segunda-feira, 29 de abril de 2013

Escritor Convidado: Robert Brotzke

Vivendo Plenamente


Ali, no aconchego dos cômodos do seu quarto, ele esperava o tempo passar. Só, despido de orgulho e de egoísmo, ele se desfazia em pensamento de tudo o que pra ele era mais precioso.
Nada mais valia a pena, nada mais fazia a menor falta, nenhuma riqueza se fazia realmente grande neste momento. Não porque ele havia perdido a vontade de viver, ou porque resolveu ser adepto do desapego, mas sim, porque ela jamais se faria presente.
Apenas aguardando o melhor momento para esquecer-se de tudo o que vivera, sem arrependimentos, sem remorso, sem tempo a perder dali pra frente. Guardava dentro de si as lembranças de algo que nem lembrava mais ter vivido realmente, e apenas isso bastava para preencher o vazio gigantesco na sua alma.
Ali, em pé à beira do seu corpo dormente, costumava ficar debruçado na janela, olhando para o céu da noite e para o vôo dos pássaros noturnos, esperando pela lua cheia que chegaria dentro de semanas. Ali, maltratava seu corpo enquanto mal se alimentava, abusava do consumo de álcool e do cigarro, soltando a fumaça no vidro já embaçado da pequena janela. Ele tinha consciência de que talvez aquele amor adolescente jamais voltaria: nem na forma da garota que ele conhecera, tampouco na forma de atração tão pura e mística dentro do seu coração, para outra pessoa.
Apenas entorpecia a inquietação de sua alma com o doce sabor do vinho tinto, e dopava sua mente tão ansiosa, com o olhar fixo em direção ao seu passado, fazendo-a esquecer inclusive do seu futuro.
Ele era somente uma semente de uma figueira, caída sobre o asfalto escaldante. Sua missão ainda não fora descoberta, pois não conseguia compreender tamanha grandiosidade da dádiva que recebera. Culpa, ele não tinha. Jamais quis se apaixonar da forma que se apaixonou, o pobre nem sabia o que era amar, ainda mais o que precisava fazer para esquecer tamanho amor que surgiu em seu peito.
O garoto crescia a cada noite em claro, tornava-se homem, e não somente seu corpo ia amadurecendo, mas também sua visão sobre o que realmente aconteceu em sua vida. O cigarro foi apagado, a garrafa esvaziada e abandonada pra sempre em um canto, e um toque quase imperceptível de primavera, fez aquela semente voar até a beira de um rio, onde a água viva e o solo fértil fizeram a árvore crescer, realizando sua missão na Terra dia após dia.
E assim o fez.


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Sobre o autor:


Robert Brotzke tem 26 anos, morador e natural de Jaraguá do sul. Formado em eletrotécnica em 2003 pela WEG e em Administração pela Católica em 2012, autor de blog próprio, e do livro Diário Virtual de Robert Brotzke, a ser lançado em junho deste ano, com aproximadamente 100 crônicas.
Participou do prêmio Sesc de literatura 2012/2013 na categoria "romance", ficando entre os 50 primeiros.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Quem ama não mata... (Inacio Carreira)

Vivia grudado na internet buscando novidades. Que, depois, espalhava pela turma, pessoalmente, por e-mail ou através das redes sociais. Assinava todas, ou todas que conhecia. Precisava parar com isso. Perdia um tempo danado na frente da telinha. Se o patrão descobre, rua! Sem poder reclamar, que estava tudo registrado ali, no seu ID. Como se fosse seu id, aquele descrito por Freud. E, como o id, o ID é “a parte mais primitiva e menos acessível da personalidade”. Como? Explico: se uma atriz de televisão denuncia a invasão de seus arquivos eletrônicos e a divulgação de uma foto sua, nua ou transando com o namorado de plantão, a polícia vai atrás rapidinho e prende o sabichão. Agora, se você recebe mensagens anônimas, de pessoas interessadas em azarar com sua paciência, e busca auxílio na mesma polícia (só existe uma, grosso modo) recebe a resposta de que “só se houver morte envolvida”.


Continuando os paralelos, assim como o id, o ID “desconhece o julgamento de valores, o bem e o mal, a moralidade" (Freud). As forças do id buscam a satisfação imediata, sem tomar conhecimento das circunstâncias da realidade. Funcionam de acordo com o princípio do prazer, preocupadas em reduzir a tensão mediante a busca do prazer e evitando a dor. Qualquer coincidência é pura semelhança. Ainda mais, para os incautos de plantão: o id contém a nossa energia psíquica básica, ou a libido, e se expressa por meio da redução de tensão. Assim, agimos na tentativa de reduzir essa tensão a um nível mais tolerável. Para satisfazer as necessidades e manter um nível confortável de tensão, é necessário interagir com o mundo real. Por exemplo: as pessoas famintas devem ir em busca de comida, caso queiram descarregar a tensão induzida pela fome. Portanto, é necessário estabelecer alguma espécie de ligação adequada entre as demandas do id e a realidade.
Entendeu? Se um automóvel é a extensão de nossas pernas, se uma arma é a extensão de nossos braços, o computador é a extensão de nosso cérebro. Antes de um computador com grande capacidade, temos que ter muita capacidade cerebral, ou não saberemos o que fazer com a máquina. São complementares. Até que o Ser invente o Androide inteligente, pensante, que tenha a capacidade de reflexão do aqui-agora, lembrando Blade Runner, o Caçador de Androides, filme de 1982.


Vivia grudado na internet buscando novidades. Encontrou a foto de sua namorada com o melhor amigo (deles). No maior malho. Indiferentes aos clarões do flash... Curtindo. Seria mesmo ela? Vai mandar cópia para o celular dos dois e ver a reação. Sósias? Impossível. Com a mesma roupa íntima, mesmo corte de cabelo, mesma expressão alucinada na hora do vamos ver?


Sua reação – instintiva – foi jogar o monitor contra a parede, lembrou a tempo de que não estava em casa, aquele aparelho não era dele, aquele tempo não era dele, aquela reação exacerbada – somente dele – deveria vir à tona em outra hora e lugar, quando encontrasse com os dois ex. Qual seria sua reação? Qual seria sua vingança?


O pior era o desejo, forte, que sentiu ao ver aquelas cenas e a falta de iniciativa para mudar de endereço. Músculos enrijecidos, rosto vermelho pelo afluxo de sangue, medo de que alguém chegasse em sua estação de trabalho naquele momento e o visse transtornado. Alterado. Transportado.


Tinha que aliviar a tensão. Depois veria o que fazer...

terça-feira, 23 de abril de 2013

A criança que foste, teria orgulho do adulto que és? (Patricia Grah)

Eis que me pego fazendo esta pergunta...


Em nossa infância, muitos de nós sonhávamos e imaginávamos – a partir do nosso conceito de felicidade - que quando adultos seríamos extremamente realizados e bem sucedidos: teríamos uma casinha, saberíamos dirigir e sendo assim poderíamos levar as pessoas para passeios e viagens super divertidas, compraríamos carrinhos de controle dos modelos mais top’s para brincar com nossos filhos, seríamos elegantes por termos um trabalho e escolhermos o que desejássemos para comprar no supermercado e usaríamos a roupa que quiséssemos.  


Porém, ao alcançar este estágio da vida, acabamos por ter aquela sensação de impotência, de a vida não ser “tudo aquilo”. Sentimos que quanto mais nos dedicamos e lutamos por nossos sonhos, mais longe do nosso ideal chegamos. Mas existe uma desculpa, ou melhor, uma explicação para esta insatisfação: crianças são puras e se satisfazem somente com o que realmente importa! Para elas, uma família, um dinheirinho para comprar um doce e um brinquedo de vez em quando basta. Um carinho da mãe ou uma brincadeira com os amigos, um domingo de sol, uma cama quentinha pra dormir até tarde. Coisas que aos nossos olhos, passam despercebidas...


Escrevo este texto como uma forma de reflexão, pois penso que muitos de nós estamos exigindo muito de nós mesmos, cobrando respostas antes de saber quais são as perguntas, buscando algo sem saber por e pra quê, fixando cada vez mais a busca pela felicidade material, esquecendo-nos da espiritual e deixando de lado o verdadeiro valor da vida. Criamos um mundo onde o trabalho está sendo posto no topo das prioridades – não que não seja essencial em nossas vidas, mas há um limite – deixando para o fim da lista o que seria o primordial, como a família e o amor próprio, deixando que a vaidade e a luxúria gritem o tempo todo em uma busca obsessiva criada por uma ideia fútil de que bens materiais fazem moral ou caráter, não importando se a condição financeira condiz com o sonho de consumo; onde a ganância por dinheiro contradiz os princípios morais, tornando mais importante o lucro financeiro que o espiritual, não prevalecendo nada além disto; onde a mentira e o desejo se sobressaem, criando um paradoxo entre o valor carnal e o familiar; onde a arrogância e a presunção da própria sabedoria tonam cego quem as possui . Tudo isto, somente para satisfazer o ego e mesmo assim permanecer infeliz.


É preciso sensibilidade e muito trabalho interior, porém, ao deixarmos o exterior de lado, descobriremos que só se sorri de verdade quando se busca de volta aquela criança que viveu dentro de nós.


Agora volto à pergunta: “A criança que foste, teria orgulho do adulto que és?”


 

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Feriado (Tiago Nascimento)

-Passou...
-Hein?
-Era ali, não viu a placa. Enorme!
-Distração...
-Sei. Estava era olhando a menina de azul do outro lado.
-Que menina?
-Te faz...
-...
-É por isso que detesto sair contigo. Ainda mais no feriado. Você sempre se perde!
-Não estou perdido. É só fazer o retorno...
-Mas onde? Daqui a 20 quilometros?
-Não, deve ter um por aqui, sempre tem.
-Você sempre reclama que os retornos são longe um do outro, duvido que ache um em menos de dez minutos.
-Clama, temos o fim de semana inteiro.
-Inteiro uma ova! Metade dele tá indo pro ralo, pela sua falta de atenção! Vai ser igualzinho da última vez.
-Quer saber?! Cansei! Chega.
-Hum?
-Você só sabe reclamar! Podia ter avisado da entrada. Assim como naquele dia. Depois a culpa é sempre minha.
-Nhem, nhem, nhem. Não sou eu que estou dirigindo...
-Mas quando não é pra avisar você enche o saco, quando precisa cadê?
-...
-Pronto, ali, falei que era perto.
-Burro!
-Hein?
-Isso não é um retorno, é a entrada pro elevado da marginal.
-Ai que saco.
-Volta.
-Não dá, é mão única.
-Agora vamos ter de achar outro retorno pra chegar no retorno. Por que não presta atenção no que está fazendo?
-E você deixa!? Não para de atucanar o cara meu!
-Mas você é incrível né? A culpa é sempre minha! Você sempre tem razão...
-Mas é uma verdade... Olha ali! Uma rua, vou entrar.
-Vê lá hein?
-Não, vai dar certo. Agora é só voltar pra rodovia...
-Meia hora perdida...
-Não deu nem dez minutos!
-...
-...
-...
-E então?
-Então o que?
-Satisfeita?
-Hunf... Vê se não vai entrar na marginal de novo!
- Vai ser uma longa viagem...

sábado, 20 de abril de 2013

O choro é livre (Vana Comissoli)

choro 


            Impossível olhá-lo sem parar a observar. O homem chorava copiosamente no meio da rua e não se incomodava nem um pouco com o olhar intrigado dos transeuntes. Eu não tinha nada a fazer, situação de aposentado que sai a esquentar a vida debaixo do sol sonhando calores que não tem mais.


            O sujeito começou a andar meio trôpego e pensei que podia estar embriagado, só alguém fora de seu juízo com a idade que aparentava ter, lá pelos trinta e vários, daria aquele espetáculo sem pejo. Passou-me pela cabeça que ele poderia cair, tropeçar, ser atropelado por algum idiota que não se perturba com a dor alheia. Digo dor porque aquele pranto esparramado só podia carregar um sofrimento desmedido. Seria algum resultado de exame maligno que trazia nas mãos? Ou um obituário de jornal?


            Fui atrás dele sem me preocupar com o percurso e nem se estava me afastando muito do meu próprio caminho, há algum tempo não ficava distante de casa. Vá que tivesse uma síncope, ou um AVC? Dizem que é sem aviso e eu não tinha preferência por cair duro na rua, daria tremendo trabalho a meus filhos me recolher, mandar para o IML, prestar depoimento... Não, eu não faria isso com eles.


            Não faria? Dobramos uma esquina e outra e outra. Será que este sujeito sabe para onde vai? E agora essa! Está soluçando. Preciso falar com ele, não me lembrava de ter visto alguém envolto em tanto sentimento! É triste, mas é lindo. Agora a moda é mais filosofar sobre os entraves da vida do que senti-los e isso é mais triste ainda.


            A natureza toda parece concordar comigo por que abriu um céu mais azul do que o azul que o céu tem. Posso até sonhar que são os anjos que espiam um sentimento andando pela rua a soltar faíscas de existência.


            Ele sentou! Meu herói descobriu uma acolhedora mureta dura para sentar. Seus ombros sacodem com o desamparo do pranto. Não vacilo: sento-me ao seu lado.


            ─ Amigo, me conta o que te faz sofrer tanto?


Perguntei na coragem, acreditando que me mandaria catar coquinho. Olhou-me como quem estivesse esperando que lhe fizessem essa urgente e necessária pergunta.


─ Mataram, mataram ela!


─ Ela! Quem morreu?


─ A Valéria. A moça amiga, caridosa. Ela cuidava dos meninos de rua como uma mãe e eles a adoravam. Não tinha nojo de abraça-los, sentir seu cheiro. Nada que um bom banho não resolva, deveria ter dito aos seus ouvidos.


Fiquei procurando na minha memória que andava dando umas falhadas cretinas, quem era a Valéria. Pensei em todas as novelas, nos noticiários e não me lembrei de nem uma, já andava mesmo desconfiado que o alemão me visitava, o tal Alzheimer com quem não quero intimidades. Precisava desesperadamente lembrar por que só podia ser uma celebridade. Muito respeitoso perguntei e afirmei, tudo ao mesmo tempo:


─ Sinto muito, não estou reconhecendo qual das Valérias... Aquela? Ou a outra?


Ele me olhou desalentado. Senti uma faca no peito, eu era mesmo um asno vestido, como podia ferir com minha ignorância alguém que devia estar sofrendo por um amor? Fosse lá de que tipo fosse este amor. O coitado voltou a chorar, desta vez ainda mais alto. Entrecortada por soluços eu ouvia a explicação:


─ Ninguém sabe quem é a Valéria, isso é desalentador. Como uma vida pode passar assim em branco? Quando eu morrer também não se lembrarão de mim? Não suporto esta ideia, não suporto esta mania que a vida tem de andar de braços dados com a morte. Prá que? Prá que isso? A Valéria... Pobre e querida Valéria.


Torci os miolos, não tinha a menor chance de sair bem da situação. Chorar... Não conseguiria fingir. Eu o feriria mais se desse um fora no reconhecimento da querida moça. Felizmente ele se pôs a contar.


            “Gosto de puta. Gosto mesmo. São carinhosas, só cobram o que foi combinado, não pedem para ir ao shopping, não atrapalham o futebol do domingo, não deixam rastros de limpeza pela casa. Fazem tudo que pedes sem ficar arranjando desculpas, não têm dor de cabeça e muito menos discutem a relação.”


            Eu concordava, era bem verdade o que ele estava dizendo, senti uma pontada de culpa por tê-las desprezado um pouco e ter resolvido que casada era bom. Resultou que dei com os burros n’água e gastei os tubos, além de ter que criar dois filhos durante meus melhores anos. Não que os amasse pouco, mas, pensando bem, é uma troca insana quando se percebe, como agora, que não pudera fazer muitas e muitas coisas por causa deles e teria que ir embora chupando o dedo. Na obrigação de achar muito bom eles conseguirem mais do que eu. Eles fariam, mas eu não tinha a menor chance de nada, deveria agradecer se o alemão não levasse embora até as lembranças do pouco que tive. Uma puta é consideravelmente boa vista deste ângulo. Ele continuou.


            ─ Meus amigos não entendem. Não sou um cara feio.


            Examinei-o pela primeira vez. Não era mesmo. Tinha olhos acinzentados, talvez fossem até azuis sem as lágrimas, um nariz reto que se poderia chamar de grego e a insustentável beleza dos maravilhosos 30 anos. Uma boa altura, qualquer mulher poderia se aninhar em seus braços e se sentir satisfeita.


            ─ Puta, igualmente às santas, merece homem bem apanhado. É o que eu acho. Porque deveriam andar sempre com uns pelegos velhos? Quem gosta de puta de verdade, como eu, respeita o trabalho duro que elas têm, sabem que muito homem é nojento e maltrata. Acabam ficando amigos delas. Não tem amiga mais fiel do que amiga puta. Não falam mal de ti por que sabem quanto dói ser difamado, não inventam desculpas para escapar de ti por que sempre és bem-vindo. Enfim, tive muitas amigas. O melhor é não virem com a história de que não se trepa com amiga. Puta trepa com amigo numa boa  e até acha melhor, sabe com quem está. Passam a te beijar na boca, coisa que não dão para qualquer um. Te tornas uma espécie de escolhido, de ser especial.


            Eu estava bem interessado na explanação, quem sabe puta gosta de velho e tem paciência. Seria bom relembrar como é ter uma mulher, mesmo que fosse puta. Já estava convencido da útil feminilidade das meninas.


            ─ É preciso entrar no mundo delas e nunca arrepiei de fazer isso. É um universo multicolorido, cabe todo tipo de gente dentro dele, o mais legal é que não estão preocupados com aparência, verniz social e estas coisas que fazem as pessoas se tornarem hipócritas. Foi assim que conheci os travestis que circulam nos arredores das putas. Troca de freguesia, uma questão de negócio, nada pessoal. Tem alguns insuportáveis, mas não por serem gays, mas por ser gente de má índole. Nunca confunda as coisas: quem é bom, é bom de qualquer lado do campo. O inverso é verdadeiro, seja lorde ou vagabundo é abjeto do mesmo jeito se vem de raiz torta.


            Estava aprendendo o que não tinha aprendido a vida toda. Deu um arrepio maior do que eu estava acostumado quando olhava minha vida. Este homem chorando pela Valéria que devia ser puta, é claro, me mostrava que minha passagem rápida por este mundo doido, tinha sido pobre, mais pobre do que o pobre que eu achava dela. Era bom e melancólico aprender, se tivesse sido uns dez anos atrás ainda daria tempo de dar uma guinada no timão, mas agora... Era outra mágoa para arrastar.


            ─ Foi assim que simpatizei com a Valéria logo de cara, entendes? A gente percebe uma alma pura trazendo luz para a Terra. Se sente dentro do peito.


            Agora eu entendia tudo, até o que nem remotamente me passara pela divagação. Parei de lamentar as perdas, era uma maneira de usufruir vivendo de ouvido. Na minha imaginação cenas de submundo, nem tão sub assim, aprendia, desfilavam envoltas em todas as cenas que assistira em filmes, lera nos jornais e espiara na noite. Nada era o que me diziam ou enfiavam na minha mente sobre este mundo. Ele era feito de gente pelo jeito bem mais honesta do que as conhecidas por mim. Tinha visto tanta sacanagem envolta em sorriso! Se neste desvão atropelado por impropérios existia roubo, ou fraude, elas eram parte do negócio e não uma traição deliberada. Eu poderia sonhar que existia uma fatia de humanidade mais parecida com a que se deseja que haja. Gente emocionalmente decente.


            ─ Agora vem essa notícia que a Valéria foi esfaqueada por um desgraçado lá na praia de Copacabana.


            Estranhei. Então isso tudo era no Rio de Janeiro?


            ─ Moraste por lá, amigo?


            ─ Não, nunca estive no Rio. Qualquer hora dessas eu vou, quero ver de perto o lugar onde o sangue da Valéria avermelhou a areia branca.


            Realmente o quadro era terrível. A areia pura, quase brilhante... O sangue saindo em cascata por buracos do corpo de Valéria. O desgraçado fugindo, com certeza encapuzado. As marcas dos saltos ainda marcando o chão mole. Os olhos abertos surpreendidos pela avalanche da violência. Policiais que não deviam ter investigado o suficiente por que afinal era apenas um homossexual doente de luxúria esparramado na praia. Só restava chorar a dor dos mal paridos.


            ─ Ela estava toda linda, sabia se maquiar a Valéria. Tinha posto o vestido rosa pink e arrumado o cabelo daquele jeito que fica preso só de um lado. E não era peruca não, era de verdade. Essa vantagem temos hoje em dia, os pobres travestis podem deixar o cabelo crescer quanto quiserem. E o batom! O batom era demais, exatamente da cor do vestido.


            Meu companheiro sabia demais. O que interessa à observação de um homem uma coerência entre batom e vestido? Fiquei com um pé atrás. Seria ele mesmo gay? E se fosse? Que raio de preconceito enraizado dentro da gente! Fiquei com raiva de mim mesmo por ter permitido tal reação vinda sei lá de que fogo do inferno através das palavras de quem eu nem conhecia, mas que queimavam minha recente descoberta. Não sei se ele percebeu ou foi casualidade, mas explicou:


            ─ A gente aprende a observar e sabe que é bom? Adquire-se uma acuidade estética que ajuda muito a entender a beleza de uma mulher, por que travesti é uma mulher que errou de corpo, apenas isso e muitas vezes mais feminina do que várias que eu conheço que não se entregam nunca, ficam se digladiando com a gente em nome de uma estúpida concorrência de sexo. Com isso ficam sem sexo gostoso algum.


            Olhei o relógio, há algum tempo já deveria estar em casa me preparando para a chegada da noite, não tinha mais o hábito de me atrasar, qualquer vacilo poderia por a perder a disciplina que o médico jurara, prolongaria minha miserável vida. Mas me afastar do sujeito ainda descomposto? Não tinha coragem, ele me dera tanto.


            ─ Tomei uma decisão. ─ Ele se levantou num salto. ─ A morte da Valéria me abriu os olhos. Vou me casar.


            Eu não podia acreditar no que dizia, acabara de me convencer que viver livre e aberto era o máximo e agora vinha com essa de casar?


            ─ Relutei bastante, a Sarita é puta, mas não vou ligar mesmo. Somos namorados há três anos e há dois não aceita dinheiro de mim. Namorado não paga e sou fiel, assim como ela. Não transo com mais ninguém, nem ela, apenas trabalha, é diferente, é o comércio que ela conseguiu abrir. Se fosse uma loja todos bateriam palmas e elogiariam.


Pensei que era muito justo e casar com puta deveria ser bem melhor do que casar com moça de família, até por que as diferenças entre uma e outra não eram lá tão grandes assim. Conhecia muita casada que corneava o marido e não se mandava só para ficar no bem bom de ser sustentada. E puta trabalha firme, com pausa só três ou quatro dias por mês, não tem salário fixo, nem férias, muito menos 13º. Não é para qualquer um.


Esse amigo de rua era mesmo um estrondo, sua sabedoria e jogo de cintura com a vida me deixavam embasbacado. Talvez, se pintasse o cabelo, desse um trato na cara, eu conseguisse conquistar uma puta jeitosa como a dele. Não seria nada mal um casamento de primeira categoria agora que os sinos da véspera batiam à minha porta. Chegaria lá em cima, na frente do tal de deus que não tinha me mostrado essas possibilidades e teria o que agradecer em vez de dizer que era um cretino me aprontando uma vidinha de merda.


─ Não te convido para padrinho por que a turma vai achar ruim trazer amigo recente quando tem tantos que acompanham meu romance desde o princípio, mas te deixo meu telefone, quero que vás ao casamento. Pelo menos na igreja. A Sarita sonha com vestido de noiva e ela tem a alma mais pura que conheço.


Aceitei prontamente, não podia perder este cara de vista. Também estava contente, tinha parado de chorar e uma energia nova e luminosa me garantiu que os olhos eram mesmo azuis.


─ Amigo, irei com prazer. Será que as colegas da Sarita vão ao casamento? Antes que me esqueça. A Valéria, fiquei sabendo tudo, menos tua história com ela. Como a conheceste e tal...


─ Valéria? Ah, ela é personagem do livro que terminei de ler. Que autor! O livro se desenvolve em torno da morte trágica da moça e não revela quem a matou. Não dá uma pena danada?


                                                        Vana Comissoli

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Cobaias (Fernando Bastos)

Lá pelos meus sete ou oito anos comecei a suspeitar que as pessoas a minha volta participavam de um grande jogo contra mim,  e todas faziam parte de uma trapaça, a fim de me enganar a respeito das coisas, que todas sabiam exatamente o que eu pensava.


Até de meus pais e irmãos eu guardava calculadas reservas, pois não tinha muita certeza de que eram meus pais e irmãos, mas seres de outro planeta ou algo parecido. Eu pensava que estava sendo vigiado 24 horas por dia, e que até na privacidade do banheiro, de porta fechada, fazendo minhas necessidades, alguém me observava, e contaria tudo para minha mãe, ou aquela que parecia ser minha mãe.


Essa sensação de estar num Big Brother de George Orwell, que eu só leria décadas depois, se prolongou até perto dos treze anos, quando aos poucos fui me convencendo de que essa história de imaginar uma conspiração contra mim não passava de fantasias da minha cabeça, ninguém, claro, poderia entrar em meus pensamentos e saber seu conteúdo, as pessoas eram tão reais quanto eu, sentiam dor, frio, calor, ficavam alegres e tristes, e, quando cometiam atos reprováveis, ficavam também com aquela sensação de coração dolorido, respiração ofegante e frio na barriga, que vim a saber mais tarde era provocada pela ansiedade e angústia.


Outra descoberta importante naquela época foi saber que outros meninos eram parecidos comigo, e tive certeza disso nas conversas com colegas entre uma aula e outra, assim que minha timidez permitiu, ao ouvir um garoto em tom professoral dizer que aquele líquido branco que saía do pênis era porra; dias depois aprendi o nome certo para a gosma, era sêmen, conforme ensinou um professor de Educação Física taradinho,  que em um dia de chuva, o pátio molhado impossibilitando a ginástica, resolveu explicar para meninos e meninas concentrados em sala de aula, os mistérios do corpo humano, e lá pelas tantas, disse que nessa idade era comum os peitos das meninas crescerem e aparecer pelos na xoxota, e só o fato dele mencionar essa palavra já foi motivo para todos me encararem, tamanha era minha fama de santo, incapaz de proferir palavrão, mas a gota d´água foi  quando ele disse que é normal o menino ir de vez em quando ao banheiro tocar uma punheta, eu quis me esconder debaixo da carteira, e se tivesse um buraco no chão da sala, eu teria me jogado para não voltar mais por um bom tempo, tanta era a vergonha que senti diante dos rostos com sorrisos de deboche que se voltavam para me observar, pois minha ignorância nesses assuntos e fama de inocente, eu diria hoje, de idiota, eram de conhecimento público. Não sabia para onde olhar, meu rosto ficou quente como brasa e devia estar mais vermelho que um morango maduro. As meninas mais atiradas, sempre que queriam me ver corado de vergonha, esperavam o recreio, sentavam ao meu lado na carteira de dois lugares comuns na década de 60, e, com a cara mais santa do mundo, encostavam a coxa nua, mal coberta pela saia de uniforme azul marinho plissada contra minha perna, sob pretexto de tirar alguma dúvida sobre uma matéria qualquer, pois eu era o gênio, o garoto prodígio, como a Marta, uma morena esguia e de belos cabelos negros um dia asseverou.


À medida que eu crescia na proporção da minha curiosidade intelectual, enredei saudáveis amizades com Freud, Nietzsche, Bertrand Russell, Jean Paul Sartre e outros do gênero, de modo que comecei a entender que meus entraves em questões sexuais eram frutos da minha educação agressivamente religiosa, onde escutava sempre que fazia algo indecoroso para os adultos, o famoso “Não faz isso que Deus castiga”.


Ler aquele escol de gênios teve um efeito devastador sobre meu espírito supersticioso, amedrontado e influenciável, pois deixei de ter medo das três piores coisas que mais me apavoravam: a primeira, de mulher – agora era eu quem procurava me encoxar; segundo, de sexo, quando aos 23 anos fui para a cama pela primeira vez com uma mulher - não faz mal que era uma prostituta, e nem tão formosa como eu desejava, precisei da ajuda dela para separar a banha extra das rotundas coxas e achar o caminho, mas pelo menos fez-me sentir um homem de verdade – percebi que sexo não era aquela coisa repugnante que me fizeram pensar, nem tão complicado, era só relaxar, gozar e ser feliz; e terceiro, de Deus, pois com as luzes que entraram pela janela da minha obscurecida mente, expulsei todos os demônios e explicações metafísicas para as incertezas que giravam ao redor do meu ser como gemebundos fantasmas.


O estranho é que, durante minha escalada para o cume da montanha, quanto mais eu subia, e via a paisagem se distanciar, e as pessoas ficarem quase tão pequeninas quanto formigas, uma estranha sensação se apossou de meu ser, uma espécie de déjà vu, mas agora de efeito contrário, pois não achava que as pessoas mantinham um conluio contra mim; eu havia percebido que elas é que viviam um falso mundo, manipuladas por uma ideia obsessiva, surreal, improvável e absurda; em última análise, elas eram como autômatos, comandadas por gente esperta que dizia o que elas deviam fazer, o que vestir, comer, e no que acreditar. Na minha escalada, encontrei muitos outros que haviam superado essa fase de cegueira mental, e quanto mais eram beneficiados com o ar puro da montanha, mais subiam e se enriqueciam com esse clima novo.


Hoje, perto de fazer 58 anos, continuo a subir a grande montanha, posto que a jornada para o conhecimento só termina com a morte, e a cada passo, consigo compreender um pouco mais porque a maioria das pessoas prefere ficar na planície, feito cordeiros ruminando as palavras trazidas pelo vento dos ancestrais, e acreditando no que seus condutores pregam. É mais confortável acreditar do que raciocinar, consome-se menos energia, e os poupa de dores e questionamentos.


Outro dia, no silêncio de meu apartamento de um quarto, cercado das minhas únicas companhias, um gato e um papagaio, lembrava do tempo em que imaginava viver em um mundo onde eu era uma espécie de cobaia e todos a minha volta eram os pesquisadores; hoje reflito e vejo que as cobaias somos todos nós, presos num imenso laboratório, repetindo comportamentos e ladainhas milenares, na mais das vezes nocivos para a saúde geral, mas encarados como a única verdade num mundo possível. E isso me apavora. Pois sei que poucos levantarão as cabeças do transe em que se encontram, e observarão para fora de suas gaiolas.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

A ponte invisível (Sônia Pillon)

“No meio do caminho tinha uma ponte. Tinha uma ponte no meio do caminho.” Sim! Trata-se de uma paródia do poema de Carlos Drummond de Andrade, “No meio do caminho tinha uma pedra...” A verdade é que essa ponte não era de concreto, nem de madeira, nem de metal, nem de corda, como as do Exército... Seria bem mais fácil se fosse uma ponte com materialidade, que pudesse ser tocada com as mãos, e com uma superfície sólida. Mas tinha uma ponte, ah se tinha!


A ponte a que me refiro é uma ponte invisível, construída através da imaginação e dos sentidos, atravessada todos os dias, com a velocidade da luz, de duração variável. Porque era através dessa ponte que Mary Anne se comunicava com Leroy. O vilarejo de Mary Anne ficava no Ducado de York, na sombria Bretanha da Idade Media.


Era um lugar cercado de montanhas e cortado por rios. A família de Mary Anne era numerosa: seis irmãos para controlá-la...


Um dia, faltou farinha na aldeia e ela teve de viajar, camuflada de homem, para buscar o produto. Atravessou o rio de barco e, depois de muito navegar, chegou ao seu destino. Foi no mercado da aldeia distante que ela conheceu Leroy, o mercador de queijos. Conversa vai, conversa vem, sorrisos, olhares trocados, desejos inconfessáveis...


Mas ela não podia se demorar, e portanto prometeram se reencontrar. Como a jornada era longa e nenhum dos dois podia encurtar a distância, pelo menos naquele momento, se reencontrariam todas as noites, durante os sonhos... Criariam uma ponte invisível...


Durante o sono profundo, os dois se posicionavam de um lado e do outro da ponte e acenavam seus lenços. Aí eles a atravessavam... À sua volta, seres fantásticos de asas sobrevoavam o local, com densa vegetação, iluminado pela tênue luz da lua...


Uma noite, um forte temporal atingiu a aldeia de York, o que obrigou os moradores a ficaram alertas com a altura do rio. Havia o risco de inundar os casebres... A situação se repetiu por sete dias e sete noites.


Nesse período, sempre no mesmo horário, Leroy se posicionou do outro lado da ponte com seu lenço, noite após noite, mas Mary Anne não apareceu...


Aturdido, ficou conjeturando o que teria acontecido: O que será que aconteceu com ela? Estaria doente? Teria morrido? Ou simplesmente teria se cansado dele e outro estaria tomando conta de seus sonhos? Acordava sempre angustiado, sem saber o que pensar...


Mas foi na oitava noite, quando já não tinha mais esperanças, que Mary Anne reapareceu e contou tudo a ele... Foi então que os dois combinaram um novo encontro, dessa vez no mundo real...


Ao acordar, Mary Ann olhou em direção ao rio e sorriu... A ponte invisível, finalmente, deixaria de ser imaginária. Mas até quando?


- O passado já passou, o presente é uma dádiva e o futuro ainda não chegou... Se beliscou para ver se estava acordada. Depois ajeitou os longos cabelos castanhos, com um sorriso à la Mona Lisa. Iria começar os preparativos para a longa viagem...


Sônia Pillon

sábado, 13 de abril de 2013

Cavidade (Marcio E. Ochner)

Diante do previsto,
sai e não retoma...
paralisado,
pouca coisa se vê,
quinhão prolífero,
fragmenta-se em cores,
tomam corpo,
nada dizem...

Arremessa-se a desistência,
Causam dor,
Troca repentina de foco,
rende-se a inércia...

Convulsão muscular,
atalho acidentado,
foca sua extremidade,
no bolso outra superfície
amontoado de matéria,
corre a lingueta ,
abre caminho,
indolente momento,
nasce a lembrança,
atrasado...
peça que se fecha,
dispara...

Marcio E. Ochner

domingo, 7 de abril de 2013

Meus Olhos, Teus Olhos (Thiago Daniel)

Meus olhos de anúncio
Estacionados na tua prateleira
Brincam de silêncio
E te deixam passar


Teus olhos de águia
Navegando em papel veludo
Dobram troncos de Araçá
E me deixam ficar


Meus olhos de chamar sonhos
Deixam-te acordada
E não lembram mais de nada


Teus olhos código de barra
Não leem os meus
Caixa automático

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Diversidade cultural (Elianete Vieira)

Brasileiros, americanos, franceses, latinos, alemães, ingleses, asiáticos, as mais diferentes culturas, gostos, línguas, religiões,  raças, jovens, idosos, casais, amigos, famílias, uma enorme diversidade cultural. 

O que todos eles tem em comum? O gosto pela novidade, pela descoberta de novas culturas e o desejo de viajar.

Alguns escolhem lugares que já conhecem ou que frequentam, buscam pelo conhecido.

Outros buscam pela novidade, pelo improviso, pelo desconhecido.

Todos se guiam pelas bandeirinhas nos uniformes dos tripulantes em busca de informações em sua própria língua. Todos estão ali com um objetivo comum, conhecer as mesmas cidades turísticas por onde passarão.

Seja pelo lazer, pelo trabalho, pela comida, shows, ou mesmo pelas compras de lembrancinhas ou itens mais requintados, bebidas, perfumes, couro, cachemere, artesanato. Itens mais baratos ou apenas por serem importados, típicos, diferentes.

Alguns usam a piscina, outros buscam pela academia ou SPA. Outros comem o dia inteiro. Muitos deitam confortavelmente numa espreguiçadeira para ler um bom livro. 

Outros preferem tomar sol, com sua melhor roupa de banho, posando para fotos, porque neste momento todos são modelos, eternizando nas memórias digitais as cenas que os olhos se maravilham. 

Toda excursão tem guia e monitores de eventos. Alguns possuem monitores infantis, liberando os pais para curtirem suas ferias. Esses monitores são treinados para movimentar, divertir, são criativos e fazem com que o tempo deixe de ser monótono para passar rápido de tão bom.

Restaurantes e shows reservados. Camareira sempre deixando tudo arrumado e limpinho. Bagagem sempre à mão. 

Férias.  Nada a fazer a não ser curtir o momento, esquecer os compromissos de trabalho, desligar o celular (quando estão com sinal). Desconecte-se do dia a dia corrido e da internet também.

 Jogar. Arriscar. Experimentar um drink novo ou um prato exótico. 

Gastar em algo que normalmente não pagaria, mas em férias tudo vale a pena.

Solte-se. Viva. Saboreie. Não se permita arrepender-se depois.

Libere a criança que ainda vive dentro de você. 

Seja feliz!!