quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Estava esperando por você (Sônia Pillon)





Hoje acordei com essa sensação estranha de paz. O sol de outono que entrou pela janela, sacudindo as cortinas, e o canto dos pássaros no cinamomo me fizeram muito bem. Pela primeira vez, depois de tantos anos, não senti aquela angústia cortante, aquele desânimo de ter que enfrentar mais um dia interminável, empurrada pela enfermeira nessa cadeira de rodas pelos frios corredores desse asilo “cinco estrelas”. Podem dizer o que quiserem, mas para mim esse lugar nunca passou de um depósito de velhos à espera da morte.

Dez anos!... Não dá para acreditar que o Ernesto morreu daquele jeito, de ataque cardíaco... Pensando bem, até que faz sentido, porque ele tinha um coração de ouro, mesmo. Todo mundo dizia isso. Eu é que era a megera! Só um homem como ele para aguentar o meu mau humor, o meu temperamento explosivo, a minha arrogância, durante quase 50 anos... Mas na época, aquela calma toda dele me irritava! Como eu fui cega e ingrata, por não saber retribuir a dedicação do amor da minha vida...


Só depois que ele morreu e que a nossa única filha me jogou aqui, e se apoderou de todos os meus bens, é que eu entendi o quanto ele me amava! Mas a culpada disso tudo sou eu mesma, que sempre ensinei à ela que o mais importante nessa vida era ter status e dinheiro. Deter o poder, acima de tudo! Estou pagando o preço da minha própria soberba.


No começo, até que a Carmem vinha aqui fazer o papel de filha prestimosa, mas foi só eu passar a procuração para ela tocar os negócios da empresa que as visitas começaram a rarear, até cessarem totalmente. Me deixou uma enfermeira particular e crédito para tudo o que precisasse aqui dentro. Quanta bondade!...


Desde que eu tive o derrame e fiquei condenada a não andar nunca mais, pouco tempo depois da viuvez, sempre amaldiçoei essa cadeira! Odiava ver essas minhas pernas atrofiadas e cobertas com esse cobertor xadrez. Era insuportável ver o olhar de compaixão das pessoas quando me viam. Quem diria, a poderosa e temida dona Gertrudes, entrevada para sempre! Com certeza muitos devem ter dito que era castigo, e deve ter sido mesmo.


Estranhamente, hoje toda a minha revolta parece ter perdido o sentido. O abandono, a minha paralisia irreversível, a solidão, nada disso parece mais importar. Pela primeira vez, desde que vim para cá, essas lágrimas não são de tristeza. Estou me sentindo tão feliz! Inexplicavelmente, sinto um alívio que vem do fundo da alma. Solto um longo suspiro e parece que toda a dor se dissipa.


- Bom dia, dona Gertrudes! Hora de levantar! Dormiu bem a noite?, perguntou a enfermeira, ao entrar subitamente no quarto, com sincera preocupação no olhar.


- Sim, Ângela, dormi muito bem, não senti dores nem tive pesadelos essa noite. Acordei com o sol e com os som dos passarinhos...


- A senhora está chorando?! O que aconteceu?...


- Está tudo bem. Eu estava me lembrando do meu velho. Esse mês fazem dez anos que ele me deixou. Ele era um homem muito bom...


- É, ouvi falar dele, sim. O pessoal aqui do ancionato diz que ele era um homem muito querido, até pelos empregados... Mas agora está na hora de tomar o seu remédio, dona Gertrudes. Isso. Agora vamos trocar esse fraldão e depois tirar esse camisolão... Daqui a pouco vão servir o café no refeitório.


- Ângela, hoje eu quero que você me coloque aquele vestido de veludo verde e arrume o meu cabelo. Quero ir bem arrumada para o café. E depois quero passear um pouco no jardim, aproveitar esse sol da manhã.


- Boa ideia, dona Gertrudes! Essa história de ficar trancada o tempo todo dentro desse quarto não estava certo! A partir de hoje, vamos sempre passear lá fora, a não ser que chova, é claro. Vai lhe fazer muito bem para a saúde. Eu sempre lhe disse isso, lembra?


- Quero o meu cabelo bem penteado. Assim. Agora me traz aquela necessaire ali. Estou precisando de uma base e de um batom suave. Isso mesmo. Obrigada. Não dá para fazer milagre com 80 anos nas costas, mas sempre ajuda...


- Ora, ora, a senhora está ótima! Vamos então que o café já está na mesa... Sorriso no rosto, isso mesmo...


- Quanta gente por aqui... A Filomena também?! Foi minha comadre... Éramos tão amigas, antes do meu casamento... Ela ainda deve estar magoada comigo...


- Ela tem Mal de Alzheimer, não reconhece mais  ninguém... Tem um filho que a visita toda a semana, mas ela fica sempre assim, com o olhar perdido...


- Que pena... Gostaria de conversar com ela, lembrar da nossa juventude... Olha, Ângela, tem cuca de banana com farofa, que eu adoro... Eu devia ter vindo mais vezes fazer as refeições com os outros... Teria me sentido menos só...


- Aproveite que o café de domingo é especial... Ué? Já terminou?...


- Sim... Agora pode me levar para o jardim, debaixo daquele cinamomo lá, perto do portão... Tem uma sombra gostosa, e assim posso ver as flores e respirar um pouco de ar puro...


- Pronto. Chegamos. Precisa de mais alguma coisa, dona Gertrudes?


- Sim. Tenho um pedido especial para você.Quero que me perdoe por ter sido sempre tão grosseira com você, Ângela. Você sempre foi muito dedicada e eu nunca agradeci por isso...


- O que é isso?... Eu entendo... Não se preocupe... Claro que eu desculpo, esqueça isso, dona Gerturdes... O importante é que a senhora está se sentindo bem e que a partir de hoje vai passear mais, ficar mais alegre...


- Eu sempre fui muito perfeccionista. Exigia demais de mim mesma e dos outros. Humilhava as pessoas que não eram da mesma classe social. Se pudesse voltar atrás... Ângela, será que você pode conseguir uma câmara para fotografar esse jardim? Está tão bonito...


- Claro, vou buscar o meu celular, já volto... Qualquer coisa, dê um grito para a Claudete, que está limpando o salão de visitas...


- Não se preocupe comigo, eu estou bem, Ângela... Vai... Hoje o céu está tão azul... Não tem nenhuma nuvem... E essas rosas vermelhas... Lindas!... As borboletas estão fazendo a festa... O gramado parece mais verde do que de costume. Ah, finalmente!... Meu amado!... Senti tanta saudade!... Estava esperando por você...




Texto produzido em 2 de agosto de 2010.

Sônia Pillon, jornalista e escritora
soniapillon@gmail.com

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Traços em letras sobre historias vivas (Adriana Niétzkar)

CRIO!
o inexistente
IGNORO!
o real


Fecho os olhos
para povoar meu mundo
ACREDITO!
eles não têm livre arbitrio
IGNORO
crescem sozinhos
minhas letras são apenas mais um traço
acima de linhas vivas
nasceram de mim
crescem em mim
terra que dá os nutrientes
que não comanda
o crescimento
e a morte...

Libertação (Sônia Pillon)

A vida é muito estranha, às vezes. Acho até que as pessoas esperavam que
eu chorasse,vestisse roupas escuras e me sentisse profundamente triste. Deus que me
perdoe, mas fazia tempo que não me sentia tão aliviada! Parece que tirei
um enorme peso das minhas costas! E pensar que eu quase não reparava
mais no pomar lindo dessa casa! A goiabeira está lotada.


Aquele cinamomo antes me parecia tão escuro, tão assustador, que me
dava arrepios!...Como é que eu não tinha reparado essas folhas tão verdes,
esse cheiro de mato molhado em volta?! E o pé de pitanga, que coisa mais
linda!... Como a natureza é sábia! Ah, como é bom fechar os olhos e ouvir
o ruído do vento e das folhas, e lembrar do colorido das flores rasteiras! E
as rosas do jardim? Hoje estou me sentindo com 20 anos de novo!...


Quantas vezes eu estive aqui, andando automaticamente por esse pomar,
reclamando que os passarinhos estavam comendo as frutas, a sujeira que
faziam por tudo... as folhas que caíam e eu precisava limpar... Sempre
ligada no piloto automático, como diz a minha filha... Sim, ela tem toda a
razão!... A minha vida era tão vazia de emoção que até a beleza desse lugar
passava despercebida para mim.


Mas hoje tudo parece diferente, porque meus olhos voltaram a enxergar
cores onde antes eu só via em preto e branco
Quantos passarinhos! Eles adoram as minhas frutas, que maravilha! Eu não
vou poder comer tudo, mesmo. Só assim eu sempre vou ser acordada pelos
passarinhos na janela...


Preciso trocar aqueles lençóis e esvaziar um lado do armário. Não faz
sentido mais guardar aquelas roupas. Melhor ainda, vou comprar uma
cama e um armário novos, e comprar roupas novas também! Vou dar uma
repaginada nesse visual, é isso que vou fazer!
Alô! É da agência de viagens? Quero reservar uma passagem para aquele
cruzeiro de final de ano pela costa brasileira. Sim, aquele que o Roberto
Carlos se apresenta. Ainda tem vaga? Sim, só para uma pessoa. Ótimo!
Obrigada! Tchau!
A vida é mesmo muito estranha, às vezes...



Texto originalmente produzido em fevereiro de 2008, e adaptado em agosto de
2010.

sábado, 18 de setembro de 2010

O Puxa-Saco (Marcelo Lamas)

Há tempo estou por publicar minha opinião sobre o comportamento do Puxa-Saco (PS). O risco é enorme, pois o PS tem uma grande virtude: a competência estraté­gica. Em todo batizado, casamento, show, encerramento, chá beneficente, jantar e velório, lá está ele ao lado da mesma pessoa.

Para identificar um PS, basta observar qualquer evento social. Ele estará próximo de alguém que tenha poder, status ou influência. O puxa-saquismo lateral, no mesmo nível, não existe.

O gaúcho Mario Quintana alertava: “sempre me senti isolado nessas reuniões sociais, o excesso de gente impede de ver as pessoas”.

Não se devem confundir as técnicas de um PS com a sintonia humana. Ela acontece quando duas pessoas se conhecem e percebem alguma afinidade, naturalmente. O PS cria a situação, premedita. É possível que odeie pei­xes, mas ao descobrir a afinidade do “alvo” com pescaria, compra equipamentos, estuda os tipos marinhos, consul­ta os entendidos e parte para o ataque.

O PS, quando vê a aproximação do seu alvo muda o tom da voz, interrompe uma conversa já iniciada e pode, até mesmo, sair de uma fisionomia fechada para um sor­riso aberto.

O alvo do PS, com o passar do tempo, percebe a necessidade química do dependente e passa a usufruir da espontaneidade, disponibilidade e voluntariedade. Daí se aplica o pensamento de Nélson Sargento: “Você finge que me ama e eu finjo que acredito”.

Até pensei em lançar o livro “100 maneiras de iden­tificar um Puxa-Saco”, mas lembrei que talvez fosse ne­cessário ter que puxar o saco de algum editor, para con­vencê-lo a acreditar no projeto. Então, peguei o rascunho e escondi no fundo do cofre que fica num lugar secreto. A chave reserva do cofre está com um amigo oculto. Se eu for sequestrado ou sumir do mapa, ele manda pra edi­tora.



[caption id="attachment_101" align="aligncenter" width="187" caption="http://www.christiangump.net/corporativo/puxa_saco.jpg"][/caption]

Marcelo Lamas
, autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”. marcelolamas@globo.com

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

eu sempre quis escrever um poema com sapatos (Ítalo Puccini)

eu sempre quis escrever um poema com sapatos.
vesti-los
e andar por aí a amaciá-los,
como que fazendo brotar dali um poema.

porque o poema, quando brota,

traz consigo um susto,
um estranhamento,
como de quem veste sapatos
para fazê-los,
ou usá-los,

poema e sapato.


mesmo que incompleto,

mesmo que sem sola,
eu sempre quis escrever um poema com sapatos.

ítalo puccini.

eu sempre quis escrever um poema com sapatos.
vesti-los
e andar por aí a amaciá-los,
como que fazendo brotar dali um poema.

porque o poema, quando brota,
traz consigo um susto,
um estranhamento,
como de quem veste sapatos
para fazê-los,
ou usá-los,

poema e sapato.

mesmo que incompleto,
mesmo que sem sola,
eu sempre quis escrever um poema com sapatos.

domingo, 5 de setembro de 2010

A viagem (Tiago Nascimento)

Navegar em mares nunca dantes navegados.

Explorar reconditos úmidos, insalubres, intocados.

Conhecer aromas e odores exóticos.

Se perder por caminhos ilusórios e lógicos.

Descobrir uma rota alternativa.

Economizar combustível: amor ou gasolina.

Porque petróleo move minha barca colorida,

Mas são os amores que me levam pela vida.




Prof. Tiago Nascimento.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

No ginecologista (Marcelo Lamas)

Há tempo que a visita estava prometida. Por duas vezes recebi de presente livros escritos pelo Dr. Lori Krusser. O médico renomado no pampa gaúcho é daqueles que merecem ser chamados de doutor. Da escola antiga, em que o médico ia à casa do paciente e que as consultas não eram relâmpagos. O médico olhava no olho do doente. Especialista em seres humanos, o Dr. Lori fazia todo tipo de atendimento e cirurgias.

Depois de ler os livros do Dr. Lori, cheios de causos de cidades do interior, escrevi-lhe uma carta comentando sobre a riqueza da sua literatura. De alto nível, ambos: “Prosa à sombra do cinamomo" e “Gado da mesma marca”, com pleno teor de sentimento em suas linhas, coisa que só os grandes escritores conseguem fazer, como Erico Verissimo. E este não é um pensamento isolado meu, pois o senhor de cabelos grisalhos foi convidado para participar da Academia Sul-Brasileira de Letras. Recusou o convite, acreditando modestamente que, com apenas duas obras, não era digno de ocupar uma cadeira de imortal.

Assim, procurei o Dr. Lori para termos uma conversa sobre a arte de escrever. Ele marcou no seu consultório, às três e meia da tarde, depois da última consulta.
Quando cheguei, antecipado, li na porta: DR. LORI KRUSSER — GINECOLOGISTA.
Pensando no mico de entrar num consultório daquele, lembrei do provérbio popular: “Já que estamos no inferno, o que custa dar um abraço no diabo?” Entrei e fiquei lá no meio da mulherada, que aguardava consultas com ele, sua filha e seu genro, todos médicos de senhoras.
Algumas me olharam estranhamente, mas graças à modernidade globalizada, logo me senti invisível, tudo normal.
Mas, quando a recepcionista me chamou pelo nome, todos, digo, todas, riram.


O homem septuagenário me recebeu feliz, por conhecer alguém que admirava seu trabalho de contador de histórias.
Entre muitos, me contou um causo da época em que era jovem e visitava sua cidade natal de Santaninha, no centro do RS, onde uma mulher grávida estava com muita hemorragia. O médico fez o primeiro atendimento e seguiu numa carroça junto com a paciente para o hospital, onde conseguiu controlar a perda de sangue, salvando a mãe, mas o bebê infelizmente não teve a mesma sorte.
Com a mesma modéstia de quem não aceitou a homenagem das letras, disse: “Não fui eu quem salvou a mulher. Foi o Homem lá de cima. Ele “apenas” me utilizou como instrumento”.





Marcelo Lamas, autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.
marcelolamas@globo.com