quarta-feira, 25 de maio de 2011

corrida (Vana Comissoli)

“sofro de meninice tardia
porque padeci de maturidade precoce.”
− André Luiz Aquino −




“Minha mãe acaba de sair correndo de casa. E como louca vai gritando que se atirará ao poço. Vejo minha mãe no fundo do poço”.
Tenho um ataque de riso, minha mãe, em seus cento e dois quilos bem distribuídos em peito e bunda, entalará na boca do poço.
É hoje poço seco, já meio decomposto nas bordas, tampa de podres tábuas nuas.
Houve tempo que este poço doava água fresca e límpida. Tão boa, tão boa que, por inúmeras vezes, minha mãe segurou-me pelos fundilhos na eminência de me jogar para dentro da escuridão vertical. Tinha certeza, haveria peixinhos horizontais nadando em suas profundezas desconhecidas.
As modernidades entraram na minha vida com tanta velocidade que não me deram tempo de questioná-las e nem de averiguar por onde me levariam. Assim veio a água encanada, fluorada e a mineral em suas botijas gordas e plásticas, com rótulos convidativos de saúde e alegria. Todas, muito bem mistificadas no cristal das ampulhetas.
Adeus talha bela desenhada pelo pincel esverdeado do limo. Lembrança do avô, ou bisavô. De um tio qualquer que, por desconhecido, jamais deixei de amar nas construções que fazia dele. Via a caneca de folha a catar a água do sossego no fundo do jarro cerâmico inebriado de lembranças e vidas que não foram a minha.
Adeus, moringa descansando na mesa de cabeceira, refrescando as noites ferventes de janeiro. De tetas boas e fartas, sempre grávidas de meu próprio parir entre tesões e retesões de descobertas, voltas e revoltas do meu crescer.
Adeus, quintal com poço nos fundos, presente desgraça da poluição. Carregado de coliformes fecais e outros bichos que, de brilho, não tem nada, carregam o escuro mórbido do poço. Sepultado estás sob terra, muitas vezes pisadas de tantos pesares, machucados que te demos de abandono e esquecimento. Transversal imagem do tempo escorregadio.
“Minha mãe acaba de sair correndo de casa. E como louca vai gritando que se atirará no poço. Vejo minha mãe no fundo do poço”.
O grito encomprida na estreiteza do pátio que restou no tempo. Apertado no meio de dezoito andares de pessoas e televisões de um lado e vinte e quatro de outro.
Tudo cheirando a suor, à dias mal vividos, cheios de beijos com pressa que correm e correm em direção a face alguma. Ladeira a baixo escorregam na sarjeta da enxurrada temporal.
Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Tamanho grito parece o apitar de um trem que passa tão rápido, tão rápido que mal consigo ver a mão de criança que abana da janela. Como também não tenho mais tempo para nada, ergo os ombros “que me importa, criança idiota, nem te conheço”. Transverso eu, agora, limitado pelos anos.
Vejo minha mãe no fundo do poço como vejo o abano da criança. A criança que realmente não conheço e que passou tão rápido, tão rápido que, quando a olho no espelho, vejo apenas o brilho oculto de seus olhos perdidos no meu abanar de ombros. Raízes primeiras do círculo que serei entre tempo e pó, pó e tempo.
Adeus, minha mãe, princesa de adorável cintura de conto de fadas embalando meu adormecer. Uma voz que não era um grito, mas um ninar lânguido e quente a afagar meus cabelos, raios suspensos do despertar a vir.
Adeus, cabelos que também foram esquecidos nas escovas da vida, fossem elas de cerdas naturais ou de nylon.Foi-se a vaidade de cuidá-los acreditando que de mim fariam um príncipe a conquistar outra princesinha tão linda quanto a do ontem. De pele lisa e grávida como talha e de peitos maduros como moringas.
Adeus, às calças curtas que expunham minhas pernas de franguinho. Finas e tortas, me obrigando a desbeiçar meias de tanto tentar cobri-las para não mostrar meu segredo de pernas genovalgas.
Adeus, pernas boas, transformadas em três pela modernidade que em mim tiniu.
Do três potente que eu gostava, mal pude ver o aceno de tão rápido, tão rápido que escapou. Resta dele, vestígio mal usado e peduncular, transformado em quarto elemento, onde a bengala é mais, muito mais urgente.
Minha mãe saiu de casa correndo, gritando como louca em busca do fundo do poço. O grito é comprido e fundo. Igual pedra atirada buscando eco demarcador de seu mergulho.
Minha mãe saiu gritando de casa e eu, de calças curtas, arranquei os cabelos e quebrei a talha, pisei na moringa e nunca vi minha mãe engordar porque meu pai a deixou descansando no fundo do poço, sepultada por terras onde tantas vezes brinquei de ser menino.
“Minha mãe acaba de sair correndo de casa. E, como louca, vai gritando que se atirará no poço. Vejo minha mãe no fundo do poço”. Vejo, vejo, vejo.
Vejo minha mãe no fundo do poço. Minha mãe saiu correndo de casa, como louca, gritando que se atiraria no poço. Vejo minha mãe no fundo do poço.
Minha mãe correndo.
Minha mãe gritando.
Minha mãe louca.
Minha mãe e o poço da infância.
Minha mãe no fundo.
No fundo, bem fundo de mim para nunca mais.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Acessão (Marcio Ochner)

Muita água corre,
logo ali, abaixo da ponte.
Rio que sorri em suas curvas,
a cessação da vida...
de Ph vazio e sujo...
Escória mortal...
Sedento por morte...
Então, cospe a penas secas...
Não, não da para obtê-la,
Há moléculas mortais,
Borra sorvida em água...
Sedenta por filtro humano,
Molecular sustento excremental,
Que desliza, move-se sobre a água...
Onde a visão novamente alcança...
um pouco mais de coisa mal feita,
correspondência navegante...
Que alivia somente o que o vento transporta,
Alimentando voantes ovíparas pretas,
de carniceiros bicos e fome mortal...
Da morte natural que flutua ao abrigo dela.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Greve

Responsabilidade.
São goteiras que pingam em livros que nenhuma criança tem vontade de ler.


Culpabilidade.
É uma menina que sonhava ensinar mas crescendo já não sabe mais o que ser.


Inteligência.
Negligência.
Gengivas tostadas ao sol.

domingo, 15 de maio de 2011

Seus Olhos (Vilson Rafael Riegel)

Chuva na janela.
Vidro vira vitral.
Seus olhos no lampejo
do raio
na janela.


Seus olhos
no espelho
vidrados
nos olhos meus
fitam também a chuva
no fundo,
no reflexo ,
no vitral.


No lampejo,
refletido
nos olhos seus.

quinta-feira, 12 de maio de 2011

Caixão pro Billy (Fernando Bastos)


Estávamos eu e um amigo conversando sobre gírias de nossa época, isto é, do século passado. Concluímos que a maioria das expressões, antigas ou atuais, não tem origem na região - foi importada de outras terras, de modo que os haoles que gostam de tirar uma palha de nosso jeito de falar, não sabem que muitas vezes nossas gírias vieram de outros lugares. É isso aí papudo.


A antológica Caixão pro Billy, usada quando algo deu errado é própria do manezinho de Florianópolis. É mole pro gaiteiro só podia ser dos gaúchos. Há no entanto, algumas gírias criadas aqui. Por exemplo, “não é vasel” – homenagem a antigo político jaraguaense - significa que algo não é fácil. Não achamos a origem de outra famosa de nossa época: “meu pau do Lelo”, que se referia a algo espantoso. Expressão sem nenhum teor de malícia ou que fizesse uma senhorinha de 80 anos ficar corada.


Por curiosidade, escrevi para meus contatos solicitando que me enviassem gírias conhecidas entre nós e, para meu espanto, saltaram em minha caixa de e-mail mais de 50 expressões “jaraguaenses”.


Eis algumas: Susse no musse - vamos ir - meu caneco! - fica frai, não descabelai – foi lá pra caixa prego - tomá no óschla – uh, seu corno! - é o demonho mesmo – vai caximbar formiga - eu dii (eu dei) - vai toda vida reto – pega asisquerda e depois asdireita – todo mundo xunto reunido – tem xente, uma veiz - capaiz! – meu bonje (forma sincopada de Meu Bom Jesus) – do tempo do Epa...


Quanto a minha conversa com o amigo em questão, uma dúvida nos corroeu. Até agora não sabermos se Billy e Lelo existiram. O que ficou foi que concordamos: caçoar do modo de um povo falar é não entender que cada região tem sua maneira peculiar de dizer as coisas, e sem dúvida, nosso Vale tem um rico e saboroso menu de expressões graças aos imigrantes que aqui desembarcaram e aos “estrangeiros” que fazem dessa terra um lugar especial de se viver.


Fernando Bastos, cartunista e escritor

terça-feira, 10 de maio de 2011

Sem Olhar Pra Trás (Sônia Pillon)

Durante muito tempo fui uma pessoa dócil e boazinha, daquelas que não conseguem dizer um “não”. Na escola, perdi a conta das vezes que abri mão do meu lanche para os colegas e segui com fome. Deixava de brincar no parque, quando criança, para não sujar as roupas, e de sair com as amigas para ir aos bailes da escola, na adolescência, para não preocupar meus pais.

Enquanto as meninas da minha idade se ocupavam com as roupas da moda e maquiagens, geralmente ficava em casa. Quando não estava estudando, me refugiava na literatura, que me permitia viajar pelos lugares mais distantes e viver as mais loucas aventuras.

Conheci Leônidas, o meu primeiro namorado, quando tinha 18 anos. Eu era tímida e insegura como uma Gata Borralheira, e ele, exatamento o contrário! Me acostumei que ele decidisse sobre minhas roupas, os filmes que assistíamos, os amigos e os lugares que visitávamos. Apaixonada, aceitava suas imposições sem protestar, com medo de perdê-lo.

Depois que me formei em Pedagogia na Unerj, comecei a trabalhar com educação infantil. Queria atuar também no ensino médio, mas Leônidas me fez desistir da idéia. Nos casamos seis meses depois da formatura, e a partir daí conheci o inferno! As crises de ciúme de Leônidas, que antes me envaideciam, por considerar uma prova de amor, passaram a me sufocar. - Por que você se atrasou hoje, Catarina? Quem era aquele cara com quem você estava falando na saída da escola? Inútil negar que tinha um amante!

Ele passou a me bater. Foi nessa época que os meus sorrisos desapareceram dos lábios. As surras que eu sofria deixavam marcas profundas no rosto, no pescoço e no corpo, mas atingiram principalmente a minha alma, durante 10 longos e intermináveis anos!...

Uma manhã acordei de um pesadelo terrível: Leônidas tinha me matado com sete tiros, e eu estava estendida no chão, em meio a uma enorme poça de sangue. Suando frio e aos prantos, naquele momento decidi que cometeria um crime perfeito. “Quem tem de morrer é ele!”, pensei. Comecei a planejar a forma de matá-lo. Ele era cardíaco e hipertenso, e nunca ligou para dieta. Estava vinte quilos acima de seu peso e relaxava nos horários de tomar o remédio. Era sempre eu que o alcançava os comprimidos!...

A noite chegou e me esmerei no jantar. Preparei leitão assado, salsichão, e salada de maionese, que ele adorava! Ele comeu até se fartar, sem ligar para o excesso de calorias que estava ingerindo.

Como previ, de repente ele começou a ficar vermelho, com falta de ar, e a reclamar de forte dor no peito. Ele me fazia sinal para que alcançasse o remédio, mas eu não movi nenhum músculo sequer! Com os olhos arregalados, ele continuou com as mãos estendidas, agora com um olhar de quem tinha entendido tudo, estrebuchando até cair morto.

Ao constatar que tinha me livrado dele, gritei e toda a vizinhança me acudiu. Eu soluçava, me jogava no chão e me abraçava ao seu corpo, aparentando desespero. “Coitada!”, diziam. “Ela adorava aquele desgraçado, apesar de tudo!”, pensavam.

Três meses se passaram. Já estava na hora da segunda parte do plano. A própria família de Leônidas me aconselhou a viajar para um retiro, para me curar da "depressão"!... Cheguei em casa e preparei as minhas malas, apressadamente. Lembrei que na Suíça, agora, é inverno. Retirei cuidadosamente o quadro de Di Cavancanti, acionei o segredo do cofre, peguei os dólares e fui embora para sempre, sem olhar para trás!...

Sônia Pillon

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Caminhar II (Tiago Nascimento)



Caminhar.
Nada mais faz o homem do que isso.
O que acontece entre um passo e outro são detalhes, não importam.
Viver é caminhar.
Viver é se mover.

Por vezes lento por vezes lépido.
Às vezes com medo em outras vezes intrépido.
Por vezes em silêncio, em outras com estrépito.

Caminhar. Caminhar.
Se movimentar de lá pra cá, de cá a acolá.
Andar. Andar. Andar.
Viver é nunca parar.
Morrer é nunca mais andar.

Por isso levante-se, vá!
Caminhe.
"Caminhando o caminho se faz"...

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Inversamente proporcional (Fred Paiva)

Andava por aí,
meio mulher, meio retângulo,
despreocupada,
parassimpática...
lambendo seu sorvete espiral,
enrijecendo meio mundo
sem nem perceber
um tico da intenção
pingada do todo
antônimo a si,
assintótica aos picos...

(Fred Paiva)

terça-feira, 3 de maio de 2011

Quase um santo (Inacio Carreira)

O Zé ficou triste quando ouviu a notícia. Morrera um grande homem.

- Poxa, disse consternado para o Jão, o vice morreu.

- Pena que não foi o titular, retrucou o outro, puteado.

- Diz isto não, cara... Quantas vezes o Zé lutou contra a morte e venceu? É um herói. Até que a marvada levou ele, que aqui ninguém fica mermo.

- Venceu porque tinha grana. Lembra da dona Zica, da vendica? Foi de primera, não teve escolha. E a Lindinha, do Tonhão? Ficou mesmo foi na fila de espera. Agora, esses bacana, vão em tudo que é médico do mundo, são mais bem tratado que cavalo de corrida... Acha que eu vou ficá triste? Foi tarde... O que ele fez enquanto tava lá? Reclamou dos juros alto, que interessava pra ele, como gente grande dos panos...

- Fala assim, não... Sofreu tanto...

- E o povão, sofre não? Esse aí se juntou ao barbudo “dos trabalhador” pra usar o poder e ganhar mais. Que nem aquela mulherzinha da fábrica de sabão, como é mesmo? A suplício...

- Suplicí... aquela que mandava os ôtro gozá... Bem relaxada, ela...

- Sim, relaxados são eles todo, e a gente ainda sustenta essa máquina de fazê corrupto.

- Mas ele foi perseguido, como todo mundo que se destaca na vida. Lembra aquela uma que diz que é filha dele?

- ... e que ele foi no programa do gordo pra dizer que era filha da puta? Bem sacana ele... Foi ganhá a simpatia do povo dizendo que ia em putero que nem todo mundo... Todo mundo não, que eu nunca fui dado a essas coisa, ficava mesmo no cinco contra um enquanto não arrumei a Zefa pra trepá... Deus mandou cresce e multiplicá, não ficá indo em putero dá dinheiro pra vagabunda...

- Olha o preconceito, cara, isso dá cadeia. Puta agora é profissão.

- Sim, hoje tudo dá cadeia, menos metê a mão no bolso do cara honesto. Vê o salário mínimo? Eles brigam pra aumentar cinco real mas o deles não tem limite. E ainda ganha até telefone de graça, de graça não, nós paga...

- Quanta revolta, cara, fala assim não. É verdade, mas não precisa falá. Resolve?

- E aí vem a televisão e mostra o povo chorando porque um ricaço morreu. Tu já ouviu falá de uma tal de revolução da francesa? Aquela, quando eles derrubaram um negócio lá na França. Negócio de bartira, pastilha, bastilha, acho que é isso...

- Ouvi não, fugi da escola...

- Eu também fugi, quer dizer, nem fui. Modo de dizê, só... Mas escutei uns velho falando... Passaram o facão em tudo que era ricaço. Não que a gente devesse fazê isso aqui, não, que sou contra violência, mas e a violência que fazem com a gente? Esse negócio de doença, cara...

- É, nisso concordo contigo, continua a lei do “sabe com que tá falano”... do “quem pode mais chora menos”, do “salve-se quem puder”... A lei da selva.

- Tu tá vendo muita novela, cara... Papo estranho, esse teu.

- Novela nada. Eu tenho tempo pra isso? Vez em quando vejo o jornal, ou o futebol na TV do barzinho da esquina, ou em alguma loja no centro. Mas em casa... Quando não está estragada a gurizada só quer saber de ver aqueles programa de perseguir bandido, parece a suáti... Mas a gente sabe que é tudo encenação, teatro, não é assim que diz?

- E enquanto isto o povão otário chora a morte do ricaço. Comeu do bom e do melhor, correu o mundo todo, foi tratado como otoridade na vida e na morte, e eu vou ficá com pena? Quem tem pena é galinha, sô... Do jeito que a coisa tá, só falta agora fazê feriado, ou dia santo, pra homenageá o home...

- Talvez fosse bão, sim... Nós temo o Padim Ciço, mas é só no norte... E essa madre, mas é no sul. Tinha que tê um santo de todos os brasilero, que nem a Cidinha, mas essa é maior...

- Santo brasileiro? Só se for protetor das casa de luz vermelha... O santo das putas. Que nem aquele bandido, também da luz vermelha, quase um herói. Tem até filme. Vítima da sociedade, como eles diz.

- Credo em cruz! Arreda...

Inacio Carreira