana. É verdade que alguns vivem sem ele, mas para a maioria é difícil. E mesmo para religiosos que escolheram a vida celibatária, sabemos o quão penoso é se manterem castos.
Quarta conclusão: para nosso bem estar, precisamos de água, comida, noite de sono, saúde, ter amigos por perto, um trabalho que nos permita ter uma casa onde possamos nos abrigar e sexo. Talvez o que foi exposto acima, mais o acréscimo de alguns prazeres fundamentais, como acesso ao conhecimento e algumas diversões bastaria para sermos felizes. Matérias em revistas e jornais mostram a existência de milhares de solteiros que vivem sozinhos e estão de bem com a vida. O problema é que o ser humano, diante do dilema “liberdade ou segurança”, geralmente escolhe o segundo. Essa segurança ele acredita ser possível apenas ao lado de outra pessoa, que seja somente dele, que lhe faça juras de amor eterno e o honre com fidelidade. Então, casa. Mas casamento sem procriação não é natural, pelo menos para a maioria. Portanto, fazemos filhos.
Quinta conclusão. Para nosso bem estar, precisamos de água, alimento, noite de sono, saúde, ter amigos por perto, um trabalho que nos permita ter uma casa onde possamos nos abrigar, sexo, acesso ao conhecimento, um pouco de diversão, uma esposa ou marido e filhos. Mas esperem. O número de divórcios no Brasil em 2011 cresceu 45,6% em relação ao ano anterior. Para cada quatro casamentos, há um divórcio. Os especialistas garantem que teríamos mais dissoluções do contrato conjugal se não houvesse as complicações de uma separação. O que falta ainda? Muitos argumentarão que falta o mais importante, a crença em um ser sobrenatural, que nos conforte espiritualmente. E ele é Deus.
Sexta conclusão: para nosso bem estar completo, precisamos, além do que já foi dito, acreditar em Deus. Entretanto, será verdade que a crença em Deus faz as pessoas felizes? Alguns dirão que sim. Mas olhando bem de perto, notaremos sem dificuldade que mesmo as pessoas mais fervorosas têm suas chagas para soprar. Paradoxalmente, muitas vezes é a própria crença religiosa a causadora da infelicidade, como atestam muitos especialistas em mente humana. Se pesquisarmos a vida de grandes nomes da Igreja, veremos que muitos padeceram com fortes crises existenciais, e morreram infelizes, apesar da fé que diziam possuir. Agostinho de Hipona lutou desesperadamente a vida inteira contra as tentações da carne; na obra “Confissões” revela como fora na juventude, um rapaz com gosto pela vida devassa. Lutero, em seus delírios, vociferava contra Satã, que nunca o deixou em paz.
Afinal, o que pode nos fazer felizes? Parece claro que a felicidade absoluta não existe; nossa vida é permeada por estados mentais em que nos sentimos muito alegres ou muito tristes, com variações que dependem de como lidamos com as mensagens externas que recebemos. O que parece não haver dúvida é que toda inquietação tem uma origem. Vem de dentro da pessoa, de seu cérebro, seu próprio eu. Como disse Buda, são seus desejos (fabricados pela mente, pelo seu eu) que o inquietam, e trazem sofrimento.
Todo ser humano deseja, logo, sofremos. Devemos, portanto, para diminuir nosso sofrimento, e aumentar o tempo de bem estar, ter equilíbrio e inteligência para lidar com nossos desejos, não sendo reféns deles, mas usando-os a nosso favor. Uma regra simples, mas por ser simples, tão difícil de ser seguida.
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
A festa de Wilfred (Sônia Pillon)
Os portões do Parque Municipal de Eventos se abriram. Era a primeira noite da Schützenfest, a tão esperada festa de outubro de Jaraguá do Sul. Era o momento máximo em que os alvos e a tradição do tiro passa a atrair os visitantes. Integrantes dos clubes e sociedades de tiro que resgatam a cultura trazida pelos exímios guerreiros e caçadores germânicos estavam todos lá. Garbosos em seus trajes típicos, com o peito estufado de orgulho e emoção, eles desfilavam e acenavam para a plateia, segurando bandeiras. Eles ostestavam faixas e medalhas.
Alguns sorriam e respondiam os chamamentos dos parentes e amigos, outros se mantinham solenes. Majestades do tiro e da beleza, eles eram seguidos pela banda alemã.
No palco do pavilhão principal estavam as autoridades e aqueles que nos bastidores prepararam a solenidade, com cobertura da imprensa catarinense. Até um canal vindo especialmente da Alemanha apareceu para conferir o que aquela cidade, encravada em um vale no Sul do Brasil, era capaz de fazer. Eles faziam um documentário para mostrar o que os descendentes dos imigrantes, que há dois séculos atravessaram o oceano para criar o Novo Mundo, foram capazes de empreender.
Em meio à rainha e às princesas, o sorridente personagem “Wilfred” esbanjava simpatia, sempre segurando a arma que, ao contrário do que inicialmente se poderia imaginar, só buscava atirar em cheio na alegria, levando a concórdia e a confraternização durante os 11 dias da festividade.
Um documento pela autoridade máxima do município foi assinado e lido. Era de para as majestades e todos os demais presentes, decretando que a partir daquele momento, apenas a alegria, o o entretenimento e o entendimento deviam imperar.
Ao circular pelos pavilhões, Wilfred observava os atiradores dos estandes de tiro, de artesanato, os deliciosos pratos da culinária típica germânica, assim como os boxes de batata recheada, crepes, do tão procurado chope gelado...
Casais de todas as idades rodopiavam na pista de dança, enquanto outros pulavam e seguiam a coreografia comandada pela banda... Wilfred olhava tudo e mantinha o permanente sorriso enquanto percorria os pavilhões, sempre muito festejado pelos participantes. Ele prometeu para si mesmo que iria distribuir alegria durante todo o decorrer da Festa dos Atiradores de Jaraguá do Sul!
segunda-feira, 7 de outubro de 2013
Mar (Thiago Daniel)
Cobriu seus pés cheios de areia
A colcha
de três gerações
Pensou na infância
os tapas das ondas
nos quadris
o beijo
no primeiro namorado
o filho
do único marido
o cesto de roupas no ombro
o pássaro roubando peixe
a ruga nos olhos do filho
que aos sete pediu um irmão
do pai falecido
Um sorriso brotou da lágrima
E quando o céu encheu de flores
Fez-se mar
domingo, 6 de outubro de 2013
Noivado e casamento (Marcelo Lamas)
E o Roberval chegou de mansinho na minha mesa e me intimou:
- Agora só falta a tua parte!
Fiquei pensando em alguma pendência profissional que eu tivesse com ele. Não lembrei de nada e questionei:
- Desculpa, não tô lembrando. O que estou te devendo?
- Não! Não é que tu estejas devendo. Mas é o seguinte...já encomendei o jantar e as flores e despistei a Luzmarina.
- E tu precisas de mim pra quê?
- Ora, pra quê? Tu não é o escritor?
- E o que isso tem a ver?
- Vou pedir a Luzmarina em casamento hoje à noite e agora só falta tu ‘escrever’ o cartão.
- Como assim?
- Ué!? Vou te dar o cartão que comprei e ai tu escreve o pedido de noivado por mim.
- Como eu vou fazer isso?
- Bem, aí é contigo né? Tu és escritor, deves saber o que escrever.
Além de obituário, estatuto de time, carta para antecipar passaporte, eu tinha um certo histórico no segmento “amor”, pois fazia cartinhas pra uma namoradinha do colégio – mas a prima dela que fazia o papel de carteiro foi quem apaixonou-se – e também participei de uma tentativa frustrada de fazer uma guria voltar pra um amigo meu.
Como o Roberval era bem parceiro e eu torcia pelo casal, fiz o texto pro caboclo. Ele disse que apenas transcreveu e assinou. E o bolo já foi encomendado.
Noutra ocasião, a Gertrudes aprochegou-se:
- Oh! Lamas, tenho um convite pra te fazer...aceitas ser o comentarista do meu casamento?
- Claro que sim, respondi prontamente.
- Não queres pensar com calma e responder depois?
- Já tá confirmado!
Dei a resposta de bate-pronto por causa da consideração pela guria, que mesmo sendo de uma família religiosa, convidou a mim, um colega de trabalho, impossível recusar.
Somente na véspera do enlace, fui entender o porquê dela ter oferecido “um tempo pra pensar”. Ela entregou-me uma “apostila” com as minhas falas e de vez em quando eu passava a bola para o padre. No dia que aceitei o convite achei que seria apenas para ler um versículo.
Fiquei com a consciência pesada, pois embora eu tenha amigo padre, tenha jogado futebol no time dos seminaristas de Corupá e o hábito de preencher cadastro atestando ser católico, eu NUNCA me confessei e mesmo assim tava lá em cima do altar, no meio dos graduados.
Em contrapartida, eu li a Bíblia três vezes. Coisas da vida de escritor.
sexta-feira, 4 de outubro de 2013
Poema da vida (Elianete Vieira)
Poetisa, Iza me conquistou pela doçura. Com 74 anos, cheia de energia, preparou a festa de 80 anos do marido. Amiga virtual, descreveu os docinhos que fez ao me convidar para nos conhecermos.
Dia de comemorar a vida, a saúde, a família. Como é bom ver as pessoas chegando cada vez mais longe - semana passada, o tempo contou 5 anos da partida do meu pai a menos de 4 meses de completar 80 anos.
Me sentindo honrada com o convite, convidei o GPS para me acompanhar e lá fui eu desbravar as ruas desconhecidas de uma cidade vizinha.
No caminho, havia não uma pedra Drummond, mas um vale. Uma rua que desce íngreme e logo sobe mais íngreme ainda. Lá no final, um semáforo segurava os carros prestes a entrar na rodovia. No inicio da subida existe um semáforo que mede a velocidade máxima: 40 km/h.
Independente deste controle os carros nem saíam da 1a marcha. Motoristas sabidos mantinham distância de segurança uns dos outros. Subidona à vista.
Eu, parada, olhando o entorno, vi algumas senhoras bem arrumadas, com Bíblia na mão, caminhando juntas e conversando. Distraídas, atravessaram a rua sem perceber que estávamos em movimento lento parando dois metros depois.
Eu sai e logo parei. Continuei olhando pelo retrovisor. O carro que vinha atrás, havia deixado um espaço de um carro entre o meu e o dele, talvez imaginando que eu poderia dar uma "descidinha" porque foi isso o que ele fez ao iniciar o movimento.
O que ele não previu e uma das senhoras também não, foi que no exato momento da "descidinha", ela ainda estivesse passando por trás do carro.
Ela talvez não tenha sido motorista ou não seja tão ágil agora com seus belos cabelos prateados.
Eu, parada, aguardando o momento de andar 2-3 metros novamente, vi a senhora sumir atrás do carro. A "descidinha" do carro ao engatar a primeira, derrubou a vovó.
Imediatamente saíram do carro três homens que acudiram a senhora, levando-a nos braços para a segurança da calçada, enquanto o motorista procurava encostar e liberar o tráfego.
Até onde pude ver, a vovó conseguiu ficar em pé, já na calçada. Foi atendida prontamente e as amigas logo a rodearam.
Eu segui em paz, feliz em ver que o pequeno incidente não ficou sem atendimento.
Ah sim, e a festa? Foi maravilhosa.
Com o octogenário feliz cumprimentava a todos, no mundo dele, pois o Alzeimer lhe tira aos poucos a consciência presente, deixando apenas o passado na lembrança. O pastor a todos abençoou. A poetisa contou como eles se conheceram e citou momentos da vida deles em quase 50 anos de casamento.
Ela declamou um lindo poema de amor e confiança, dedicado ao seu príncipe e filha, emocionando os presentes. E assim, poetando a vida, ela comemorará seu aniversário em dezembro com o lançamento do livro que está no prelo.
Elianete Vieira