sábado, 25 de junho de 2011

Nem que a vaca tussa! (Vana Comissoli)

Nem ela acreditou quando o primeiro cof cof saiu enroscado no ruminar constante.
Quando sentiu a coceirinha na goela de novo enfiou a cara no feno cheiroso do coxo. Abafar é preciso, viver não é preciso.
Isso é um absurdo, pensava quase sufocando. Ainda não sabia que o absurdo é o normal e o normal é um absurdo já que não existe. É uma criação das pessoas que pensam atingir essa esfera de perfeição que é a normal imbecilidade. Todos sonham alguma coisa, esse é o sonho mais
constante, mais inatingível e mais idiota.
Ser normal é uma vaca perdida na boiada com olhos de bovina resignação. A normalidade é um engodo.
− Cof cof!
Ali ao lado o cavalo relinchou baixo, abanou as moscas inexistentes com a cauda. Moscas sempre existem, pensou antes de assimilar o som que ouvira, moscas saem de dentro para fora.
− A vaca tossiu! – Registrou quando o som abafado rompeu a garganta ardida da companheira de cela, digo de cubículo.
Há anos conviviam pacificamente sem perturbações, tudo absolutamente normal, nem se incomodavam quando Henry, o dono da fazenda, já habituado aos costumes da terra tupiniquim dizia com raiva:
− Não pago estes impostos exorbitantes nem que a vaca tussa! – E escondia o dinheiro verde amarelo nas encovadas contas das Bahamas, ou qualquer outro paraíso fiscal a que só os gringos ou os ricos têm acesso.
Não se incomodavam quando era o peão grosseiro, de bigodes cheirando a fumo, de dedos amarelados e sempre pronto a acobertar uma ovelha nas barrancas do rio, que dizia:
− Não trabalho no feriado nem que a vaca tussa!
Era tão banal ouvir isso e ao mesmo tempo tão impossível a pobre Amélia tossir que não tinha razão dar importância a estes ditos populares que são o escape da raiva e do “sem razão alguma”.
Agora, de uma hora inexplicável para a outra, o sistema tinha sido rompido ou corrompido.
Amélia, a vaca, tossira!
Por longos dias, sufocando focinho e olhos dentro do coxo, numa experiência ainda mais dolorosa, levantando as patas e tapando o buraco tossidor, enfiando a cara no rabo do cavalo sem nenhum escrúpulo ou nojo, ela tentou voltar ao “status quo”. Ameaçou a alma com os fogos do inferno, com as bruxarias das mulheres, com o sêmen dos homens desviados e nada adiantou. A maldita contra regra atravessava as horas, o peito, como grito transgressor.
Suava, no fundo de sua ruminância passiva e inerte, pressentia o perigo: não se quebra as regras impunemente, algo de terrível aconteceria quando os homens não tivessem um impossível
onde se refugiar. Quem os salvaria da ação? Quem os salvaria da salvação? O salvar a ação não feita, eis o fantasma que come a si mesmo.
O bulício da fofoca começou ao pé dos ouvidos, não era coisa de se falar alto: A vaca tossiu!
Depois nada segurou. A cidade tremia nos becos e nas avenidas: A vaca tossiu!
A polícia não pode deixar de correr atrás do ladrão, a vaca tossiu!
As traições deixaram de ser feitas, os assassinatos foram suspensos e o homem perdeu-se no mar de possibilidades que a tossida trazia no seio.
− “Não vou à missa nem que a vaca tussa!” – Ela tossiu, dá-lhe terço, genuflexão e beija mão do padre.
− “Como essa mulher nem que a vaca tussa!” – Não comeu mais, foi para casa bem aquietado, murcho, assistindo cinco vezes as mesmas notícias enquanto na cozinha um arrastar de panelas mastigado por “Não faço comida nem que a vaca tussa!” se perdia num monte de pernas de frango e feijão queimado.
Foi quando Fabiana na frescura incomparável dos olhos verdes e cabelos recém aloirados e mechados, peitos novinhos em folha, muito bem siliconados, saiu de casa:
−“Hoje eu pego aquele gato, nem que a vaca tussa!”
O gato queria ser pego, a vaca podia tossir quanto quisesse.
Amélia, lá no curral, levada aos trancos e barrancos para as fronteiras perdidas do sem fim onde não se é ouvido, gemia, tossia. A maldita tosse crescia num volume assustador, quanto mais distância, mais forte ficava e, de alguma maneira alucinante, todo o eco das ações rompidas ou executadas à força chegavam até ela.
Quando Fabiana não achou nenhuma graça embaixo do gato que não dera nenhum trabalho de caçar foi que a coisa começou a ficar escranchada. Saiu meio nua, meio não, a gritar que essa história de vaca tossir era uma praga pior do que a do Egito e só podia ser castigo de Deus como em Sodoma e Gomorra. O mundo estava perdido. Era o fim, o apocalipse. Os anjos da ordem tinham que descer dos céus e dar um jeito na aberração.
Ao fundo do discurso escutado não apenas na cidadezinha até então desconhecida, mas até em Nova York, ouvia-se cada vez mais forte, mais alto, a tosse da vaca Amélia, resignada por ser a portadora da ira de Deus contra os homens pecadores.
O negror foi tomando conta do planeta, crianças não explodiam na Palestina, nem morriam de fome na África, os pés de maconha secaram e a cocaína não aceitou refino, o crack estourava antes de ser sorvido e os revólveres viraram seus canos negros para trás: ou suicídios, ou calados.
Os homens desistiram de se matar, a vaca tossia.
E tudo foi ficando muito chato porque a grande transgressão impedia as pequenas, tão banais da humanidade. O que é um estupro, ou um roubo colossal, ou um iate indo a pique diante da tosse da vaca? Que são mísseis, ou napalm se a vaca tosse? Quem se importa com a Gisele
Bündchen desfilando com trilha sonora de vaca tossindo? O Ronaldo, Fenômeno, resolveu experimentar um sexo alternativo, com a tossida da vaca não dá Ibope nenhum!
Eram as três horas sacras. No Gólgota se viu a nuvem negra e terminal tomando forma de cogumelo atômico. Amélia subiu arrastando a tosse, a sua cruz.
Não precisou do madeiro, nem de soldados, afinal era apenas uma vaca. Levava um cutelo, com muito esforço prendeu-o entre as pedras com a ponta aguda bem certeira do caminho que seguiria.
Quando se atirou nauseada e bendita ouviu-se um canto vindo das profundezas do inferno, uma aleluia às avessas:
-“ Hosana, a tosse morreu, o Pecado está salvo!”

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Solidão (Marcio E. Ochner)

Cansada da espera
Juntava-se ao álcool do copo sobre a mesa,
Acreditava que a libertava de algo.

Desmemórias existiam naquele instante...

A única coisa que restava dar cabo, era a sua própria vida,
Na falta de um amor,
Da vida sem amigos,
Desejava insistentemente,
Dar cabo naquele instante...
Afogava-se no álcool do copo sobre a mesa.

Largava seus pensamentos na esperança de um vestígio vital,
Devaneios empoeirados,
Variava entre idéias do copo sobre a mesa...
Mais seu único e inseparável companheiro, era a solidão.

Corria em seus pensamentos...
Desnuda de insanidade...
Numa rua obscura de densidade rasteira,
Seu coração encontrava-se cansado...
De amor que nada obteve...
Morreria sem a palavra correta para descrevê-la.

Desenhava seu sentimento de alusões sobre a mesa.

Corria entre os dedos...
De olhos apurados,
Deparava-se com as mãos ao joelho,
Chuva...
Escorria-lhe as lágrimas ante seu olhar pintado,
Aguardava,
Seu amor que já partiu,
Novamente a solidão,
Num copo,
Que quebra,
morre.

terça-feira, 21 de junho de 2011

A maçã do amor (Sônia Pillon)

A tarde ensolarada e amena de outono atraiu toda a cidadezinha do interior para o parque municipal. Cercado de um imenso e paradisíaco lago, não faltavam peixes, patos e aves aquáticas. E como se não bastasse, era o Dia dos Namorados. Os casais passeavam e procuravam aproveitar o bom tempo para caminhar, fotografar e se refugiar embaixo das árvores, em busca de um pouco de intimidade. De tão belo, até lembrava um quadro de Monet...
Gerações inteiras se espalharam pelo parque. O corredor de final de semana e a praticante de trekking se movimentavam concentrados, alheios à poesia do momento. Destoavam, por que não foram seduzidos pela informalidade e descontração do ambiente. Com expressões sérias, mesmo usando abrigo e tênis, mantinham a postura formal do escritório, ou seria do consultório?... 
As crianças faziam a festa correndo pela grama, para desespero dos pais, que temiam a proximidade da lagoa. Cães com pedigree, segurados por seus donos, e simpáticos vira-latas também aproveitavam a tarde domingueira, sem distinção...
Enquanto alguns idosos andavam encurvados, como se sucumbissem ao peso dos anos, outros andavam lépidos e faceiros, transbordando bom humor. Mas se a atmosfera era de alegria geral, nem por isso era unânime. Bastava um observar mais atento para flagrar olhares opacos, desesperançados, tomados pela raiva ou apatia, e rostos crispados pela dureza da vida.
As flores bem cuidadas encantavam pelo colorido, especialmente os canteiros de amor-perfeito, enquanto borboletas e pássaros sobrevoavam o local. O som que vinha da tenda junina anunciava o arraial que teria início no fim de tarde, com muito quentão, pinhão, pipoca, paqueras tímidas, azaração explícita... O vendedor de pipoca e algodão-doce ia empurrando o seu carrinho e soprando a corneta. 
Enquanto observava o cenário quase perfeito, à la Barbie Girl, Samantha se aproximou da barraca da maçã do amor. Olhou uma a uma, e logo identificou a mais vermelha e vistosa. Era tão vermelha e brilhante, que não tinha como passar despercebida!
- Quero aquela maçã!, apontou Samantha. Ao segurar a maçã, se sentiu vitoriosa, pois viu muitos olhares cobiçosos enquanto pegava a fruta caramelada. Saiu rapidamente dali e foi procurar um canto para saborear a sua tão almejada maçã do amor. Na primeira dentada, a cobertura de açúcar foi deliciosa, e ela sorveu cada pedacinho. 
Porém, à medida que passou a comer, viu que a fruta estava macia demais, com um gosto esquisito e, para sua decepção, estava estragada por dentro. Enojada, cuspiu rapidamente e jogou a maçã na lixeira. Uma senhora gorda e de estatura baixa, com ares de cigana, ao ver a cena não se conteve. Se aproximou discretamente de Samantha. – A maçã do amor é que nem certas pessoas. Nem sempre a beleza externa corresponde ao que se encontra por dentro. 
Assustada, se vira rapidamente em direção à voz, mas não encontra mais ninguém... - A noite está só começando, e não vai ser uma maçã podre que vai estragar a festa, pensou Samantha, enquanto arrumava o cabelo e ajeitava a roupa.





Sônia é jornalista e escritora em Jaraguá do sul - SC.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Confusão (Tiago Nascimento)

Eu confundi Tom Cruise e cruz-credo
Eu confundi Jesus com Genésio
Eu confundi tudo,
xadrez com ludo
confundi, fiquei confuso.

Eu confundi butterfly com Buddy Gay
Confundi Confúcio e Cesar Augusto
Eu confundi nada,
sopa com salada
Me confundi e fiquei na sala.

Eu confundi princesa e tristeza
Confundi o que houve com love
Eu confundi ao quadrado,
Medina com Medrado
Me confundi e fiquei parado...

domingo, 12 de junho de 2011

Ah, o amor (Fernando Bastos)

Ah, o amor!


Quantos disparates em torno dele. Filósofos, poetas, amantes e cientistas, todos tentam decifrá-lo. O escritor Gustave Flaubert tem uma preciosa descrição do amor em seu livro Madame Bovary, conforme o pensamento da personagem principal:


“O amor devia surgir de repente,
com grande tumulto e fulgurações - tempestade dos céus que cai
sobre a vida e a revolve, arranca as vontades como folhas e
arrebata para o abismo o coração inteiro.”


Mas isso não creio que ainda é amor, mas paixão, você concorda?
Muitos, com efeito, fazem confusão entre paixão e amor. A paixão segundo os cientistas tem prazo de validade, dura no máximo uns dezoito meses. O amor do qual eu falo, é para a vida toda. Já o amor romântico, do jeito que conhecemos hoje, esse que envolve casais, e os entorpece como se tivessem sob efeito do ópio é coisa recente na história humana, que veio a reboque do amor cortês, surgido no ocidente, no século doze da era comum. Poetas trovadores - na Alemanha chamados “minnesingers”, cantores do amor - cantavam nas tabernas, nas ruas, praças e castelos o amor cortês, aquele amor impossível, do cavaleiro pela dama inalcançável. Era o amor pelo simples prazer de amar. Não importava levar a amada para a cama; antes, seduzi-la e embriagar-se nesse enlevo, e mostrar-se fiel a ela, dando a própria vida por ela, se fosse o caso. Sim, claro que o amor existia bem antes disso, todavia, era diferente, amava-se e ao mesmo tempo desejava-se a posse do corpo, além da alma. Antes do amor cortês, o amor não se realizava sem a consumação carnal. Diferente do amor romântico, que desejava-se a alma, sem se importar com o ato sexual.


Alguns especialistas sugerem que não há o amor pelo outro, mas, o desejo de estar no amor. Amamos o amor, não alguém. Em certa medida, eles estão certos, pois só assim para explicar porque muitos amantes sofrem uma vida ao lado de seu objeto de amor, que o agride e humilha. De fato, muitos amantes oprimidos pelo parceiro nem de longe sonham em terminar a relação, pois não conseguem se imaginar sem esse objeto de amor por mais que ele os machuque. Mesmo infelizes, continuam a não querer se desligar daquele envolvimento amoroso doentio e penoso.


E quando questionados por que não se afastam dele, respondem: “Não posso, pois o amo mais que tudo, e sem ele a vida não teria sentido”. Ama quem? A pessoa ou o “estar-no-amor”? Aqueles que conseguem romper essa corrente que os liga de forma mórbida ao parceiro agressor, poderão experimentar, num futuro não tão distante, se se permitirem uma chance a si mesmos, uma nova vida, muito mais decente e digna, seja ao lado de outra pessoa, em novo romance, ou mesmo sozinhos, pelo tempo que acharem melhor.


O amor puro e verdadeiro existe, mas é raro. Nisso acreditam os sábios que perscrutaram as sutilezas do amor desde a aurora da humanidade. Segundo eles, o amor verdadeiro não aprisiona, liberta. Não deseja possuir o outro, ser dono do outro, e sim, tornar-se parceiro do outro, e vê-lo feliz. Quem ama mesmo, não diz, você é minha ou você é meu, posto que pessoas não são objetos. Quem ama diz: “você é seu, você é sua”. Sua o quê? Sua própria identidade, seu próprio “eu”. Ninguém pode ser você, a não ser você mesmo, bem como é um grande equívoco dizer que fulano ou ciclana me completa. Ninguém pode completá-lo, torná-lo inteiro, a não ser você mesmo.


Fernando Bastos, cartunista e escritor

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Valentine's Day (Sônia Pillon)

 Da janela da varanda, o vidro está banhado pela água da chuva. Os pingos escorrem um após o outro, rapidamente, enquanto o céu cinzento, os relâmpagos e os ventos uivantes sacodem as folhas das árvores. Acho que tão cedo não vou esquecer dessa chuvosa tarde de verão. Que coincidência irônica, pensei. O mau tempo parece combinar com o meu estado de espírito, como se solidarizasse com a minha dor, lancinante, dilacerante...


 A água que escorre pela vidraça se confunde com as lágrimas que insistem em cair pelo meu rosto, involuntariamente, por mais que eu as tente reprimir, por mais que eu não queira derramá-las. Chorar para que? Odeio me sentir assim, refém das próprias emoções! Não combina comigo. Não combina com a vida que escolhi para mim.


 Hoje todos estão comemorando o Valentine's Day, e o meu coração está apertado desde que acordei. O que mais vi foram flores, flores e mais flores, embaladas em belos ramalhetes, ou em vasos enfeitados... Casais apaixonados sorrindo pelas ruas. Um ar de felicidade no ar, acintoso, ferino. Até a minha vizinha da frente recebeu rosas vermelhas. Logo ela, que só pensa em trabalho?! E eu é que tive de receber a entrega!... Não é ironia demais?...


 E pensar que no ano passado, no Valentine's Day, eu estava transbordando de felicidade ao lado dele, naquele inesquecível jantar à luz de velas, saboreando aquela comidinha chinesa e bebendo aquele vinho rosè, que venceu as minhas últimas resistências... Como esquecer a magia daquela noite, e de tantas outras em que nos entregamos àquela tórrida paixão, esquecendo o mundo ao redor?...


 Ah!... No início, ficava contando as horas, os minutos e os segundos de cada dia, que pareciam intermináveis, até ele tocar a campainha. Bastava um olhar, um toque, e um turbilhão de emoções tomava conta de nossos corpos e de nossas almas... Tudo parecia tão perfeito naquela época!...


 Claro que esse idílio não poderia durar para sempre. Quando a gente se conheceu, e se  envolveu, acreditava que todas as diferenças podiam ser superadas. Mas não é o que todo mundo pensa quando está cego pela paixão?


 Mas logo vieram os ciúmes, as  brigas, as cobranças de um lado e de outro... No começo eu até que tolerava aquele futebol todo o santo domingo. Mas com o tempo ele passou a se ausentar o dia todo. Eu ficava em casa, vendo televisão. Que tédio! Depois ele começou a sair sozinho nos sábados também... Aquele bafo de cerveja quando voltava para casa, sempre bem tarde e super cansado... Estava na cara que tinha mais alguém na jogada... Foi a decisão mais difícil da minha vida, mas não dava mais!...


 A chuva continua caindo lá fora, porém com menos intensidade. Fico olhando distraída o movimento dos carros, enquanto imagens em flashback tomam conta dos meus pensamentos por alguns minutos. Ainda há nuvens no céu, mas lá no fundo já dá para ver o arco-íris se formando. Respiro fundo e solto o ar lentamente. Enxugo as lágrimas e fico admirando as cores do arco-íris. Amanhã acho que vou dar uma passada no shopping. Estou precisando dar uma repaginada no meu visual.


Sônia Pillon é jornalista e escritora em Jaraguá do Sul, Santa Catarina.

sábado, 4 de junho de 2011

Gatossapato (Fred Paiva)

fiz do meu gato rajado

um sapato sem brilho

fosco batido

um nó no cadarço

prum lado pro outro

rosnando largado

com fome de terra

ração de sapato

calçado calçada

e ele descalço

pisando a poeira

arisco correndo

ralo sem som

tocaia bem feita

e calo + calo

me calo de arrasto

com dor na canela

apunhala o piso

furando lajota

rola na areia

desce que sobe

equilibra a carcaça

do alto um salto

e pousa de pé

pra mãe não morrer

de barriga no chão

no meio do quarto

jogada com os outros

preguiça vírgula

friagem no pé

- Vai botar um chinelo, menino!

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Fred Paiva

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Hipocondria (Inacio Carreira)

“Dar nome a uma doença é apressar-lhe os avanços."
Stendhal



Seu pai sempre contava para todos, não sem uma ponta de orgulho, que o primeiro remédio que o filho tomou na vida foi o ácido acetilsalicílico. Talvez por ignorância, talvez por poder, com seu dinheiro suado, ajudar a manter a saúde do rebento, que quase arrebentou a mãe quando nasceu. O que pode, muito bem, ter sido o “pomo da discórdia” entre o casal, que seguiu se alfinetando pelos quase 50 anos que viveram juntos, antes que Tânatos os reunisse num longo sono: cada qual a seu tempo foi dormir, como se acostumaram em vida, talvez um tentando evitar a presença do outro.


Uma das primeiras músicas que chamou sua atenção, diferente das cantigas de roda, das marchinhas de carnaval, das paradas de sucesso extemporâneas, das danças da garrafa e outros tchans foi “O pulso”, de Arnaldo Antunes, ainda no tempo dos Titãs.


“O pulso ainda pulsa / O pulso ainda pulsa...”


A mãe, leitora anual do almanaque O Pensamento, preocupada com a saúde, sua e do rebento, que agora então arrebentava as roupas com o rápido crescimento, arrebentava os chinelos, tamancos, sapatos, parecia o Pé Grande (aliás, apelido que ganhou na rua, fazendo-o ficar irado e chorar como um bezerro desmamado, atrás da porta, porque “homem não chora”), saía vez em quando com pérolas como “O sofrimento é o melhor remédio para acordar o espírito” (Émile Zola); “A medicina fez, desde há um século, progressos sem parar, inventando aos milhares doenças novas” (Louis Scutenaire) e Uma grande invenção para humanidade não é criar vacinas ou descobrir curas de doenças termináveis, mas sim, acabar com a ignorância” (Andre Rachel): sabe como é, filosofia de almanaque, literalmente.


“Peste bubônica / Câncer, pneumonia / Raiva, rubéola / Tuberculose e anemia /”


Mas fez, essa filosofia, o jovem rebento arrebentado (caía muito, estava sempre com os joelhos esfolados, parece que excesso de falta de coordenação motora) pensar, cada vez mais, na preservação da vida. Na contrariedade que as doenças causavam. Nas dificuldades advindas de procurar médicos, hospitais, pronto-socorros, injeções, pílulas, cápsulas, comprimidos, xaropes, linimentos... E o paradoxo: tem que comer bem para ter saúde, tem que evacuar bem para ter saúde. Mas uma atividade não é o oposto da outra? Se o alimento custa caro, dá trabalho para o preparo, exige mil e uma operações porque, depois, num abrir de nádegas, despejar tudo – ou quase?


“Rancor, cisticercose / Caxumba, difteria / Encefalite, faringite/ Gripe e leucemia...”


Adolescente, ainda acompanhado por seus fantasmas, começou a pedir para a mãe que desse remédio para dormir. O mesmo que ela tomava quando o marido ainda não tinha chegado a casa e ela queria, quando de sua chegada, que a visse dormindo o “sono da morte”.


“E o pulso ainda pulsa / E o pulso ainda pulsa”


Não, onde já se viu um pirralho como você já viciando em remédio? Toma essa maracugina, que o homem da farmácia disse que não tem problema... Estava ele preocupado com vício? Queria era dormir sem lembrar o avô, morto ano passado; das péssimas notas no curso médio (que não estavam na média); das dúvidas sobre as poluções noturnas (ainda não as sabia com esse nome); das ereções na condução, quando lotada... Depois, em casa, o velho jogo do cinco contra um, quando resolvia suas crises existenciais à mão, no horário que devia estar preparando a lição de casa.


“Hepatite, escarlatina / Estupidez, paralisia / Toxoplasmose, sarampo / Esquizofrenia”


Quando, aos 16, começou a trabalhar, estafeta num hotel duas estrelas, sentia dor nas pernas de tanto corre-corre. Às vezes, acompanhada de dor de cabeça. Ou dor nos pés, pelos longos períodos que passava sem sentar-se. A moça da copa arrumava um comprimidinho, que ele completava assaltando a farmacinha da mãe, quando chegava à casa. Para escapar da dor de corno, pior que a de cabeça, dá-lhe analgésico. Desenvolvera tolerância medicamentosa à substância e, em vez de um, tomava dois, três comprimidos, dependendo se aquela que pensava ser a pior dor do mundo fosse acompanhada da não menos famosa “dor de cotovelo”, ambas sem referência na farmacopeia internacional.


“Úlcera, trombose / Coqueluche, hipocondria / Sífilis, ciúmes / Asma, cleptomania...”


Aos 18 anos, primeiro emprego sério após a dispensa do serviço militar, quando entrou no centro de educação de jovens e adultos para complementar o estudo médio e, quem sabe, candidatar-se a uma vaga no curso superior (teria que pagar, pois não tinha a sorte de ser diferente, era o mais comum dos comuns dos jovens. Nada que o colocasse na lista das benesses do governo populista, mais preocupado com perpetuar-se no poder do que em fomentar a educação).


“E o corpo ainda é pouco / E o corpo ainda é pouco / Assim...”


Com o salário, embora pouco, não tendo que dar quase nada em casa (o pai continuava com o mesmo orgulho idiota de quase duas décadas antes: ser o provedor da família), abriu uma conta na farmácia da esquina. Ficou o melhor freguês, bajulado pelo farmacêutico de plantão e as mocinhas, solícitas, sempre oferecendo o melhor antiácido, o lançamento em supositórios e suas várias utilidades (analgésicos, antiasmáticos, antieméticos, antigripais, anti-reumáticos, broncolíticos, cardiovasculares, espasmolíticos, estomacais, expectorantes, laxantes, psicotrópicos, sedantes e urológicos, entre outras). Tônicos para aperitivo (abrir o apetite) e hepáticos (para facilitar a digestão), vitaminas B, C, D..., enfim, todo o alfabeto latino, às vezes incluindo o cirílico, conforme a necessidade.


“Reumatismo, raquitismo / Cistite, disritmia / Hérnia, pediculose / Tétano, hipocrisia /”


Daí a comprar por atacado (quase levando à falência a antiga farmacinha da esquina, que agora parecia um shopping “da saúde”, o que fez com que os farmacêuticos, os estagiários em farmácia, as mocinhas do balcão e os moços da reposição do estoque, antes seus melhores amigos, virassem o rosto à sua passagem, na iminência de perderem o emprego) foi um pulo.


“Brucelose, febre tifóide / Arteriosclerose, miopia / Catapora, culpa, cárie / Câimbra, lepra, afasia...”


Foi quando o patrão, preocupado (ele, afinal, era um bom funcionário, salvo as idas constantes ao bebedouro, para ajudar a engolir o comprimido, ou diluir o extrato) pediu que ele procurasse ajuda profissional, psicólogo ou psiquiatra, pois ele deveria ser hipocondríaco. Hipo o quê? H i p o c o n d r í a c o, cara... Estado mental em que há depressão e doentia preocupação com a própria saúde, ou seja, o seu caso... Eu não sou médico nem nada, mas tá na cara. Outro dia passou no Fantástico, eu disse pra minha mulher: Já vi este filme.


“O pulso ainda pulsa / E o corpo ainda é pouco / Ainda pulsa / Ainda é pouco / Assim...”


O psiquiatra, o psicólogo e a enfermeira do posto de saúde do bairro aconselharam-se a abandonar os remédios. Procurar um grupo de apoio, algo como o A.A., talvez o N.A., ou o H.A. – Hipocondríacos Anônimos –, que ele poderia fundar, se não existisse. Mas como, agora, aprender a viver sem suas muletas, seus amigos, suas terapêuticas? Alopatia ou homeopatia, não importava o sistema, o importante era o método, os efeitos, as sensações que lhe proporcionavam. Na sua angústia, experimentou pela última vez – pois iria seguir à risca a orientação dos diferentes conselheiros – cada um de seus “agentes de cura”, cada um com sua particularidade, especificidade, cor, forma física, dureza, viscosidade, sabor...


Entre a depressão e a euforia repetia as doses, que eram replicadas depois, até que caiu, desacordado, ou quase. Um fundo de consciência deixava entrever, no fim do túnel, uma luminescência azulada, com sabor indefinido, de uma substância que ele precisava, ainda que lhe valesse a vida, experimentar. Pela última vez.


“Pulso / Pulso / Pulso / Pulso”