segunda-feira, 25 de março de 2013

Paz e amor (Inacio Carreira)

 Tendo mandado à multidão que se assentasse sobre a relva, tomou os cinco pães e os dois peixes e, erguendo os olhos ao céu, deu graças e, partindo os pães, entregou-os aos discípulos, e os discípulos entregaram-nos à multidão.




Mateus 14:19



 Este é seu sonho de consumo: multiplicar pães e peixes. Dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede. Ainda que não pense em termos bíblicos, mas reais, humanos. Movido pela compaixão, às vezes ele era mal interpretado. Pagar um prato de comida àquela mulher com cara de fome? Comprar um sanduíche para o jovem que, aparentemente drogado, pedia dinheiro e dizia estar com larica?


Não, ele não vivia para os outros, embrenhava-se no trabalho e amealhava alguma reserva financeira. Que, sozinho, não lhe servia de muita coisa. Não era dado a festas, bebidas, mulheres. Prezava a família, a amizade, o calor humano. Via nas pessoas como Madre Teresa de Calcutá, Gandhi, Martin Luther King, Nelson Mandela – e tantas outras – exemplos a serem seguidos. Lista à qual, recentemente, juntara o nome de Joaquim Barbosa, ministro do Supremo Tribunal Federal, relator do julgamento do chamado Mensalão, apontado nas redes sociais como futuro presidente do Brasil (embora assolado por dores crônicas na região lombar, o ministro não se deixava abater e continuava sua sanha de Cavaleiro da Justiça. Solitário, infelizmente).


Embora não desprezasse, que isto não fazia o seu feitio, era contra os apresentadores de televisão, elevados ao patamar de deuses, ou semideuses, ainda mais quando usavam do prestígio para doar utensílios e gêneros, bens e serviços aos menos favorecidos pela sorte, tendo como troco a permanência nos programas dominicais, ou em outros horários nobres. Alguns se aventuravam a cargos políticos, às vezes com sucesso na votação, mas, com evidente insucesso na vida pública...


Também os jogadores de futebol e outras modalidades... Embora no século 21, a plebe praticava costumes que remontam à Grécia Clássica e suas Olimpíadas, quando os vencedores ganhavam, em praça pública, estátua e culto. Sim, semideuses. Os nossos são diferentes? Alguns desses (poucos, ainda bem) extrapolam esses poderes e vão até a atribuição da morte, seja por acidentes de trânsito, armas de fogo ou outros instrumentos!


Inspirado por tantos movimentos pró e contra tudo, tanta sede de verdade, tanta busca de compensação financeira por danos sofridos, armou-se de coragem e, vestindo branco da cabeça aos pés saiu caminhando no meio da avenida principal de sua cidade, de porte médio, trânsito privilegiando os apaniguados e seus importados... A cena remetia ao filme Forrest Gump, o Contador de Histórias. Lembram? Foi juntando gente, gente...


Se os primeiros sentiam-se ameaçados pelos veículos, a multidão ocupou todo o espaço da via pública, a massa caminhava e perguntava-se o porquê daquilo, quem era aquela figura alva, as pessoas queriam saber o que fazia aquela figura branca caminhando contra a corrente de trânsito (que agora se colocava à margem da pista), buzinas chamando a atenção para tentar tirá-lo do caminho. Não podiam deixá-lo sozinho: pensavam ser um protesto contra o uso abusivo da mata ciliar, a invasão de escorpiões em Varginha (que antes fora famosa pela invasão de ETs – eita cidade mais invadida), a falta de delegacias especiais para mulheres, para crianças, para idosos, para portadores de necessidades especiais, para pessoas com síndrome de pânico...


Era bonito de ver tanta união. Não foi isso que Gandhi fez, na Índia, com sua Resistência Pacífica contra a dominação inglesa, em 1947? Martin Luther King, com seu famoso discurso I have a dream, contra a discriminação racial, em Washington D.C., em 1963? Embora Nelson Mandela contrarie os dois exemplos, sendo braço forte na luta armada contra o apartheid, na África do Sul, presidiu essa nação de 1994 a 1999, não sem antes receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1993.


Dividir pães e peixes. Dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede. Ainda que não pensasse em termos bíblicos, mas reais, humanos. Movido pela compaixão, às vezes ele era mal interpretado. Este é seu sonho de consumo: assim como tantos outros, ele tem um sonho. Ver o mundo todo de mãos dadas, saber-se parte de uma congregação de irmãos, sentar na relva para comer pão e peixe, dividir a água, saborear o ar da manhã, a brisa do final do dia, a alegria de sentir-se vivo após mais uma jornada. Vivo e produtivo, produtivo e participante... tentando fazer história, querendo mudar a história.


 “...somos todos iguais, braços dados ou não” foi o que martelou em sua mente quando, percebendo um ardor no peito, olhou e viu o sangue tingindo sua roupa, sentiu sua vida esvaindo-se, chocou-se contra a aridez do asfalto.

sábado, 23 de março de 2013

Nascemos ou nos tornamos humanos? (Patrícia Grah)

 meninas1.jpg


Foi esta a questão que, no trânsito, levantei outro dia analisando o comportamento de um “humano” à minha frente, o qual irei narrar resumidamente:


Estávamos em uma rotatória. Em um carro, meu noivo e eu, a nossa frente um segundo carro e frente à este uma moto. Sentido contrário, um outro veículo surge muito rapidamente e  corta a frente da moto, que estava na preferência de transitar. Por muito pouco não bate e sabe-se lá Deus que tragédia não teria acontecido se analisada a velocidade do tal carro.


O motociclista, obviamente muito nervoso e assustado com o acontecido, resmungou alguma coisa e buzinou para aquele ser “humano” que quase acabou com seu dia, sua moto e talvez até... Enfim! Sendo assim, o motorista do carro que além de ter feito uma baita “cagada”, parou, desceu e partiu para cima do homem da moto que, por sorte foi mais ágil e conseguiu sair correndo pelo acostamento. Então aquele “humano” estressado embarcou e saiu queimando, cortando todos pelo acostamento atrás do homem da moto e até hoje fico com medo de imaginar o fim desta história...


Agora volto à questão: Nascemos ou nos tornamos humanos?


Muitas são as teorias e muitos osestudiosos que estudaram e defenderam – e defendem - seus pontos de vista perante este aspecto. Confesso que estudei, na época da faculdade, algumas delas, as quais não vem ao caso discutir aqui, mas mesmo concordando com algumas que contradizem a minha conclusão, só posso acreditar que “- Nos tornamos humanos!”. Porém, algumas pessoas, independente da cultura, nível social ou crença, parecem nuncaconseguir chegar à este estágio da vida (se tornar um verdadeiro HUMANO), se comportando como animais selvagens que não vivem, apenas lutam pela sobrevivência, não se importando com o próximo e não trabalhando o seu interior para serem alguém melhor!


Sei que, felizmente, a grande maioria das pessoas que irão ler este texto, são pessoas bastante cultas e sensatas, portanto, jamais agiriam como aquele homem (que nem sequer quis refletir sobre o fato de o errado ser ele próprio, nem pensar que o cidadão da moto deve ter uma família a qual poderia estar vindo do trabalho que a sustenta e que este, quem sabe se tratava de uma pessoa de bem). Mas infelizmente, algumas destas pessoas fariam o mesmo, pois sabemos que aquele acontecimento é somente um pequenino número no percentual de tragédias causadas por falta de tolerância em nosso dia a dia, por pessoas que agem no calor da hora, sem raciocinar, considerando apenas a emoção, e não a razão– infelizmente!


Que nós todos, por mais que nos consideramos pessoas de bem, paremos de vez em quando, especialmente “no calor da hora” para refletir sobre quem somos, e quem queremos ser! Sendo assim sejamos mais HUMANOS, respeitando o próximo, respirando fundo quando algumas situações fugirem do controle e nos fizerem perder o norte, olhando por outro prisma e não apenas pelo nosso, tratando nosso semelhante como gostaríamos de ser tratados.

terça-feira, 19 de março de 2013

"Causos" de vovós (Vana Comissoli)

vovó           


         Depois do AVC, todo mundo a tratava como se daí a 2 minutos ela fosse se esfarelar deixando na cadeira apenas um pozinho parecido com pó de cupim: nunca se vê o bicho, mas se sabe que está por perto. Isso a incomodava uma barbaridade. Era bonito ver como os netos e bisnetos viam vê-la cheios de olhos doces e lembrancinhas compradas no “ligeirão”, entre uma aula e um namorico, mas a chateava também. Não tinha sido sua intenção sobreviver ao piripaque do coração.Só em lembrar da mãe anos a fio em cima de uma cama, já tirava toda a graça de viver, aquilo não foi viver, foi se tornar um peso do cão, por mais amor que houvesse. Reconhecia galhardamente: Velho cansa os jovens, ou meio jovens, que precisam saborear a vida antes de se sentarem ad eternum numa cadeira de rodas que lhe deixava a bunda quadrada.


          Só sentia alguma alegria verdadeira quando a neta emprestada vinha visita-la e a animava com histórias sem nenhuma descrição de doenças e cuidados. Era já entrada nos 40 anos e não tinha freios na língua. Sabia fazer rir e, por algumas poucas horas, Vovó Matilde deixava de sentir o impedimento do corpo.


           Dorotéia também apreciava suas histórias dos tempos de casada com um homem de fora da cidadezinha. Vindo da capital grande, cheio de malícia e picardia nada tinha dos pudores enraizados da gente da roça que ainda era a massa do povo da cidade, mentalidade pequena e cheia de preconceitos, onde alguns assuntos a gente não fala em público. Os tabus eram o sexo, a sacanagem de algum filho, a bebedeira escondida e a surra que algum marido deu na mulher por razão nenhuma, ou a mais escusa de todas..


            O marido de vovó chegara ali sem eira nem beira, desconhecido total, de olhos negros no mar de olhos azuis que compunham o local, cabelos mais escuros ainda e crespos. De longe aparecia em meio às cabeleiras que iam do muito loiro ao um pouco menos. Pior, não entendia uma palavra de alemão que, embora no Brasil, era a linguagem corrente dessas bandas. Mas era alegre, fanfarrão mesmo e conquistou a todos com sua fala alta, seus gestos largos e um palavrão sempre na ponta da língua. É bem certo que as mulheres o olhavam de soslaio, entre risinhos nervosos de quem quer tocar, mas não pode. Os homens o aceitaram por pura inveja, quem sabe estando perto poderiam aprender um pouco de laço solto.


            Damastor foi se fazendo na cidade, trouxera conhecimento de marcenaria e logo era dono da única fábrica de móveis do local. Era exímio artesão do estilo chipandelle, coisa de moda lá das décadas 40, 50 do século passado.


            A história dele nunca ninguém soube ao certo, mas vovó confidenciava que tinha deixado mulher e um bando de filhos lá na São Paulo. Enjoara da esposa miudeira que só sabia reclamar e exigir exclusividade, coisa que não era de seu agrado Saíra um dia para comprar cigarros e se perdera no mundão até chegar nesta quase vila incrustrada nas terras do sul. Voltaria apenas 15 anos depois, mas isso é outro “causo”.


            Enrabichou-se pelos olhos de cristal de Matilde, com seu corpão de colona, fartos seios e cabeleira que mais parecia o penacho dourado do trigo. Para facilitar as coisas, ela, a contra marcha de seu tempo, tinha casado e se separado, era quase uma mulher sem honra, no mexerico das vizinhas, embora nenhum dedo pudesse se levantar em acusação da vida simples, metódica e embaixo da asa da mãe que ela levava.


            A via passar na rua, em direção ao armazém, ou a feirinha dos colonos: a saia rodada e florida rodando no vento frio, as faces avermelhadas pelo Minuano sem compaixão.


            Foi ficando tão encanzinado que logo deu um jeito de fazer amizade com o irmão dela e mais rápido ainda se sentava ao lado do fogão à lenha onde a chapa assava pinhões recém-colhidos. Aconchego que só o povo da serra conhece na intimidade e sabe a deliciosa ternura quente que contém.


            Damastor esticava o olho para a moça que nem sequer parecia enxerga-lo. Tentava tocar sua mão na hora de pegar uma rapadura, ou fatia de bolo do preto estendido por ela. Numa dessas derramou a travessa toda de pipoca doce e caiu na risada enquanto os demais ficavam paralisados. Comida fora é pecado.


            Fez a corte como nunca, até que com a ajuda do irmão de Matilde, dobrou-a e se casaram.Na verdade foram morar juntos, uma vez que não havia divórcio e ele era casadinho da silva.


            Tão logo a paixão aplacada, o velho Damastor apareceu e logo outros rabos de saia o interessaram. Matilde conhecia a vida, essas coisas acontecem e nem se deu ao trabalho de reclamar. Além do que isso não o impedia de comparecer. E como comparecia!


            ─ Eu não sabia o que era realmente sexo até conhecê-lo. Para mim e o que me contavam as amigas era uma coisa sem graça que quando estava começando a ficar bom, acabava. Os machos gozavam e a gente ficava ali, se retorcendo. É a sina, o dever da mulher e a gente tolerava. Mas Damastor não. Era safado, passava a mão nos seios e até nas partes da gente. Levantava labaredas e, mesmo sabendo que era um sem vergonha, não dava para abrir mão. A vida foi indo assim. Eu sabia e não sabia. Estava resolvida a questão.


            Aconteceu de um dia não poder mais fazer de conta. O desgraçado, toda tarde depois do almoço, esperava o marido de minha vizinha de quintal sair para o trabalho e se enfiava na cama dela. Nós éramos amigas, eu sabia que ela devia estar satisfeita como nunca antes, não me importava de repartir.


            Um dia, o marido, acho que desconfiado de tanto que a mulher se agitava depois do almoço, de tanto que cantarolava no final a tarde como nunca havia feito, voltou num repente, mal tinha passado 15 minutos.


         Damastor ouviu a chave na porta, se escafedeu pela janela, se enfiando no quarto, trancado á chave. Dei-me por conta do que acontecia quando ouvi o griteiro lá fora, tiro pro ar e o Matias prometendo vingança fatal enquanto a mulher, aos prantos, negava tudo embora com a cabeleira desgrenhada e abotoando a blusa esgarçada.


            Matias se vingou. Damastor trouxera um chapéu de feltro inglês, todo chique, era a única coisa que prestava quando chegou nestas bandas. Seu grande orgulho.


            O vizinho chegou no meio da rua, deu mais uns tiros e gritou bem alto:


            ─ Quero ver tu vir buscar o filho da puta do chapéu, seu negro filho da puta! ─ alar filho da puta em voz alta era crime consagrado.


            E jogou o chapéu que ficara sobre a mesa na pressa da saída de escape, em cima do poste da esquina.


            ─ Se tu vier buscar, desgraçado, eu tô de olho e te furo à bala. ─ Apelou para o gaudério. ─ Índio cabotino! ─ Pior ofensa. Além de traíra, era gentinha da terra.


            Foi uma vingança exemplar ─ continuou Matilde ─ Damastor não tinha coragem de tirar o chapéu de lá e todos os dias o via a balançar ,cai não cai, e nunca caindo. Acho que levou mais de ano para a chuva e o sol esturricarem o coitado e ele se sumir. Antes disso ficou russo e desbeiçado.


           Doroteia riu de se torcer. Não contou para vovó, mas era bem o que gostaria de ter acontecido com seu próprio marido com sua mania de achar tudo que é mulher que se atravessasse, uma coitadinha que precisava salvar. Essa desmascarada, ela não faria com o sobrinho preferido da vovó, ele poderia ser achincalhado, mas ela não merecia a desilusão. Se vingou por tabela.


         Veio o chá com bolinhos fritos, a noite caindo devagarinho, mas a conversa parecia nunca cansar Matilde, pelo contrário, a revigorava e contava as histórias como quem faz crochê: um ponto enlaçando o outro.


     Doroteia também não se cansava.Com vovó aprendia a ter paciência, entender o marido, lamentar um pouco em voz alta sua angústia de traída, fazendo de conta que era compaixão pela vida de vovó enquanto essa ria a bom rir e de tudo tirava partido para viver sentada na cadeira de rodas.


           ─ Então o bom foi a cama vovó? Devia ser uma coisa muito inusitada.


            ─ Se foi! Eu contava para as amigas e elas ficavam babando. Os homens daqui era só vir por cima, corcovear e cair fora. Dava até pena por que todos morreriam virgens de prazer: machos e fêmeas. Tu sabes que até me comer por trás ele queria? Mas eu não deixei, tinha ouvido dizer que doia.


     ─ Mesmo, vovó? Pois foi uma pena, se a gente relaxar não dói nada e tem um prazer danado. Não doce para todo dia, mas de vez em quando a gente come e se lambuza.


        ─ Não me diz uma coisa dessas agora que o Damastor já morreu! Se a gente tivesse conversado antes... Ele não me escapava e não seria essa cadeira a machucar meu traseiro, mas uma boa saudades de meu homem.


       ─ Vovó!!!!


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domingo, 17 de março de 2013

Salomão, o homem mais sábio do mundo (Fernando Bastos)


 “Tomou o sacerdote Sadoc no tabernáculo o chifre de óleo e ungiu com ele Salomão. A trombeta soou e todo o povo pôs-se a gritar: Viva o rei Salomão!” (I Reis 1,39)


 Século 10 a.C.


 O velho rei jazia febril em seu leito, sob o olhar atento e piedoso de Abisag, uma virgem de dezessete anos que foi escolhida pela beleza e modéstia para lhe fazer companhia e aquecê-lo. Mas o sangue real havia enfraquecido, a carne mole não dava sinal de vida, de modo que ele não a tocou nenhuma vez.


Sabendo que não viveria muito tempo, o rei Davi mandou chamar seu filho Salomão, fez um sinal com a trêmula mão para se aproximar e disse,


- Seja corajoso: porte-se como homem. Guarda os preceitos do Senhor, seu Deus; anda em seus caminhos, observa suas leis, seus mandamentos, seus preceitos e seus ensinamentos, tais como estão escritos na lei de Moisés. Desse modo será bem sucedido em tudo o que fizer e em tudo o que empreender...


Salomão perguntou,


- Que meu pai quer que eu faça com Joab, filho de Sarvia? O rei moribundo respondeu,


- Não deixe que seus cabelos brancos desçam em paz à mansão dos mortos. Quanto a Semei, filho de Gera, você bem sabe como ele me insultou quando fui a Maanaim. Que ele tenha o mesmo fim de Joab. – O gosto pela vingança e crueldade, que esteve presente ao longo da vida de Davi, logo após ter perdido o amado Jônatas e ser coroado rei, não o abandonaria nem no leito de morte.


- Tem minha palavra, meu pai. Assim procederei - garantiu Salomão.


 Dias após a essa conversa, Davi foi para o sheol, se juntar aos seus pais. O sepultamento foi acompanhado por milhares de judeus, que se cobriam de cinzas em sinal de luto e batiam com as mãos sobre a cabeça, como doidos em um manicômio.


Salomão foi empossado novo rei de Israel. Já de início, mostrou sua real personalidade, matando o próprio irmão Adonias. Parece que Salomão temia que o irmão, mais para frente, engendrasse alguma manobra para subir ao  trono, e resolveu tirá-lo do caminho. De fato, quando sua mãe Betsabeia, a pedido de Adonias, veio falar com o rei, para que este concedesse ao irmão a mulher Sunamita, Salomão entrou em estado de fúria e respondeu ironicamente,


- Por que deseja que Abisag, a sunamita, seja dada a Adonias? Pede também para ele o reino, já que é meu irmão primogênito, assim como para o sacerdote Abiatar e para Joab, filho de Sarvia. E, fulminando o olhar em direção a sua mãe, concluiu - Que Deus me açoite com todo o rigor, se Adonias não pagar estas palavras com a própria vida!


- Oh não, filho, - Implorou a mãe do rei -, Não suje suas mãos com o sangue de Adonias, ele é seu irmão. - Suas lágrimas não me comovem, mulher, rosnou entre os dentes Salomão. - Adonias será morto hoje mesmo.


 Seguindo as ordens do rei, Banaías, comandante dos cereteus e feleteus, cravou um punhal no peito de Adonias, que agonizou mais alguns minutos antes de morrer. A mando de Salomão, Banaías, o que hoje chamaríamos de pistoleiro de aluguel, cometeria mais dois assassinatos: no tabernáculo, encontrou Joab, que havia assassinado dois homens de confiança de Davi – Abner e Amasa, ambos generais de exército -  escondido e o trespassou com sua espada.  Três anos depois foi a vez de Semei, morto por ter feito mal e insultado Davi, antigo rei de Israel.


 Com estes três assassinatos, o poder se consolida nas mãos de Salomão. Esse início duro de governar não foi obstáculo para receber o carinho do Senhor, que em uma noite, lhe apareceu em sonhos e prometeu lhe dar o que quisesse. O jovem rei respondeu,


- Não passo de um adolescente e ainda não sei como me conduzir. Dê, portanto, ao seu servo um coração sábio, capaz de julgar o povo e discernir entre o bem e o mal; pois sem isso, quem poderia julgar o povo de Israel, tão numeroso?  


O Senhor se alegrou com a humildade do jovem rei e disse,


- Não me pediu nem ouro, nem vida longa, nem morte aos teus adversários, mas somente inteligência para julgar seu reino com justiça, de modo que atenderei seu pedido: dou-lhe um coração tão sábio e inteligente, como nunca houve outro igual antes de você e nem haverá depois. Além disso, lhe darei também o que não me pediu: ouro e glória, de tal modo que não haverá quem lhe seja semelhante entre os reis durante toda a tua vida. E, se andar em meus caminhos e observar os meus preceitos e mandamentos como o fez Davi, teu pai, prolongarei a tua vida por muitos anos.


 Na sequência dos atos do rei, o que percebemos é um acúmulo de erros, violência contra os fracos, castigos de escravos e superstições. Mas Javé não era onisciente? Não teria previsto esses deslizes de seu protegido? Por que mesmo assim colocou no trono um fratricida? A essa altura, depois de ter castigado a Humanidade com um dilúvio, por não ter previsto que seus filhos cometeriam iniquidades; pedido o sangue do filho de Abraão, porque não tinha certeza se o patriarca lhe era fiel, e tantos outros exemplos claros de ausência de clarividência, fica difícil ao mais seguro devoto de Javé, concordar que esse deus tinha super poderes, a ponto de prever o futuro. Não tinha.


 Insaciável, Salomão montou um harém sem precedentes na história. Teve setecentas princesas como esposas, além de trezentas concubinas. Tirando os exageros, tão comum ao povo do Oriente - sejamos honestos: o número foi superfaturado para exaltar o poder de Deus para com um de seus eleitos – ele, sendo rei, teve provavelmente muitas mulheres, muitas das quais eram moabitas, amonitas, edomitas, e de outras terras estrangeiras, que o senhor Javé tinha severamente admoestado para que os israelitas não tivessem relações sexuais com elas, para que não se corrompessem indo adorar seus deuses. Salomão não se importou com a proibição e desejou para si aquelas mulheres de corpos perfeitos e olhos que possuíam ímãs.


Impelido pelas suas esposas, o velho Salomão prestou culto a Astarte, deusa dos sidônios, e ao deus Melcom dos amonitas. O rei ainda mandou construir altares para Camos, divindade de Moab e a Moloc, um deus amonita, que apreciava o sacrifício de bebezinhos e meninas virgens.


Enquanto Salomão derrubava seus oponentes a golpe de espada, inclusive irmãos, e mandava açoitar os estrangeiros que trabalhavam em seus palácios e templos, o Senhor nada falou; talvez achasse isso normal. Mas só foi cometer o sacrilégio de desposar estrangeiras e adorar deuses vizinhos, para que a ira de Javé se manifestasse com a violência de um leão faminto,


- Você me traiu, disse Javé, ao agora decrépito rei. De sorte que por não ter respeitado minhas leis e minha aliança, tomarei de volta o trono e darei a seu servo.


 Salomão reinou por quarenta anos, em Jerusalém, e foi sepultado na cidade de Davi. Roboão, seu filho, ascendeu ao trono em seu lugar. De nada adiantou o Senhor presentear Salomão com sabedoria e fazê-lo o mais sábios entre todos.


Ora, sabemos que seu reinado foi repleto de atos criminosos, tornou-se um obcecado pela riqueza, a ponto de construir imponentes palácios. Para dar conta das construções que se erguiam, submeteu a trabalho escravo todos os estrangeiros. E só perdeu em maldade para o filho Roboão, que o substituiu. Jeroboão foi ter com o novo rei e disse,


- Salomão, seu pai, foi muito duro conosco. Alivia o jugo que seu pai nos impôs, e seremos seus servos.


 Depois de consultar seus sequazes, Roboão declarou, Meu pai os impôs um jugo pesado? Pois eu o tornarei ainda mais pesado. Meu pai os castigou com açoites? Pois eu os castigarei com escorpiões.


 A vida dos israelitas continuaria um tormento por mais um longo tempo. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

A Casa dos Sonhos (Sônia Pillon)

Se há algo em que todos concordam, é que as aspirações de vida variam de uma pessoa para outra. Consequentemente, a Casa dos Sonhos de cada um, também... Há os que se deslumbrem com mansões de bilionários, com os castelos e palácios espalhados pelo globo, onde não faltam conforto, luxo e ostentação. Dessas moradas, que são amplamente mostradas em revistas sobre a realeza, jet set e high society pelo mundo afora, com rostos sorridentes, estirados languidamente em um sofá macio, ou em uma cadeira reclinável, à beira da piscina... 
Cercados de privilégios que muitos adorariam usufruir, essas criaturas que já nasceram em berço de ouro, ou “enricaram”, pelos mais diversos caminhos, sem dúvida são invejadas por muita gente! Aparentemente, vivem felizes onde moram e nada lhes falta... Vidas de contos de fadas, bem ao estilo “Disney Movies”, aqueles filmes açucarados onde o “mocinho” e a “mocinha” são integralmente bons, enquanto o “vilão” é um desalmado, o mal em pessoa...
Mas nem todos têm a mesma ótica quando o assunto é a morada ideal... Têm aqueles que buscam no conforto e no isolamento a sua paz, a sua satisfação interior. Um sítio distante, onde não faltam árvores, ar puro, animais, uma boa plantação, a fartura de um pomar à disposição e, para completar, uma vista digna de um pintor impressionista... Ou uma casa à beira-mar, com a possibilidade de se banhar e tomar sol todos os dias (sempre que o bom tempo permitir, é claro!), comprar frutos do mar direto dos pescadores e ter a possibilidade de participar de luaus e passeios revigorantes na beira da praia...
A Casa dos Sonhos também pode ser um trailer, uma barraca bem equipada, para os mochileiros e aventureiros de plantão... Ou ainda um barco para conhecer mares nunca antes navegados, inspirados na audácia da Família Schürmann., com seus 20 anos de aventuras pelos domínios de Netuno... Para eles, o segredo de uma vida feliz é poder sonhar, para transformar esses sonhos em realidade.
Para cada cabeça, uma sentença. Para cada um, uma opção de vida... Isso para os que lutam pelo que querem, que fique bem claro! Porque há os que abrem mão de seus anseios pensando na “estabilidade”, apesar de vivermos no mais instável dos mundos...
Não importa se a Casa dos Sonhos é um lindo palácio, ou uma modesta construção de madeira... O que importa é que dentro dessa edificação habitem as pessoas que queremos ter ao nosso lado... “...Na rua, na chuva, na fazenda, ou numa casinha de sapê”, como diria Tim Maia... Só assim, é possível se munir de força suficiente para matar um leão por dia e, ainda assim, se sentir gratificado e, até, feliz...


Sônia Pillon

quinta-feira, 14 de março de 2013

Beijo (Marcio E. Ochner)

A todo tempo
Em todo espaço
Algo que prende-se a pele
Que enlaça-se
Anda de cá pra lá
de sabor agradável
Florescência corporal
Que nos priva do calor visceral
Que nos freia ao ar
Como beija-flor
Que deflora
Que beija e permanece
Consciência íntima
Casualidade interior.

Marcio E. Ochner

domingo, 10 de março de 2013

Torcedor Camaleão (Ítalo Puccini)

            Aprendi a torcer por um time por influência de meu pai e de meu avô. Por dois times, na verdade. Pelo Flamengo e pelo Caxias, este de Joinville, Bicampeão Estadual em 1954/55. Time campeão no qual meu avô, Vilmar Puccini, foi goleiro por dez anos. Eu e pai até escrevemos livro contando a vida vitoriosa do vô (84 anos recém-completados), no futebol e no trabalho de longos anos na Tigre S/A – publicamos “A trajetória de Puccini” em março de 2009 –, afinal, naquela época jogador de futebol também trabalhava ‘normalmente’ 8 horas por dia em uma empresa. Treinos eram artigos de luxo. Não existia essa mordomia de hoje, em que os jogadores treinam a semana inteira para errar o mais elementar dos passes durante o jogo. Enfim.

            São dois modos diferentes de torcer. O Flamengo joga todo ano, o ano todo. Tem mídia excessiva e qualquer espirro vira epidemia. Já o Caxias não joga todo ano, muito menos o ano todo, quando joga. Tem pouca mídia na cidade de Joinville, e nem um caso de Gripe A acho que faz virar notícia. O Flamengo eu pouco assisto ao vivo. Mas estive no jogo mais importante dos últimos anos para o clube, a final do Brasileirão de 2009, no Maracanã: o jogo do hexa. Já o Caxias, quase sempre que joga, eu assisto no Ernestão. Dois estádios muito diferentes. Dois times muito diferentes. O torcer, da mesma forma, diferente.

            O fato é que gosto muito de estar em uma arquibancada acompanhando um jogo. Agrada-me tanto que este ano, morando em Joinville, tornei-me sócio do Joinville Esporte Clube para acompanhar os jogos da Série B ‘in loco’. Não tenho apreço nenhum pelo JEC, assim como não tenho desgosto. Aproveito o lugar do time na segunda divisão para ver de perto times rodados do país. E para sentir novamente o que é estar em um estádio. Baita sensação!

            E não há nada mais gostoso do que não torcer para nenhum dos dois times aos quais você está assistindo. E ainda por cima observar as reações dos torcedores – estes, sim – apaixonados pelo clube da cidade. Uma diversão e tanto. Sem contar as ‘peças’ com as quais você se depara numa arquibancada: o velhinho sem dentes – mas que consegue como poucos gritar, a favor ou contra; a criança com menos de dez anos que já sabe a escalação do time e reconhece cada jogador; o senhor com o fone nos ouvidos, que a cada cinco minutos informa o tempo do jogo a quem está por perto; e o tio da bebida, que berra em alto e bom som “cerveja só pra mim. Quem quer água e refri?”. E eu sou bom nisso de interpretar, futebolisticamente falando: sei falar bem do time “Tá jogando bonito hoje, hein? Que orgulho!”, assim como sei xingar com propriedade “Que time de bosta mesmo! Levanta daí, seu vadio!”. Ainda recebo abraços entusiasmados no momento de um gol, nos dias de ‘casa cheia’.

            Aprendi, nisso de torcer, a gostar de times que buscam o ataque, que criam oportunidades de gol, que envolvem o torcedor na esperança do grito de gol. Torço sempre por jogos em que os times se predisponham a isso. Sou muito camaleão. (Aliás, quem não é? Isso de secar o rival torna qualquer torcedor muito camaleão. Troca de camisa de time semanalmente. Mas não admite). Eu torço pra saírem muitos gols, dos dois lados, sendo bastante discreto, é claro. Aprendi também que a coisa mais importante numa partida de futebol é o gol. Tanto que é declarado vencedor o time que mais vezes faz gol, não importando o desempenho em si dentro de campo. Infelizmente, o futebol ainda permite a um time abdicar do ataque e, ainda assim, vencer com um ‘gol espírita’, um contra-ataque, uma única chance em 90 minutos. Questão de oportunismo. O mundo é oportunista, etcetal. Não sei se um dia me acostumarei com isto. Até lá, permanecerei no meu método: torcer um pouco pr’um time, um pouco pr’outro.

 

ítalo. (também publicada aqui).

quarta-feira, 6 de março de 2013

Escapadas (Marcelo Lamas)

Acontece vez por outra do pessoal dizer que vai pra um lado e ir pro outro.
Em muitos casos, não se caracteriza um adultério propriamente dito, tratando-se apenas de uma tentativa de evitar rusgas entre o casal.
Com o Rodrigão foi assim. Como a namorada dele morava no RS, era hábito um telefonema por volta das 22h, antes de dormir. Sabedores disso, os parceiros dele passaram lá no apartamento mais tarde e o convenceram a ir numa balada em Joinville. Quando estavam na altura das arrozeiras de Guaramirim, o inesperado: o celular do Rodrigão tocou. Como ele estava no banco de trás, jogou-se no colo dos outros, deitando-se. Para um sujeito homem e hetero, esta situação não é muito agradável, mas o amor pela gaúcha falou mais alto. Estando ele na horizontal, sua voz sairia idêntica à do quarto. Se tivesse um cobertor no carro, seguramente ele teria jogado por cima, só para garantir a legitimidade do sono:
- Oi amor! (bocejo forçado)
- Tava dormindo querido?
- Sim! Tava vendo um filme e peguei no sono. (com voz sonolenta e bocejo forçado)
- E que filme estavas vendo?
Pausa
- Reféns. (bocejo forçado)
O Rodrigão esqueceu que a guria era cinéfila:
- Ué, amor! ? O ‘Reféns’ nem chegou no cinema!
Pausa
- Ahh! Acho que o nome era parecido com isso... já tinha começado quando liguei a tevê. (voz normal, com gagueira e esqueceu do bocejo forçado)
A ligação acabou normalmente, mas ele ficou apreensivo. Teria ela percebido algo estranho? Uma mulher com raiva é capaz de qualquer coisa.
Num outro caso, outra mentira. Tenho dois amigos cujas esposas têm
restrição que um saia com o outro. Ambas acham que o outro não é boa companhia. Mas uma não sabe que a outra tem o mesmo sentimento. O cara até pode sair com a galera, mas se “aquele um” estiver lá, vai ter DR depois.
Os dois comparsas tiveram uma ideia para poder tomar uma cervejinha juntos: criaram um amigo imaginário. E com o “Valdir” tá liberado, ele é ficha limpa.
Depois, eu descobri que o tal Valdir existe. É primo de terceiro grau de um deles. Só que o cara mora lá na Tifa da Pólvora e trabalha como representante comercial. Ele nunca está na cidade, não tem namorada conhecida e nem perfil nas redes sociais.
Por ora a mentira está colando.
A intuição está para elas, assim como a malandragem está para eles. Até nisso elas levam vantagem, pois a malandragem é possível aprender.


Marcelo Lamas, autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.
marcelolamas@globo.com

domingo, 3 de março de 2013

Herança da guerreira Tonha (Elianete Vieira)

Antonia nasceu em 18/01/1917 na cidade de Jacutinga/MG, mas foi registrada em 25/02, algo muito comum naquela época para os moradores do campo. Somente quando alguém da família ia até a cidade fazer alguma compra ou cumprir outra obrigação, os bebês recém-nascidos eram registrados. Nestes eventos, erros de registros ocorriam, pois nem sempre era o próprio pai que registrava seu filho e isso gerava até troca de sobrenomes, algo que contarei noutro dia. Antonia cresceu na roça, na enxada desde muito pequena, pois não fazia a menor ideia do que seria ler ou escrever. Assim como seus irmãos e primos, que também não sabiam. Eles brincavam até terem força para pegar na enxada e ajudar os pais na lavoura. Seus pais lavradores, deram aos seus filhos a melhor criação do mundo: honestos e muito trabalhadores, venceram na vida com as armas que tinham: braços fortes para o trabalho.Aos 13 anos, sua mãe morreu no parto do 7º filho e seu pai foi embora. Antonia então se viu sozinha para criar seus irmãos mais novos, incluindo uma irmã de três anos.

Conheceu seu prí­ncipe ainda criança. Viviam na mesma fazenda onde os pais de ambos trabalhavam. Cresceram e brincaram juntos. Brasilino, filho de italianos, não chegou num cavalo branco, mas juntos lutaram muito para mudar o rumo da vida, sempre em busca de melhoria para eles e os filhos.

Na roça nasceram, na roça se casaram, na roça criaram os filhos quando ainda pequenos. Tunica, como era chamada, contava que havia carpido pés de café até o final da luz do dia, naquele 25/09, caminhado quilômetros de volta para casa, e pouco depois de chegar, começou a sentir as dores do parto, nascendo uma bonequinha a quem batizou de "Erza", que só descobriu que seu nome de fato era Elza, em seu 1º dia de aula, aos sete anos.

Nascida e criada no mato, analfabeta e convivendo com lavradores italianos, possivelmente analfabetos também, Antonia não sabia a grafia e pronuncia correta de algumas palavras, nem sabia ela que falava italiano misturado ao português.

Mas uma coisa ela sempre teve forte dentro de si: - meus filhos estudarão e serão mais do que fui. - E assim fez. Quando chegou o momento dos filhos, cinco, estudarem, ela arrumou a mudança para a cidade, Espirito Santo do Pinhal, arranjou emprego na Votorantim e colocou os filhos na escola. De lavradora passou a operária, rapidamente aprendendo o novo ofício. Trabalhou até os 42 anos quando seu 6º filho, uma menina, nasceu morta.

Os filhos mais velhos dividiam o tempo entre a escola e a fábrica. A Elza, sua 4a filha, com 10 anos era a "dona de casa". Limpava, lavava e cozinhava para todos. Subia num caixote para alcançar a pia e fogão. Mas dava conta do recado. O irmão caçula teve mais sorte, pois teve mais tempo para brincar e estudar. Mas era mais rebelde e fugia da escola para brincar.

E assim, Antonia, analfabeta continuou, mas viu seus filhos aprenderem a ler e a escrever. Eles se diplomaram na 4a série primária, como era chamada na época essa primeira fase escolar. Mas ela já se sentia vencedora. Havia dado para seus filhos mais do que havia recebido de seus pais. Filhos operários e "com leitura".

Os 5 se casaram. Deram-lhe 17 netos que puderam estudar antes de começar a trabalhar. Com orgulho vó Tonha, como os netos a chamavam, viu suas primeiras netas se formarem na faculdade. Viu algumas netas se casarem. Viu os primeiros bisnetos nascerem.

Seu orgulho e realização eram gigantescos, porque sua meta havia sido superada pelos filhos que herdaram sua força e honestidade para o trabalho e multiplicaram seus feitos, dando-lhe mais conforto e estudos para seus filhos.

Tonha dizia aos filhos: 
- Eu não tive nada. O pouco que lhes dei é muito para mim. Vocês tem que dar o dobro para os filhos de vocês. E eles o dobro também para os filhos deles. Sempre o dobro.

Quando uma neta foi trabalhar no estrangeiro, ela estava doente e chegou a ser internada. Ela dizia ao médico e aos enfermeiros que ela precisava viver para ver a neta chegar do estrangeiro e contar sobre a neve que ela não fazia ideia de como seria.

A neta ao chegar dos EUA após passar o mês de janeiro em treinamento em pleno inverno de Boston, foi visitá-la com dezenas de fotos e muitas histórias, além de um filme. Nos dias 13 e 14 ela ouviu atentamente as histórias, olhou e comentou cada foto, com olhinhos brilhando de felicidade e admiração, pela neta que mais uma vez a tinha feito superar mais um limite com sua viagem ao "estrangeiro", como ela dizia.

Ao despedir da neta no final da tarde de domingo, a neta lhe disse que ia trabalhar em Curitiba mas voltaria no sábado para vê-la. Ela respondeu informando que aquela seria a última despedida, pois ela estava partindo e não estaria ali no próximo final de semana. E ela estava certa. No dia seguinte, 15/02/1993, Antonia durante o banho disse para a filha: - "Erza estou partindo." - Tombou sua cabeça e dormiu para sempre.


Elianete Vieira