segunda-feira, 25 de abril de 2011

Ninguém sabe... Ninguém viu (Vana Comissoli)

Coitadinho, falou Maria das Dores espremendo uma lágrima seca. Benzeu-se e seus lábios se moveram num Pai Nosso meio torto.

Maria tinha um apelido na comunidade, Maria Povão, apelido mais comum do que a merda que volta e meia aparecia insistentemente nas vielas. Gostava de feijão com arroz e macaxeira, novela das seis porque a das oito despertava sensações proibidas pelo pastor. Desde que começara a freqüentar a igreja não ia mais ao bailão e nem arrebitava a bunda quando passava na frente do homario que estacionava no bar do Zeca. Estava meio chato, mas fé é fé e ela se esforçava. Quem sabe assim Deus olhava para baixo e mandava um salariozinho melhor e um homem crente e sério? Não custava tentar... Pelo menos um ano apostaria no Senhor. Tinha aquela escapadela da cervejinha do sábado, mas também, ninguém é de ferro. Hoje era diferente, o homem tinha morrido e o povo todo estava consternado, rolava a cerveja da tristeza que todo mundo sabe que alivia o coração. Até o pastor perdoava e mandava a sua.

“Que alegria para nós chegarmos ao fim de nossa vida com a mesma certeza do dever cumprido.” Ai que bonito que foi ouvir estas palavras na TV enquanto o caixão desfilava todo pimpão com aqueles guardas bonitos como santos perfilados ao lado. Santa mãe! Só mesmo um homem bom de verdade para merecer aquilo tudo. Quem me dera um soldado desses! Sargento então... Seria a sorte grande. Ouviste, Senhor? UM SARGENTO ESTÁ DE BOM TAMANHO!

Combinou com as amigas que iriam à avenida se despedir. Seria uma choradeira daquelas, também com uma alma deste prumo passando na frente! Seria choro bom, de devoção. Ainda bem que era da terra do homem, do contrário só na TV mesmo. Era bonito do mesmo jeito, mas a emoção, os lenços brancos não ficam tão encantadores.

Sempre se podia ouvir umas barbaridades porque estes políticos se julgam o máximo e falam mal até de morto bem aventurado. Acredita que teve um, querendo ser presidente e fingindo que não, que teve a coragem de falar rindo com aquela carona de macho enchendo a tela: "Uma hora tem que morrer!” Cruz credo, sacrilégio falar mal de morto, dá azar. E se vira alma penada e vem puxar os pés de noite? Eu, hein? Melhor enaltecer, eta palavra bem chique essa, mas foi o que o repórter usou para falar do homem. Enaltecer... O que era mesmo? Acho que é crescer prá cima, foi isso que o homem fez, cresceu assim ó, num zapt! Mentira, cresceu devagarinho, definhando na frente dos olhos da gente.

Ficou ouvindo a trajetória do santinho até de madrugada, nesta noite nem fiscalizou o filho que estava andando em má companhia. Lutou como um mouro, o Willian Bonner disse...O que será mouro? Se tivesse amansa burro nesta hora até que tentava procurar, embora seja bem difícil mexer naquele livrão pesado que só ele. Pena que não deu tempo do homem fazer um montão de coisa que disse que se empenharia em fazer, mas também, coitadinho, demorou anos nessa tal luta de mouros. O Olavo da Lucinda é que foi ligeirinho da mesma doença. Também esses Estados Unidos que curam todo mundo é caro de ir. Porque será que não curaram o homem? Bem bom que o Olavo foi rápido. Prá que sofrer? Bobagem, a hora bate e ninguém vira semente.
“Aparentemente parece uma contradição alguém que está com seu quadro de saúde tão debilitada dizer que a situação está tão boa, que não tem como melhorá-la. Mas quando se tem a consciência tranqüila do dever cumprido, ou pelo menos fez tudo o que podia, dando o melhor de si, a morte se apresenta como um pódio onde os melhores são premiados.”

Já pensou dizerem isso da gente depois de morto? Ai, que lindeza! Não é como a gente da comunidade que o caixão nem foi comido ainda e já estão contando todos os podres. Pobre da Neusali ficou mal falada que só ela e olha que dava um duro danado no tanque para sustentar o filho drogado e maluco. Porque será que o homem nunca veio na comunidade para ajudar o Sergionor? Quem sabe ele deixava a porcaria se tivesse uma escola igual a do homem, nessas é que se aprende coisas boas. Mas... É a vida. Tá morto, tá na boca do povo, prá bom, ou prá ruim. Mas este, este era bom, o pessoal graúdo, metido a entendido é que gosta de malhar, só para parecer melhor do que é. Depois Maria não entendia mesmo de juros altos, mensalão, guindado a alguma coisa que dava uma grana preta. Então podia ficar com a verdade verdadeira: era santo, ninguém fica com aquele sorriso de novela saindo do hospital depois de um mundaréu de operação em tudo que é canto se não for santo. Maria chorou quando ele apareceu na cadeira de rodas, pediu aos santos que o pastor disse que não existiam e que ela concordava, mas no segredo da alma sabia que eles valiam a gente na hora do aperto e também chamou os anjos de asas lindas para cobrirem a cabeça do homem.

Imagina se seria ela, Maria Povão, que ia discutir alegando que o homem tinha lá suas pendengas e até filha de prostíbulo tinha embaixo dos panos. Ai, bem que ela queria ser filha deste lugar em vez de ficarem dizendo que a mãe deu para o leiteiro e por isso ela nasceu com esses olhos verdes luzindo na pele mulata... Ah, seus tempos! Eles fizeram sucesso. Era boa de bunda e de peito também, saía na escola na frente de ala. Nossa! Sai diabo, pensando essas coisas enquanto o homem nem esfriou. Será que não passarão a novela hoje? Seria uma pena, o capítulo seria de lascar. Luto é luto, tem que se ajoelhar. O homem até subia a tal rampa do Planalto que devia ser uma beleza de encerada, bem que gostava de ser a limpadeira daquele espação todo, garanto que pagam bem melhor que a dona Judite, mão de vaca. Eta pensamento teimoso, toda hora fugindo do defunto. Rico é legal, é defunto e não presunto. Não reclama Maria, disse para si mesma, até que é meio igual, tudo termina em “unto”.

Pensando bem, todo mundo acaba embaixo da mesma terra, claro que a dele é mais transada, até tem casinha em cima, ou será que vão queimar o homem? Deus me livre, tomara que não inventem isso que é coisa do diabo, o pastor disse, só para a gente não encontrar o caminho de Sião. Gente malvada essa.

Claro que o homem era bom, teve político de todos os partidos emocionado, vi com esses olhos na TV, falando maravilhas dele e olha que estes caras gostam bastante de um descalabro em cima uns dos outros. Tudo uma corja de sem vergonhas, menos este, o morto era bom demais. Filho legítimo do bom povo de Minas, igual ela. Ai que emoção, vinha lágrimas aos olhos só em pensar que era mineiro igual ela. O presidente, opa, ex presidente, a gente esquece que tem aquela sapatão agora lá em Brasília, pois ele chorou, enxugou os olhos que eu vi na TV e até visitava o doentinho no hospital. Dava umas entrevistas de apertar o coração, mas nunca perdeu a esperança da vivença eterna do companheiro. Vem cá... Todo mundo morre, né? Até Jesus morreu, foi matado tá certo, mas se foi do mesmo jeito. Na cruz ainda por cima, ainda bem que acabaram com essa covardia de pregar pessoas senão metade da comunidade já estaria espetada pelos pregões. Deus nos livre e guarde!

Maria saiu ao pátio, chamou a vizinha por cima da cerca torta:

- Cinara! Cinara! Aparece mulher!

Lá veio a amiga balançando as coxas troncudas com as varizes de um dedo fazendo aqueles desenhos de estrada.

-Que foi Maria? Tá desavisada? O homem morreu! Não aguento a dor no coração.- Cinara segurou os peitos no sufoco.

- Claro que sei. Acha que sou por fora? Não tem um canal da TV que fale outra coisa. É que eu queria segredar.

- Desembucha criatura, tem coisa melhor que esta? – Cinara se entusiasmou.

- Não, é que já estou meio de saco cheio de ouvir esta lengalenga, dói demais, até parece que eu via o homem todo o dia.

- Isso é mesmo, mas não te amofina quem sabe amanhã acontece outra coisa bem legal e os repórteres mudam de saco prá mala.

Algumas semanas depois um esquizofrênico deu tiro para todo lado dentro de uma escola e morreu criança de dar dó. Que nem o dó que Maria teve daquela menina, como era mesmo o nome? Esqueci, mas eu sei que o pai atirou da janela e teve aquele outro, como era mesmo? Foi arrastado pelos bandidos pendurado no carro. Nossa! Tanta desgraça que a gente esquece.

Quem era mesmo o homem? Zé era o Zé. E agora José?

Dicionário (Marcio Ochner)

Polarização invertebrada,
ponto nuclear,
expansão gráfica,
elementos ultravocabulares.

embrulho sintático,
de função demolitiva.

decapitação maciça,
peça de pressão erudita,
mecanismo expansivo...
Aliteração.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Caminhar I (Tiago Nascimento)

O homem caminha.
Não tem certeza de onde vai, nem de onde veio, nem mesmo de porque caminha.
Apenas caminha.
Um pé, depois o outro, mais uma vez o um, outra vez o outro.
Andar.
Existe sentido na vida? Ele não sabe, nem se preocupa. Só caminha.
Da casa para o trabalho, do trabalho para o barzinho, do barzinho pra outro lugar, de outro lugar a outro e assim todos os dias, todas as semanas, os meses, os anos, os séculos. Até milênios talvez…
O homem caminha desde que seu mais antigo ancestral desceu das árvores.
Aos domingos pra igreja, as terças pra feira, aos sábados pra casa da sogra, nas férias pra praia, nas quartas pro estádio, e uma vez ou outra ao médico.
E no fim, na última caminhada, caminha-se deitado. Acompanhado. Outros homens ao seu lado. Caixão de mogno encerado. São sete palmos descampados. Et omnis motus finem

caminhar

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Palavras únicas: Dissabores (Marcelo Lamas)

Há palavras na língua portuguesa que são mágicas e sem tradução digna da sua magnitude, o substantivo no plural "dissabores" é um deles. Outro dia, um amigo sexagenário me disse: "Tome cuidado para não causar dissabores aos outros". Eu já conhecia o verbete, mas nunca tinha analisado a sua profundidade. Neste cotidiano em que tentamos acelerar a rotação do planeta, vivemos jogando palavras pra fora, sem medir seu impacto.
O mesmo amigo de cabelo branco, me advertiu com um provérbio antigo: "Há três coisas que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida".
Sempre gostei da síntese. Se ao invés de usarmos pensamentos completos junto ao nick do msn, colocássemos uma única palavra, não seríamos mais autênticos?


A propósito:
Dissabor: 1 Desgosto, desprazer. 2 Acontecimento incômodo ou desagradável. 3 Contratempo. 4 Mágoa.

Marcelo Lamas escreve artigos e crônicas para jornais, revistas, blogs e livros há 16 anos. É engenheiro e professor universitário. marcelolamas@globo.com

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Por que está tão triste? Vilson Rafael Riegel

...mas agora já está tarde

- lamenta um sonho desperto -

Cometemos o mesmo pecado

recebemos a mesma punição

auto-destruindo

incompletando

um abraço sem abraço

Descalço em um campo minado

canto desafinado,

lamento,

desabafo...

Mergulhado em um raso lago

tarde, muito tarde

retine o alarme falso.

 

Autor: Vilson Rafael Riegel

 

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Emoções Baratas (Sônia Pillon)

Era madrugada de sábado. O beco escuro à beira do cais trazia sons abafados, gemidos, risos e gargalhadas. O bar tipo "pé-sujo", no final da rua, era mal-iluminado, tinha o chão de cimento rachado e esburacado em muitos pontos. Encardido e mal-cheiroso, como de resto todo o ambiente, era tomado pela fumaça de cigarro. Chegava a arder nos olhos. Por trás do balcão, o dono sorria satisfeito, enquanto servia a terceira dose de pinga para um corpulento estivador, que parecia conhecer de longa data.

O boteco estava com quase todas as mesas lotadas, de homens que buscavam na bebida e na boemia a solução para a própria solidão. Em meio às mesas, circulava com ares maliciosos por entre os clientes, Claudete. Com cerca de 35 anos, tem estatura mediana, ancas largas, seios fartos e uma cabeleira negra revolta. Sentada no colo de seu cliente preferido, um marinheiro baixo e gordo que corria uma das mãos pelo meio de suas coxas, enquanto a outra mão percorria os seios, Claudete jogava sensualmente a cabeça para trás, numa sonora gargalhada.

Decidida, ela puxa o marinheiro pela mão e o leva até o infecto quarto dos fundos. Sem querer esperar mais, o homem a empurra contra a parede e começa a arrancar o vestido vermelho de Claudete, enquanto crava os dentes no seu pescoço. Soltando um gemido, ela esquece a vida miserável
naquele pulgueiro imundo. Amanhã ela terá de rodar a bolsinha de novo, pelas ruelas que circundam o porto. Mas agora, "a noite é uma criança", pensa ela, enquanto um arrepio de prazer percorre seu corpo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

O Ser e o Viver (Tiago Nascimento)

Viver é isso

Partir e chegar

Encontrar e deixar

Sentir saudade, fome, medo e frio

 

Viver é pensar

Desenhar um futuro

Planejar

Construir castelos na areia do mar

 

Viver é preciso

Sentir pena também

E amar, e sorrir, e ficar

Ser o que faz alguém sonhar

Ser o que faz alguém deixar de chorar

Ser.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

REVOLVIDA (Fred Paiva)

 
Por que
você bate no portão
sem camisa - sem noção -
com pretextos de ver a menina?

Atrapalha minha cerveja
meu domingo calmo,
de família,
pra te fazer sala.

Fico preocupada.

Você pra lá e pra cá com a criança,
falando merda,
na loucura que te fez vir aqui
de bicicleta...

Se toca.
Vaza.
Se boicota.
Me esquece.
Desfalece.
E me deixa.

Foi difícil
mas te esqueci,
você esteve aqui no meu peito
apunhalado por muitos meses
mais de ano
me danando
e enchendo a vida de vazios,
lacunas, lapsos de memória
tijolos assentados de ressentimento.

Sei que não é culpa sua,
não somente sua.
Me levei,
me deixei levar.
Foda-se,
você passou e eu fiquei
retornei à tona.

Ainda levo umas pauladas
às vezes,
mas já não é por ti,
é pelo resto de lama que me deixei afundar.

Vai melhorar,
vou passar.
E você não nunca vai mais fazer falta por aqui.
Então vai.

E para de me perturbar.



Fred Paiva