quarta-feira, 26 de junho de 2013

Duplicidades (Inacio Carreira)

Na aula de História o tema, por incrível que pareça, foi Gêmeos. Numa parceria com Biologia, Geografia e Língua Portuguesa, numa tal de transdisciplinaridade, o professor de História, que teve a ideia, falou sobre Castor e Pollux, irmãos gêmeos da mitologia greco-romana, filhos de Leda com Tíndaro e Zeus, respectivamente, irmãos de Helena de Tróia e Clitemnestra, e meios-irmãos de Timandra, Febe, Héracles e Filónoe. No mito, os gêmeos partilham a mesma mãe, porém têm pais diferentes – o que significa que Pólux, por ser filho de Zeus, era imortal, enquanto Castor, não. Com a morte do irmão, Pólux pede ao pai que deixasse seu irmão partilhar da mesma imortalidade: teriam sido transformados na constelação de Gêmeos e são tidos como padroeiros dos navegantes, a quem aparecem na forma do Fogo de Santelmo. Esse fogo-de-santelmo é, na realidade, uma descarga eletroluminescente provocada pela ionização do ar num forte campo elétrico provocado pelas descargas elétricas. Entendeu? Eu não, ainda...


Já Rômulo e Remo, na mitologia romana, também são irmãos gêmeos: Rômulo fundou a cidade de Roma e foi seu primeiro rei. Conta a lenda que Rômulo e Remo eram filhos do deus grego Marte e da mortal Rhea Silvia, filha de Numitor, rei de Alba Longa. Reza a lenda que Amúlio, irmão de Numitor, após golpe de estado, apoderou-se da coroa e fez Numitor prisioneiro. Rhea foi confinada à castidade, para que Numitor não viesse a ter descendência. Entretanto, Marte desposou Rhea Silvia, que deu a luz a Rômulo e Remo. Ao saber do nascimento das crianças, Amúlio jogou-as no rio Tibre: a correnteza os arremessou à margem e foram encontrados por uma loba (prostituta?), que os teria amamentado e cuidado até que foram achados pelo pastor Fáustulo, que junto com sua esposa os criou. Na Itália, as prostitutas são chamadas de Lobas, daí o nome de lupanar ao prostíbulo, o que muda um pouquinho a história acima.


E Cosme e Damião? Alguns relatos atestam que eram originários da Arábia, de pais cristãos. Seus nomes verdadeiros seriam Acta e Passio. Eles foram martirizados na Síria, sendo desconhecida a forma como morreram. Perseguidos por Diocleciano, foram trucidados e fiéis transportaram seus corpos para Roma. Das várias versões, uma explica que eram irmãos, bons e caridosos, que realizavam milagres. Outros relatos afirmam que foram amarrados e jogados em um despenhadeiro sob a acusação de feitiçaria e inimigos dos deuses romanos. Em outro, na primeira tentativa de morte foram afogados, mas salvos por anjos. Na segunda, foram queimados, mas o fogo não lhes causou dano algum. Apedrejados na terceira vez, as pedras voltaram para trás, sem atingi-los. Por fim, foram degolados e morreram. Depois de mortos, apareceram materializados ajudando crianças que sofriam violências. A partir do século V, os milagres de cura atribuídos aos gêmeos fizeram com que passassem a ser considerados médicos, pois, quando em vida, exerciam a Medicina na Síria, em Egeia e Ásia Menor. Mais tarde, foram escolhidos patronos dos cirurgiões. Muito esforço foi despendido para mostrar que Cosme e Damião não existiram de fato, que é apenas a versão cristã dos filhos gêmeos de Zeus, pagão.


Alguém lembrou do filme Gêmeos, Mórbida Semelhança, que tinha assistido em casa, e pediu para a professora de Artes entrar no circuito da transdisciplinaridade. Ela disse que não, que esse filme é muito forte para nossa idade. Curioso, juntei-me a um grupelho e assistimos ao mesmo em minha casa. Dirigido por David Cronenberg, “explora os mais estranhos medos, entre os cantos mais inquietantes da psicologia humana e da sexualidade”, diz a sinopse. Mais ainda, informa que é a história de gêmeos, médicos e ginecologistas, que são tão próximos que “suas identidades parecem interligadas em uma espécie de ´consciência conjunta`. Eles se aproveitam da aparência idêntica para trocar de lugar um com o outro à vontade, seja em aparições públicas, na realização de cirurgias e, até mesmo, compartilhando as mulheres que se envolvem com um deles. Quando um se apaixona por uma estrela de cinema, Claire, o elo íntimo é rompido, as coisas começam a dar errado. “O filme é um estudo sobre o pesadelo da dependência psicológica, das obrigações entre as pessoas saudáveis (simbolizado pelo sonho horrível em que um se imagina unido ao outro por um cordão umbilical de carne, que Claire tenta morder)”. Embora inusitada, o filme é baseado em fatos reais, quando os gêmeos e também ginecologistas de 45 anos, Stewart e Marcus, foram encontrados mortos em seu apartamento, em 1975 (o filme é de 1988). À época das mortes, os médicos se tornaram viciados em barbitúricos.


Vivos, alegres e comunicativos deveriam ser todos os gêmeos, desde os verdadeiros (pois já nascem acompanhados, não devem nunca sentir solidão) até os do signo. Entretanto, as histórias são trágicas, falando de terror, morte, desolação. O que eu faria se este fosse o meu signo? Gêmeo não sou, sei de cor, embora tenha uma pesquisa no Google que informa de estudos realizados com gêmeos separados ao nascer e criados em lugares diferentes, para ver se o DNA ou a criação, o ambiente, influenciam na pessoa. Deu 10 a zero para o DNA, deixou todo mundo intrigado.


Acho que os professores vão ter muito trabalho conosco. Depois de toda esta pesquisa não vai ter pra ninguém. Vamos subir ao firmamento, descer os despenhadeiros, degolar, criar cidades. Em sala de aula ou em algum jogo das redes sociais, onde podemos viver novamente.


Viver novamente?

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Um choque de realidade (Patrícia Grah)



Um dia desses, sai à trabalho um tanto apressada rumo ao banco. Para percorrer este trajeto sempre passo pela escola onde estudei quando criança, desde a pré escola. Neste dia, em especial, fui impedida de passar pelas crianças que atravessavam a rua, todas enfileiradas e de mãos dadas, exatamente como era feito no meu tempo.

Lembro como se fosse ontem, dos carros parados, alguns angustiados por prosseguir, outros olhando e sorrindo, achando "bonitinho". Esqueci minha pressa e por alguns minutos voltei no tempo. Sorri.

Comecei a refletir sobre a enorme simultaneidade relacionando aquelas crianças à mim, quando, naquele tempo, o país encontrava-se sob um momento histórico: o Impeachment do presidente Collor. Lembro que a professora deu uma aula explicando o que isto significava, afinal ouvíamos falar disso na TV mas não conseguíamos compreender ao certo o que significava. Eu entendi, mas nem me importei. Não poderia fazer nada! Eu não entendia nada! Eu era somente a criança que precisava de direcionamento até pra atravessar a rua! Os adultos é quem deveriam se importar com isto! Meu futuro estava nas mãos deles.

Agora, novamente nosso país encontra-se em um momento delicado e de muitas transformações, boas, por sinal!

Mas e eu? Mas e eu?

Pois é...

Pois é.

O tempo passou e tudo mudou. Não posso não mais me importar.


Agora sou eu a motorista do carro.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Aulas de Culinária: Ah!... Família... (Vana Comissoli)

     casa


       A casa ficava a sombranceiro do morro. De longe, ao subir a lomba, já se avistava suas aconchegantes formas brancas: o arco da varanda,  as duas janelas alegres, sempre abertas para as hortências, que no verão coloriam tudo de azul alilasado. A porta das visitas também era oval e a campainha estrilava num som de sino,  agudo e divertido. De perto, seu reboco, lembrando glacê de bolo,  despertava desejo de criança: dedo roubando porção para lamber.


         Havia um estreito corredor ao lado da casa por onde se chegava à entrada íntima. Sua pequena área estava invadida pela pitangueira carregada de frutos vermelhos e cheirosos. Impossivel  passar sem roubar uma folha e masserá-la até que sua seiva enchesse a mão de perfume intenso, obrigando a gente a cheirar as pontas dos dedos até  terminar o alento. Era desta porta que eu mais gostava. Meu passaporte de importância, de aconchego, eu  fazia parte da família, nem me importava de não retinir  campanhia.


         A casa pertencia aos meus tios, onde costumava passar as férias. Construída num bairro distante e pouco habitado, chegar lá dava sensação de viagem a outra cidade. Balançava em dois ônibus para vencer a distância de chegar. O bastante para sentir-me em outro país.


         Saía do apartamento silencioso de filha única e penetrava na ruidosa vivência com meus quatro primos: duas meninas e dois meninos. Todos mais velhos do que eu, mas não tanto que me fizesse sentir ameaçada.


         Em casa, empregada arrumando meu café, almoço pronto quando chegava da escola; roupa passada e cama feita na hora de dormir. Lá, no lar de verão, lavando a louça com as meninas, aprendendo incipiências de culinária, varrendo o chão e tirando o  pó. Dias pares na limpeza, com a prima Ana; dias ímpares, com  Suzana no preparo das refeições . De noite sempre sopa, e, às sete em ponto, que o tio era severo e chegava cansado do trabalho. Só mais tarde vim a compreender que era também machista e autoritário. Na época o víamos apenas o pai.


         Dezembro se aproxima. Os exames do fim de ano exigem muita atenção, se passar em todas as matéria (agora são muitas, pois estou com quinze anos e adiantada na escola) irei gozar as férias na casa da tia Zuleica. Termino tudo muito bem.


         Lá me vou, maleta em punho, sacolejando no ônibus amigo. O ponto de descida é um pouco além da casa, por isso, da janelinha, vejo meus primos em festivos abanos de boas-vindas.


         Beijos, risos, tudo a que tenho direito, me recebe. Meu coração pula de alegria. Alguém me toma a bagagem das mãos e vamos entrando pela porta do lado, mão esticada para arrancar a folha de pitanga. A cachorra vem latindo e abanando o rabo,faço um carinho rápido no pelo hirsuto. Vontade de entrar logo na ampla cozinha, a maior peça da casa, onde a família se reúne para comer, brigar e fazer planos. Onde  passarei a maior parte do meu tempo nos próximos dois meses.


         Ah, que bom ver de novo os dois fogões: um a lenha, onde a chaleira nunca esfria e outro a gás, para modernizar as lides. A grande geladeira branca, com seu logotipo GE,  bonito nas letras douradas. O paneleiro e suas panelas de espelho, orgulho da prima Suzana. Nos armários de aço, pintados de branco, guardam-se as louças com suas pinturas de rosas e junquilhos. As prateleiras laderais, de flancos arredondados,  suportam, com orgulho os objetos preciosos: chaleira antiga, peças de porcelana desparceiradas e o maravilhoso bule de chá inglês, todo azul com figuras brancas: cenas de caça.


         Na mesa redonda, onde sentamos espaçados, largo minha bolsa novinha. Vontade danada de distribuir os presentes: lenço de cambraia com um Z bordado à mão para a tia, brincos dourados para Ana e prateados para Suzana; par de meias azuis para Humberto e marrons para Roberto. O tio não precisa.


         Meu primo Roberto é o mais velho, sorriso mestiço, movimentos calmos, voz que se ouve em raro. Meio burro, não conseguiu terminar os estudos, por isso dedicou todos os cuidados ao corpo que  desenvolveu pendurado na barra do quintal.A pele foi amorenada no trato do jardim e num sangue índio perdido nos ancestrais, -até negro tem na família- informava a avó no desacerto de seus  olhos azuis  de origem francesa.


         Humberto puxou a mãe: uma barata meio descascada, cabelo sem cor, ou cor de areia, se um elogio fôsse necessário. Humor fácil, riso solto, um nome feio sempre na ponta da língua. Namorador e apaixonado. Cada festa um porre e uma declaração de amor para quem estivesse mais próximo.


         Ana, a mais velha das irmãs, retrato escarrado do primogênito, até no comportamento resguardado. Contrário de Suzana, a caçula, rabo quente, mentirosa e matreira. O problema da família, com sua predileção por namoros nos cantos escuros e dança de rosto colado. Rindo de sacudir toda ao enganar o avô cego e conseguir uns trocos para comprar um cigarro que seria fumado escondido, atrás das laranjeiras carregadas.


         Todos de férias. Tempo de sobra para traquinagens. Nós, meninas, na obrigação do levantar cedo, sempre prontas para uma brincadeira sacana com os rapazes que dormiam até mais tarde. Eles, correndo atrás, em vinganças de cócegas, ou de nos pegar desprevenidas estourando  ovo nos nossos cabelos sedosos.


         A manhã nasce ensolarada. Preparamos os paus de fósforos queimados até o limite, ainda com a brasa viva. Eu serei a agente do dia.


         Entro no quarto dos primos. Roberto dorme na cama mais próxima, será a vítima. O lençol mais descobre do que esconde o corpo, só de cuecas devido ao calor. O pé está  na posição correta, virado para cima, dedos na espera do mosquitinho ardido. Com todo cuidado implanto o fósforo em brasa. Meus olhos escorregam pelas pernas de músculos proeminentes, tão diferentes das minhas e um segredo dentro da pequena peça do vestuário, não sei porquê, se avoluma em minha direção. Saio rápida. As meninas me esperam no corredor, em risos seguros pelas mãos em concha sobre a boca. Meu coração está assanhado dentro do peito. Será medo que o primo me pegue na ação diariamente esperada?


         Um grito, um - merda, guria sacana ─ nos põe a correr. Logo o vulto,  com calções ao meio das pernas vai crescendo sobre nós.


─Cada uma para um lado.


  Corro o mais que posso procurando o abrigo seguro das laranjeiras. Uma mão me pega pela saia e me puxa, dois braços de ferro me levantam do chão e eu grito um socorro cheio de risos. Demoro a sentir a terra sob os pés, o abraço parece-me que afroxou, mas, porque não me larga? Enfim posso fugir. Olho sobre o ombro verificando a solidez da distância. Roberto não me segue. Está parado me olhando.


         Os dois rapazes sentam-se à mesa, Humberto bate no tampo e com voz de tio exige:


─ Café, suas lerdas, minhocas de aquário, antas velhas.


         Prestativas colocamos as xícaras servidas e fumegantes ao máximo, já bem açucaradas com sal. A vingança, bem sabemos, será cruel.


         Hoje é terça-feira.


         Suzana abre a GE. Tira um tatu de bom tamanho, linguiça, ovos, tempero verde, cebolas e muitos tomates. Eu observo.


         ─ Corta esta cebola, bem miúda, Angela, enquanto ponho a panela de ferro para esquentar.


         Obedeço. Na cozinha é o que me resta.


         Minha prima faz um furo na carne com uma faca pontuda e comprida. Penso nas notícias de morte que, às vezes, ouço meu pai comentar enquanto lê o jornal. O ovo ferve em cima do fogão à lenha e a panela, se esquenta na boca de gás. A linguiça é introduzida na carne. Olho fascinada. A carne é vermelha e Suzana a segura com firmeza, enche-lhe a mão. O recheio da linguiça, carne guisada, estica a pele que o contém, entra sem medo no túnel escuro que aguarda.


         ─ O que foi, guria, está de mandrake? Pega os tomates e pica bem picado, mas antes escalda para tirar a casca.


         Obedeço, sem deixar de olhar a linguiça entrando no tatu e depois um ovo duro e mais outro.


         O cheiro da banha quente satura o ar. Alho amassado e derramado sobre ela, uma fumaceira sobe da panela. A cebola que vai a seguir, perfuma tudo.


                     Suzana fecha o buraco da carne com o pedaço que tirou dela e prende tudo através de palitos.


         Sinto um movimento nas minhas costas quando me viro recebo em cheio, na cara, um punhado de farinha de trigo e um copo d’água. Roberto ri, tanto que precisa se agarrar nos meus ombros para não cair e encosta a cabeça na minha enquanto esperneio e dou socos flácidos no seu peito.


         Preciso de um banho, trocar as roupas. Suzana continua sozinha o trabalho. Liga o rádio no máximo e, do banheiro que divide parede com a cozinha, acompanho pelo cheiro, a carne ser posta na panela e ir dourando. O aroma se aprimora na lentidão do fogo. Os tempêros caem um a um e percebo o alecrim, a pimenta do reino, pouquinho de orégano. Afinal dimunem de intensidade quando a tampa recolhe todos eles. O sal não senti, que perfume não tem nenhum.


         Volto a tempo de ver o molho italiano ao suggo ser preparado.Muita cebola frita, alho de companheiro. O tomate, que piquei, avermelha sobre tudo, chiando no calor. Depois a folha de louro, a pimenta do reino, o sal; em seguida uma prova na palma da mão . Suzana faz um volteio, sacode o corpo ao rítmo do samba-canção que canta a saudade do amor longíncuo. A mexida da colher-de-pau na grande panela cheia de água , sal e um tanto de azeite, medido no olho, acompanha o começo do Roberto Carlos falando em botões da blusa se abrindo. A moça-cozinheira abre a própria roupa e eu fico hipnotizada, olhando. Em vez de seios em soutiens, enxergo pernas e volumes em cuecas.


         O molho ferve, a carne dourada  cozinha no próprio suco e o macarrão entra duro, se amolecendo aos poucos na água fervente. Espaghetti.


         Almoçamos com voracidade. Tia Zuleica foi ao médico, o tio, como todo dia, voltará apenas à noite. Temos festa, coca-cola e malícia. Humberto senta-se ao meu lado e fala da namorada Telma, uma gata para ninguém por defeito, uma paixão de arromba - definitiva. Ana sacode a cabeça em desaprovação e gira no dedo o anel de promessa que o namorado, quase noivo, lhe deu. Suzana come e mais nada. Pensa apenas na ambrosia amarela e doce esperando na geladeira. Roberto, na minha frente, olha o macarrão se enrolando no garfo, o molho vermelho que pinga e crava os dentes com força na carne macia. De espaço em espaço, espia por cima do garfo, bem na hora que o espio também e baixamos rápido a cabeça. A comida cai como uma pedra no meu estômago.


         O Natal se aproxima, a família toda virá festejar aqui. Dias antes estamos no preparo da cera esticada no chão, a árvore de puro brilho e lâmpadas montada na sala, a cozinha cheirando a calda, ovo, passas de frutas e pães crescendo no forno.


         Sempre ajudei meu primo mais velho a arrumar o pinheiro que quase alcança o teto. Quantas vezes ele me levantou no colo para que eu pudesse colocar a estrela-guia no galho mestre? Estou muito pesada, mesmo assim ele tenta me erguer, meu corpo tem que colar-se ao dele. Estendo os braços  em direção à árvore enquanto sua mãos me pegam pela cintura:


         ─ Ligeiro, prima, que não te aguento.


         ─ Mais um pouco, mais um pouco. Ah!


         Caímos os dois. A cadeira aonde subimos desaba junto. Rolamos no tapete e eu o abraço, nossas bocas se buscam numa ânsia que cresceu dia a dia. Sinto seu peito chato apertando meus seios incipientes e seu sexo pressionando o meu. Ele é tão grande, tão quente. Me liberto, saio correndo para o banheiro. Choro de frustração, desejo intenso e impossibilidade.


         Os dias que faltam para a grande festa passam normais: nenhuma palavra estranha é trocada, nenhum comentário incômodo é feito. O silêncio é muito mais rico que o falar. As brincadeiras de cócegas se tornam longas, as vinganças terriveis, abraços  poderosos e os mosquitinhos da manhã são colocados com técnica mais aprimorada, exigindo uma demora na consecução do feito.


         Roberto deitado, olhos acesos, espera a chegada da terrivel agressão ígnea. As mãos ásperas seguram a prima traidora e fazem revanche passeando pelos ombros, audaciosamente, indo aos seios. arrepiando os mamilos. Sem poder escapar Ângela se estica na cama e permite. Faz parte da guerra: atacar e ser atacado.


         A festa enche a casa de tios, avós, primos, primas. Hoje é Natal, todo mundo pode beber um pouco mais. Isto dá chance que, os que estão de mal, por motivos justos ou não, se abracem e confessem um bem-querer imorredouro. Lá está Humberto, o campeoníssimo do perdão de Natal, pendurado no tio, ouço sua voz tropeçando nas consoantes:


         ─ Eu prometo, pai, volto a estudar, tu sabes como te amo, mas não sou teu filho predileto, gostas mais do burro do Roberto. Vai ver, por isso preciso rodar, aquela história de chamar atenção.


         ─  Filho, besteira, eu que te amo. Tu vais fazer o melhor, tu és o melhor.


         As lágrimas se misturam, trocam de cara e saem os dois abraçados a tomar a fresca da noite enquanto a turma jovem canta a plenos pulmões:


         ­ Noite feliz, noite feliz.


         O Senhor, Deus de amor...


         Vejo Alceu, o quase-noivo de Ana, puxá-la para a varanda.


         ─ Ana, meu bem, eu te amo.


         ─  Eu também te amo, Alceu.


         ─ Morzinho, a gente vai casar. Já compramos fogão e geladeira.


         ─ Que bom!


         Alceu abraça a quase-noiva, sua mão anda nas costas, no pescoço. Enquanto seus lábios calam sua boca, a mão toca a ponta do seio por sobre a blusa.


         O pensamento de Ana corre também, atrapalhado:


         ─ Alceu é meu quase noivo, a gente vai casar, ele disse. Nos amamos... No seio, só no seio pode; ou não pode?


         Suzana levanta-se do sofá, larga na mesinha de centro o cálice com um resto de vinho branco, demora para se aprumar, parece que o corpo está muito pesado. Retoma a caminhada rumo ao corredor, erra a porta, bate com o ombro no batente. Pára e enfim desaparece.


         ─ Puta que pariu, estou bêbada. Preciso chegar no banheiro, está me dando uma ânsia, ai, que vem tudo para fora. Anselmo, desgraçado, filho de uma égua, não vieste e comprei abotoadura cara de presente. Eu arrumo logo outro, idiota, brocha, fresco. Cadê o banheiro? Mudou de lugar, merda?


         Eu continuo cantando, mas não deixo de ver quando Roberto sai da sala. Sinto sede, tenho urgência de beber um refrigerante, a champanhe me deixou tonta. Fumei um cigarro que me deu uma bobeira na cabeça.


         Ao chegar na cozinha encontro meu primo. Não tem ninguém no fundo da casa, ele me abraça:


         ─ Ainda não te dei feliz Natal, prima. Desculpa o esquecimento.


         ─ Foi nada.


         Ele me beija na boca e fico mole, devagarinho vamos indo para a churrasqueira, às escuras na falta de utilidade nesta noite. Roberto se deita no sofá e me puxa sobre ele, suas mãos procuram lugares que quero entregar. Sua voz, distante como as estrelas, soa lambendo o meu ouvido:


         ─ Nunca faça isso com mais ninguém. Não vão cuidar de ti. Só eu vou cuidar, só eu...


         Não quiz ficar na casa da tia Zuleica até a chegada de março. Minhas amigas estavam me procurando, disse minha mãe. Depois cresci, nunca mais passei férias lá, mas não perdi  a amizade pelo meu primo Roberto, nós crescemos juntos, difícil esquecer, mesmo depois de casada.


         A esse tempo devo o fato de ser excelente cozinheira, meu marido que o diga!


 


                                                                                Vana Comissoli


 


                     

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Acróstico Paterno II (Tiago Nascimento)

manu

meu coração te aguarda
a imaginar-te tão linda
no afã das horas que passam
o teu sorriso me anima
e apesar de não vê-lo
lo presiento por El cielo azul.
así me queda certeza, será mono, muy rico, Manu.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Diário de um menino católico (Fernando Bastos)

Sexta-feira da Paixão, 30 de março de 1956

Perto do meio-dia fui confessar-me; sabia que não teria muita gente na igreja àquela hora. Dito e feito. Quase não pego o padre Dionísio, que já se retirava para a sacristia.


Chamei-o. Ele se virou: Que a paz de Nosso Senhor esteja contigo, Afonso; o que deseja? Vim me confessar, padre. Bom, disse ele estreitando os olhos, eu ia almoçar, não pode ser depois das duas? O que tenho pra falar é muito grave, disse acabrunhado, olhando para o piso de mármore e as unhas empretejadas de meus pés. Daí, ele concordou, entrou no confessionário, e esperou. Daí eu falei aquelas palavras que aprendi na catequese: "Padre, dai-me a vossa bênção, porque pequei". Como já havia aprendido, tinha que começar pelos pecados mais graves, aqueles chamados mortais, mas eu só tinha um pecado, e era grave e mortal, e não sei como tive coragem, mas tive.


Padre, esse pecado me atormenta há meses, mas juro por Deus, eu, quando comecei, não sabia, não sabia que o que eu fazia era mal aos olhos do Senhor. Você está enrolando, Afonso, não precisa ter medo, conte tudo de uma vez. Daí eu contei tudo de uma vez: Tudo começou há uns quatro anos atrás, quando eu tinha 7 anos, quase oito. Foi quando meu pai trouxe pra casa aquele quadro de Nossa Senhora pisando descalça sobre a cabeça da cobra. Era Satanás, ele corrigiu. Eu sei padre, aprendi ano passado na catequese. Ele pregou um prego na parede, e o pendurou. Daí ele saiu pra trabalhar. Daí, quando ele saiu, fiquei por uma meia hora admirando aquele quadro, e só parei quando minha mãe me chamou pra almoçar. Afonso, meu filho, vá direto ao assunto, por favor.


Está bem, padre, agora vou dizer o meu pecado, o terrível mal que fiz, falei, quase chorando. Eu me encantei pelo lindo olhar da Senhora, pela sua boca, os cabelos loiros mal aparecendo sob o véu; porém, o que mais me encantou foram seus pés, de dedos branquinhos, longos e perfeitos, que a comprida túnica branca deixava à mostra. Daí, eu senti um formigamento na barriga, meu corpo latejar, e foi a primeira vez que tive aquele negócio, pelo menos do qual tenho lembrança. Você gostou do que sentiu?, perguntou o padre, com voz trêmula. Sim padre, muito, e desejei ardentemente me prostrar diante daquela imagem e beijar com fervor aqueles lindos pés. Desde aquele dia, não tiro a imagem daquele quadro da minha cabeça.


E aquelas sensações se repetiram, meu filho?, perguntou o santo homem, e fiquei na hora com pena dele, pois senti que ele parecia que ia morrer, ele mal conseguia respirar. Daí confirmei, pois aprendi que não se pode mentir a um homem de Deus. Virgem Santíssima!, disse o padre horrorizado, e pude ver mal e mal pela telinha do confessionário ele desabotoando a batina, para poder respirar melhor.


Depois que contei, parece que o padre Dionísio ia ter um treco; embora não visse claramente seu rosto, ouvia sua respiração se acelerar, e me pediu pra contar tudo de novo,
sem rodeios. Eu estava morrendo de vergonha, mas ele disse que se eu não contasse tudo tintim por tintim, ele não me absolveria. Daí falei tudo tintim por tintim, porque não sou bobo e não queria ir para o inferno queimar junto dos outros pecadores. Sei bem como é o inferno; a Virgem o revelou aos três pastorzinhos de Fátima, e é mais terrível do que se pode imaginar.


Ao terminar minha confissão, ouvi o padre gemer alto, provavelmente devido à frustração de ter que ouvir coisa tão asquerosa.


Daí que esperei pela minha penitência, pois eu sei que depois que confessamos nossas faltas, o padre nos perdoa com as palavras: “Eu te absolvo dos teus pecados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.” Levantei-me e me sentia leve como uma pena.


Fui para o primeiro banco da igreja, bem diante da imagem da Senhora, e rezei, e rezei e rezei, mas sem coragem de olhar nos olhos dela, pois seu olhar parecia um ímã, e daí rezei com mais fé, pois eu sentia que aquela coisa ia começar de novo.


Virgem Maria

sábado, 15 de junho de 2013

Em tempos de piratas (Sônia Pillon)

“Renda-se ou morra!”. A temível bandeira com a caveira e as duas espadas cruzadas tinha um recado claro e direto às embarcações que navegavam pelo Mar do Caribe. E a chegada do navio pirata comandado por John Terrible sempre causava pânico. Relativamente magro e de estatura mediana, John Terrible tinha cabelos longos e negros, presos em um rabo-de-cavalo, uma barba comprida e aparada, e grandes olhos castanhos.


O terrível pirata caribenho era reconhecidamente vaidoso, tanto que surrupiava os trajes dos nobres quando invadia os seus barcos. Para os padrões do século 18, era considerado um homem bonito e atraente, e fazia muito sucesso nas tavernas dos portos por onde atracava, seja para se abastecer de provisões, ou promover seus “negócios”.


Astuto, tinha um olhar frio e penetrante. Implacável tanto com a marujada, como com seus inimigos. Nos saques que realizava, principalmente nos navios espanhóis, franceses e ingleses, além de ouro, prata e jóias, costumava raptar as mulheres das quais se agradasse, fossem senhoras, ou donzelas... E depois de fazê-las prisioneiras, usava de seus artifícios de sedução para conquistá-las e transformá-las em piratas também. Reza a lenda que poucas resistiam ao seu charme, apesar dele ter o que se poderia chamar de “um coração de granito”... E se por acaso não se agradasse, ou se cansasse de alguma delas, ou ainda fosse rejeitado, dava ordem para os marinheiros as jogarem ao mar...


Rico e poderoso, John Terrible foi por mais de duas décadas caçado pelas monarquias que pilhou. Nesse período, o “Senhor das Águas Sombrias” pintou e bordou, ou melhor, assaltou e se refestelou com sua tripulação após as pilhagens. Promovia festas e banquetes memoráveis, sempre regados com muito rum.


Mas os seus dias de crimes impunes chegaram ao fim quando finalmente a sua embarcação, “Terror dos sete mares”, foi rendida em uma emboscada na Jamaica. Preso e condenado à forca, John Terrible foi conduzido por um carrasco para ser executado em uma grande praça. Causava espanto o grande número de mulheres no local, aos prantos...


_ Ei, Samuel, acordaaa! Já são 7 horas, homem!
_ Ai, Raquel, logo agora que ia acontecer o enforcamento do John Terrible!
_ Ha ha ha. É isso que dá ficar assistindo filmes de piratas antes de dormir... E pensar que hoje existe o Partido Pirata, que nasceu na Europa e tem até candidato brasileiro concorrendo ao Parlamento Alemão...
- É mesmo! É um tal de Fabrício do Canto, que adotou o apelido de “Infiltrado”, um gaúcho radicado na Alemanha que quer revolucionar a forma de se fazer política por lá... E esse partido já existe também no Brasil! Ah, piratas!...




Samuel se arrumou rapidamente. A realidade o estava chamando. Não queria chegar atrasado ao trabalho, mais uma vez...


Sônia Pillon, Jornalista e escritora.
@Soniapillon

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Vida (Marcio E. Ochner)

Poço lamacento,
perfeição existencial,
de conceito defeituoso,
com áurea definida,
por números e de fins práticos.

Perfeição grega ,
com olhos materializados,
conjunto de linhas harmônicas,
uma canção matemática,
densidade areada,
perfeição singular.

Vento de captura sem defeito,
penhasco da arquitetura atemporal,
ofuscação comparada,
Paradoxal.

Marcio E. Ochner

quinta-feira, 6 de junho de 2013

UFC Jaraguá: Ainda bem que eu não falei (Marcelo Lamas)

belfortxrockhold


Sou um cara que fala demais. Quando começou o boato de que o UFC
poderia ser na nossa latitude, passei a ser indagado pelos meus amigos: “É sério esse negócio do UFC?”.
Informalmente, eu respondia: “É claro que não! Aqui não tem aeroporto”. Outra característica minha: Sou lógico demais. Faria sentido que o evento fosse numa capital. Eu ouvira boatos de que Porto Alegre queria o evento na Arena do Grêmio, não saiu. Curitiba, que é a base brasileira de vários lutadores não teve.


Cheguei a pensar em escrever (falar) publicamente sobre esta utopia
que entorpecia os amantes do esporte. Eu tinha certeza de que não ia
acontecer. Só não escrevi porque a Fernanda, minha namorada, pratica artes marciais desde criança, junto com o irmão, o Mestre Xitão. Logo, por questão de respeito, eu só manifestava o meu ceticismo conversando com eles.


Você já ouviu falar na cidade de Melo, no Uruguai? Não, né? Na década de 80, o Papa João Paulo II visitou a cidade. Até hoje, ninguém sabe o porquê!


Ainda quando não acreditava, falei pra namorada: “Quem trabalha com isso tem que ficar com o nariz colado no octagon!”. Me ferrei. Meses depois tive que comprar um ingresso deste, para acompanhá-la. E o destino me faria trabalhar de fotógrafo a noite toda, fazendo fotos dela com as celebridades das lutas.


Quando entrei na Arena, e vi a estrutura montada, entendi tudo. Realmente, o nosso cartão postal tinha mesmo uma caraterística diferenciada do que se vê pelo país. E foi projetada pelo pessoal daqui, hein!


Onde o “multiuso” ficou escondido nos últimos cinco anos?
Pois bem, se a Arena Jaraguá foi o atrativo inicial para este evento, agora temos a comprovada capacidade que a nossa população tem de superar -se. Só ouvi elogios dos forasteiros. Nunca imaginaria que poderia chegar num restaurante de Jaraguá do Sul, às 2h da madrugada e pedir um jantar. Ainda bem que eu não escrevi sobre isso também, teria que me retratar duas vezes.


Marcelo Lamas, engenheiro e escritor. Autor de “Arrumadinhas ”, livro em trabalho de parto.
marcelolamas@globo.com

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Brincadeira de roça (Elianete Vieira)

A garotada da roça vive solta em meio à natureza. Curte as intempéries do tempo.

Brinca com os animais criados na casa como irmãos. Acompanha o crescimento das plantas e come tudo o que a terra dá. Divertem-se ao subir em árvores, colher os frutos maduros e saboreá-los na alta copa.

Os pequenos brincam com bichinhos e hominhos feitos de mangas pequeninas e verdes, unidas com palitinhos. Bolinhas de gude e amarelinhas. Pulam cordas feitas de cipó.

Os maiores, preferem peladas com bolas de meia. Esconde-esconde em meio aos cafezais ou milharal. Banhos nas águas geladas do rio. Catam coquinhos ressequidos perdidos no mato, quebram e comem a castanha interna. Foram deixados por ali pelos animais que já haviam chupado os frutos.

Pés descalços calejados pelos pedregulhos e com anticorpos do esterco deixado pelo gado ao pastar.

Certo dia, Zé, João, Dito, Bastião, Toninho, resolvem fazer uma aposta para ver quem comeria mais a fruta que achassem madura na plantação. Saem correndo da casa e se embrenham na parte do quintal onde os pais não estavam roçando naquele dia e encontram suculentas melancias começando a surgir sobre a rama.

Os meninos sentam em roda. Colhem um fruto cada um e, elevando acima de suas cabeças, soltam para que se quebrem ao bater numa pedra estrategicamente colocada.

Em seguida, enfiam suas cabeças no mar vermelho e doce, devorando com sofreguidão, cuspindo as sementes e logo buscando por outra melancia.

Tudo muito rápido, alguém teria que ganhar. Logo, o grupo mal podia levantar. Estavam afogados em suco.

Os pais quando souberam, foram atrás dos garotos e os encontraram lambuzados de melancia. Tocaram o bando de volta para casa, com o cipó que eles haviam rebentado dos pés de melancia.

O vencedor, além da merecida surra, ainda passou mal por algumas horas.

No dia seguinte, a garotada já estava pronta para outras brincadeiras e artes.