terça-feira, 30 de outubro de 2012

Escritor Convidado: Marcelo Mirisola

Sítio Solidão


Um imbecil com lenço de pirata na cabeça e duas garotas assustadas dentro de um aquário em forma de peido congelado. O arremedo de Thomas Cavendish fazia sua performance e tentava impressionar os pedestres executando malabarismos com lascas de peixinhos coloridos, constrangimento total. O susto foi grande não exatamente por causa do pirata de butique, mas pela invasão propriamente dita. Agora não lembro, mas eu acho que o chaveiro da esquina também se escafedeu. Eis o que sucede. Despejaram seu Antenor e dona Amarílis da mercearia, os velhinhos que me apresentaram o queijo minas do Sítio Solidão. No lugar deles, uma temakeria.


Para mim, o velório começou quando passei pelo falecido Ponto Azul, no mesmo quarteirão, lá na Xavier da Silveira, esquina com Nossa Senhora de Copacabana. Muito barulho, e porradas atrás dos tapumes.


Obras, business. Essa praga – pior que gripe suína, porque não existe vacina pra babaquice – começou faz uns dez anos na av. Pedroso de Moraes, em São Paulo, e espalhou-se descontroladamente pelo país. O termo adequado (que me dá ânsias de vômito), perfeito para o estrago que vem causando, é “releitura”. O primeiro boteco “relido” foi o Pirajá. São meus conterrâneos paulistas a estuprar o Brasil, mais uma vez. Agora, a volúpia bandeirante corre solta pelas ruas do Rio de Janeiro, os filhotes de Fernão Dias também chegaram na Lapa e transformaram o reduto da malandragem carioca num playground para mauricinhos metrossexuais desfilarem suas sobrancelhas e peitorais depilados. Um futuro de banheiros impecavelmente limpos, e milhões de televisores de plasma ligados dia e noite. Galvão Bueno é o novo Tio Sam replicado de norte a sul, de leste a oeste recrutando você para ser um guerreiro no país da Brahma. Três dólares um chope. Inferno! Enfiaram a Vila Madalena dentro da Lapa! Os putos vendem tremoço a preço de trufas da floresta negra e o freguês, opa!, quero dizer, o “cliente” não pode sequer pedir para diminuir o volume da televisão.


Bem vindos ao mundo dos bares cariocas que imitam a arquitetura paulista de demolição, digo os bares da Vila Madalena, inspirados em – pasme! – bares cariocas da metade do século passado. E o pior, o monstrengo se reproduz e pode se transformar em temakerias, gnomerias, pizzas de chocolate com borda recheada de esperma ou o diabo a quatro que o valha… porque nesses lugares nada de original acontece, aliás, desacontece: num lugar onde o chope custa 3 dólares, chiclete não se mistura com banana. O Haiti é aqui. E a Tóquio mais infantilizada também.


Voltando a Copacabana.


Há pouco tempo, aquele quarteirão do cine Roxy era memória latente dos anos que eu e Cacá vivíamos felizes. Eu passava por lá, chutava tampinhas e entrava em suspensão. Um pouco por causa do João Antonio. Outro tanto porque era assim mesmo, alegria de graça. Os falecidos Ponto Azul e a mercearia de seu Antenor e dona Amarílis eram extensão da nossa felicidade, quando éramos Ginger & Fred antes da decadência e fingíamos que a cidade não turvaria. Ela me esperando no hall do prédio, amiga do zelador boiola. Eu, recém-chegado de um pôr do sol entre os postos 5 e 6, trazia areia nas canelas e a lembrança das mulatas grudadas na testa. Era nossa rotina. Cacá adivinhava minhas falcatruas, e eu a amava porque ela possuía os ais e os cais naquele olhar que primeiro me fuzilava para logo em seguida me perdoar de todos os pores de sóis desse mundo.


Rio de Janeiro, 2005, 2006. Vivíamos encantados. Todo final de tarde eu transformava a vida dela num inferno. Ela foi a primeira mulher da minha vida, digo mulher de verdade, e a partir de uma brecha na janela eu fingia que enxergava o Redentor e ela me achava um babaca, talvez por isso mesmo nossas tristezas e felicidades eram mais belas, como se Vinicius de Moraes nos abençoasse lá de Aruanda, no céu dos Orixás apaixonados.


Não me conformo. Meu sítio solidão virou temakeria. E agora tenho medo de atravessar a Bolívar e não mais encontrar o pudim de leite gigante no Madelon, nem o espanhol carrancudo que recusava cheques de outras praças e fazia questão de ignorar nossa felicidade. Tudo isso num raio de duzentos metros.


Aí nos separamos e eu fui morar no Grajaú. Claro, levei o Sítio Solidão comigo. E evitava Copacabana para conservar o amor num canto distraído da memória. Engraçado, as pessoas costumam ter déjà vu instantâneos. Eu não, lá na zona norte, por conta da minha implicância com flashs e insights, amarguei um ano de “déjà vus” intermitentes longe do nosso quarteirão encantado que incluía, além do meu Redentor desacreditado, o Panamá, um boteco genial na Domingos Ferreira. Onde o simpático Rogério, dono do pedaço de 30m², praguejava contra os direitos humanos e defendia a pena de morte enquanto eu – até aonde meu sotaque paulistano permitia – defendia as putinhas do calçadão, os ovos mal passados e pedia outra dose de uma bagaceira clandestina importada de Barra do Piraí. Atravessando a rua, bem na frente do Panamá, o melhor quibe do Brasil.


Antes de continuar, quero jurar – pelo Deus que Saramago vai ter que engolir – que essa não é uma crônica gastronômica; se vocês tiverem oportunidade não deixem de experimentar o quibe do Istambul: façam isso antes de o estabelecimento virar uma temakeria. Além do quibe, o Istambul tem história. Foi nesse mesmo árabe que, há seis anos, algumas lágrimas molharam meu rosto gordo na frente de uma garota sem coração. Ato contínuo ela me deu um pé na bunda, porque Deus existe somente para que os masoquistas, os trouxas e os comunistas possam amar: motivo mais do que plausível para se acreditar Nele e no Marquês de Sade, eu acho.


Um homem não chora todo dia na frente de uma mulher. Aliás, não era uma mulher e foi a primeira e a única vez que isso aconteceu na minha vida, e a idiota não entendeu nada. Também, no Istambul, tem um kafta de carneiro delicioso que pode vir acompanhado de arroz marroquino e babaganuch. Tudo perfeito, desde que a Cacá não fique sabendo dessa história das lágrimas: ela é muito ciumenta e nunca é demais lembrar que, segundo suas queixas, era eu o responsável por transformar a vida dela “num inferno”.


Ah, Cacá, não briga comigo.


Miguel me disse que você arrumou um negão depois que nos deixamos, eu compreendo. Se arrumasse um japonês aí eu começaria a duvidar do nosso amor, que se prolongava (uso a palavra propositadamente) até o forte de Copacabana, e passava necessariamente pela extinta boate Help, ah meu Deus, a Help foi o princípio do fim.


Eu sabia disso, eles começam destruindo os puteiros, e você escreve crônicas morais e cívicas, pede providências e os homens de bem acham que não têm nada com isso, depois confundem o narrador com o autor, cobram três dólares num chope e você paga, em seguida eles quebram o Ponto Azul e tudo bem, né? Até a hora que esses escrotos põem os velhinhos da mercearia para correr, invadem sua nostalgia e o expulsam de sua solidão.


Hoje, depois de ser despejado do Sítio Solidão, tenho vergonha da própria. Digo, da minha ex-solidão. Vergonha de andar pelas ruas de Copacabana. Tenho medo de não encontrar nossa tristeza, que era mais bela mesmo depois de a carta do Toquinho ter sido extraviada em 1974, nunca mais Vinícius nem Elizete para cantar as dores do amor demais. Que porra é uma temakeria, pra que é que serve essa merda?


Lá em Buenos Aires não é assim. Meu amigo Carlaccio garante que não. As pessoas – ele diz – não precisam se envergonhar de serem tristes e de andarem sozinhas pelas calles. Ele me garantiu que as crianças não freqüentam bares e as assombrações – isso é sensacional – ficam por conta dos fantasmas que exercem o ofício com sobriedade e elegância. Os fantasmas de Buenos Aires são de verdade, diferentemente das cunhadas e dos vultos mexeriqueiros saídos das obsessões do Nelson Rodrigues, aqueles que me atazanavam no Grajaú.


Os sem-déjà vu invadiram, ocuparam e depredaram meu Sítio Solidão. Arrancaram postas da minha tristeza que agora… agora, meu caro Vinícius, que o Chico trocou o samba pelos livros, é que nunca mais vai ter fim.


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Sobre o autor:

Marcelo Mirisola é considerado uma das grandes revelações da literatura brasileira dos anos 1990, formou-se em Direito, mas jamais exerceu a profissão. É conhecido pelo estilo inovador e pela ousadia, e em muitos casos virulência, com que se insurge contra o status quo e as panelinhas do mundo literário (os fofos).
É autor entre outros de Proibidão (Editora Demônio Negro), O herói devolvido, Bangalô e O azul do filho morto (os três pela Editora 34) e Joana a contragosto (Record).
Considerado por leitores como o grande mestre do conto da atualidade, injustiçado pelos jabutis da vida, mas que tem no seu fiel publico o maior reconhecimento que um escritor poderia querer.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Metrô (Inacio Carreira)

O olhar bate em um livro diferente. Formato fora do padrão de best-seller. Capa alaranjada. No miolo, partituras. Observo o título. La bohème... Quem segura tal livro? Um jovem ma non troppo... Olhos grandes, cabelos rareando, echarpe protegendo o pescoço. Cantor? Sim, talvez, nunca vi músico protegendo a garganta. Lembram do Pavarotti? Sempre com suas echarpes em volta do pescoço, agasalhando sua voz privilegiada e dando-lhe um ar de Prima Donna, ou melhor, Primo Uomo, que de Donna ele não tinha nada... E esse aqui, do metrô?


Nas mãos, o livro e uma lapiseira. Pentel. Amarela. Que, ao virar a página, segura entre os lábios. Ao achar o local desejado, resgata a lapiseira e escreve, faz marcações. Específicas. Talvez em suas árias, quando terá que praticar o staccato, o allegro, adagio... Tanta coisa... Quanto conhecimento! Estava com um blusão da Accademia Europea di Firenze, fizera lá um curso? Ou era professor em intercâmbio, trazendo o conhecimento milenar da música clássica aos nossos jovens? Sim, olhando bem, prestando atenção na atenção que o homem dedicava ao seu livro, onde aparentava estudar com afinco La bohème, ópera de Giacomo Puccini, com libreto de Luigi Illica e Giuseppe Giacosa, baseado no livro de Henri Murger, Scènes de la vie de bohème: estreou no Teatro Regio de Turim a 1º de fevereiro de 1896, sob a regência de Arturo Toscanini. Como eu sei tudo isso? Google, cara, Google... E, no Google, a Wikipédia.


De repente apagam-se as luzes, as rodas guincham nos trilhos (como guincham as rodas do metrô, já ouviu? Sim, metrô é um trem, mas é bem mais rápido e mais leve, talvez esse o motivo do grande barulho). Não cheguei a cair (estava de pé), segurava nos apoios do teto e perpendicular ao chão, foi minha sorte. Muita movimentação, choro, o cheiro de excremento de cavalo começou a tomar conta do ambiente.


A iluminação era pouca, tochas, pareciam, velas, luzes bruxuleantes. Do chão, eu tentava apoio para colocar-me na vertical, posição que deu, ao homem, status privilegiado sobre os outros animais, além de deixar as mãos livres para outros afazeres: carregar objetos, lutar, perscrutar, amparar... Consegui, enfim, e por pouco não sou pisoteado por uma carruagem puxada por quatro cavalos... – Não olha por onde anda? (Nem sabia por onde andava, como ia olhar? Ai, o olhar estava baço, onde estava?) À sua frente, imponente edifício. Vem à mente a informação de que “as origens do teatro (o Teatro Regio, de Turim, as coisas começam a fazer sentido) datam do início do século XVIII, quando Vittorio Amedeo II decidiu encomendar ao arquiteto Filippo Juvarra o projeto e a construção de um grande e novo teatro, dentro do desenvolvimento urbano da Praça Castello”... Êpa, seria eu, agora, um receptor de informações? Teriam instalado um chip em meu cérebro e estava, então, em contato direto com a World Wide Web – www?


O apagão no metrô... O homem com a partitura de La boèhme... Sim, ele desce da carruagem, quase pisa em minha mão, está acompanhado por várias pessoas tão bem vestidas quanto ele... Ao pisar na plataforma de madeira, à guisa de calçada, que separa a rua – imunda, coberta de excrementos -, antes de entrar no Teatro, é ovacionado.


Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, em sua Saudação a Walt Whitman, de 1915, brada: “Bebamos isto como um remédio amargo / E concordemos em mandar à merda o mundo e a vida / Por quebranto no olhar, e não por desprezo ou aversão”...


Mas não é disso que estou querendo dizer. Ou melhor, eu pensava, agora, qual a razão dos atores desejarem, ao invés de Sorte, ou Boa Sorte, Merda... Que inclusive é título e tema de uma canção de Caetano Veloso, gravada ao vivo em 1986, com a parceria de Chico Buarque...


Novo curto-circuito cerebral e vi, em tecnologia 3D (sem óculos, só a força de vontade, ou seja lá o que seja) três justificativas à saudação, sendo que a primeira veio dos palcos, mesmo: segundo minha diretora de teatro dos tempos de colégio, no Instituto de Educação Canadá, em Santos, a expressão teve origem na Grécia Antiga. Segundo ela, “naquela época os atores se apresentavam em anfiteatros e suas peças, por serem bem críticas, afetavam os políticos ou alguma classe social. Enfim, se eles não gostassem das críticas representadas naquele fenômeno que era o teatro, atiravam merda nos atores. Por ironia do destino, os atores não ficavam por baixo com isso, porque quanto mais merda era atirada neles significava que mais repercussão teria o espetáculo. Afinal, eles tinham conseguido seu objetivo. Eles estavam lá era pra incomodar mesmo!”...


Acordei com saudades daquele tempo, em que os políticos tinham vergonha na cara. Hoje dizem, simplesmente, que ignoram os fatos... Ou seja, que são ignorantes! Depois da Lei da Ficha Limpa, que venha a Lei da Ficha Inteligente, urgente...


Inacio Carreira

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Se as roupas falassem... (Patrícia Grah)

Era sexta feira de um fim de mês. Conforme planejado, depois de uma longa viagem chego ao meu destino: um local de compras para lojistas.


Era um empurra empurra, muita gente, muitas sacolas, muitas lojas cheias de gente entrando e saindo. Começo a olhar as vitrines que mais me chamavam a atenção, à procura de peças que eu imaginasse que fossem agradar os clientes da loja aonde trabalho.


Fiquei pensando, o quanto comprar é uma tarefa difícil, afinal temos que imaginar o que as pessoas poderão ou não gostar. Mas como saber do que elas gostarão se nem mesma eu sei bem do que gosto¿ Mas enfim, deixa pra lá.


O que me deixou pensativa foi uma questão bastante interessante, ao menos sob o meu ponto de vista: a “vida” das roupas que eu estava comprando! Sim, eu diria “vida”, não porque roupas tenham uma vida propriamente dita, mas perante o processo todo que elas passam ao longo de sua existência. Resumindo:


Primeiro, começando lá na fábrica, aonde é feito o fio. A quantidade de pessoas que estão envolvidas neste processo;


Depois até este fio virar tecido;


Posteriormente até este tecido chegar ao lugar aonde será confeccionada a peça;


A peça que, passará pelas mãos de várias costureiras, aonde cada uma executará o trabalho de diferentes processos (pensei no quanto este trabalho serve para sustentar tantas casas, tantas pessoas que dependem delas...)


Esta peça que depois de confeccionada, passa pelas mãos de várias pessoas, que chega nas mãos do lojista do qual eu a comprei.


Chegando na loja onde trabalho, existe todo aquele processo em que temos que convencer nossos clientes à comprar tal peça. Ok, todo mundo sabe disto, mas muita gente nunca parou para pensar nisso, não é¿


Agora, o mais interessante disto tudo, é o que acontece depois. Se tivéssemos como registrar, somente por um curto período de tempo o que acontecerá com aquela roupa que eu comprei e depois revendi...


Quantas risadas aquela roupa ouviu, quantos elogios. Quantos lugares aquela roupa conheceu, quantas pessoas, quantas festas, quantos dias de tristeza... Quantas decisões foram tomadas usando aquela peça, quantas vezes ela viajou dentro de uma mala, quantos dias lindos de sol ela apreciou...


Quanta saudade ela acompanhou, quanta comida a sujou, quantas coisas... Quantas historias teria uma roupa pra contar, se tivesse uma vida pra viver!


E depois de muita surrada, de ser usada até que seu dono enjoasse dela, esta será possivelmente doada a alguém, e aí começará tudo de novo: as histórias, os lugares, as pessoas...

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Serendip (Vana Comissoli)


Olhar o céu para esquecer a terra é infantil: a terra com sua carga pesada de momentos bifurcados, não sai debaixo de nossos pés. De qualquer modo era desta forma que Clarice fugia. Se tivesse a sorte de uma estrela cadente riscar o céu com seu esguicho de luz e se ela tivesse tempo de fazer um pedido e se o pedido fosse ouvido e se houvessem anjos e se amanhã voltasse para África e se encontrasse a amiga por lá e se a amiga estivesse numa boa e se quisesse ouvi-la e se...


Sua vida estava pendurada em muitos “ses”. Tinha o pior de todos, o que não queria ver: E se nada mudasse? Melhor não pensar nisso, a gastrite gritaria como uma louca e a única vontade seria atirar-se na cama como barco à deriva, deixando que o mar a levasse para qualquer lado, desde que fosse longe, muito longe. Preferencialmente a África onde conhecera a amiga Clara. Eram as duas forasteiras, duas fugitivas de si mesmas, fazendo de conta que por lá poderiam ser elas mesmas livres dos incômodos da bagagem do passado.


Voltaram para casa.O passado nem sequer pediu licença e sentou-se na sala ao lado delas, embora morassem nesse país de distâncias quase continentais capazes de separar irmãs de alma. Distâncias se unem por aviões! Levantou de um salto, arrumou-se como permitiu a disposição indisposta e voou para a empresa aérea, vá que desse uma pane no computador e a compra da passagem se perdesse. Não podia correr este risco. Tinha milhas que trariam Clara para perto,sabia que depois deste encontro ficariam muito tempo sem se encontrar. A amiga havia encontrado o caminho e de novo partiria para quem sabe... Que melhor uso para as milhas amontoadas, criando teias de aranha, se não trazer Clara e ficarem caminhando pelo Planalto Central enquanto torravam os miolos físicos e emocionais, trocando sensações, medos e esperanças?


Quando abriu a boca para dizer a “origem” e determinar o “destino”, Serendip, em algum céu distante, cruzou o espaço e sussurrou ao ouvido de Clarice:


-Vá você!


Inverteu os códigos, virou o relógio, desobedeceu ao bom senso e programou a ida ao encontro de Clara em vez de trazê-la ao seu encontro.


Clara a viu de longe, nunca esqueceria o jeito de andar, a reserva colocada nos passos.Quando se abraçaram, misturando cabelos escuros e claros no aproximar das cabeças, não tinha passado nem um dia daquele longo ano. Sorriso de amigo quando não se está com sorriso nenhum é a coisa mais calorosa que existe. É aconchego, recolhimento, segurança, ombro.


Os olhos por fim se encontraram, Clara tinha os seus acesos depois do comprido inverno, mas Clarice... Clarice os tinha baços, cortinas fechadas.


Os dias enfileiraram confidências, risos, saudade da África, descobertas, poços sem fundo. Liberdade.


Tudo tão intenso, profundo, algumas tampas retiradas de panela fervendo água parada, outras flores em botão que desabrochavam depois de longa gestação. Não há forma palpável e cronológica para contar trocas feitas numa amizade, em afinidade de ângulo de olhar. Se eram muito parecidas? Não, não eram.Exatamente aí guardavam o segredo da partilha. Histórias tão diferentes embaixo da mesma estrela cadente,do mesmo Acaso sem caso que as unira.


Clara confessava descobertas, dores ultrapassadas, encontros consigo mesma e mostrava como as pernas tinham se fortificado no passo torto que usara para encontrar o caminho. Falava sobre o abandono do medo de ousar, de entregar-se à Vida e navegar o mundo.


Clarice ouvia avidamente. Estava ainda nos primeiros passos da travessia, tinha pressa em concluí-la e por fim ver a estrada se riscando à sua frente, com suaves planos e escarpadas montanhas, sempre desigual, em direção ao âmago do ser. Seu ser.


Era a última noite, talvez se encontrassem em Lisboa, ou Paris, quem sabe Singapura, ou Ilhas Maurício. O lugar não importava, sentariam do mesmo jeito, com os cigarros queimando o odor conhecido, as palavras saltando com faceirice no atropelo das vivências, os olhos se encontrando como na África distante.


Como seria? O que seria? Quem viria? Quem iria embora? As perguntas não tinham mais tanta pressa em encontrar as respostas, a certeza de que poderiam seguir, fazer e desfazer malas, acumular cartões de embarque e algumas palavras em línguas estranhas, provavelmente amores exóticos, era o que tinham vindo buscar neste encontro de amor permanente.


O céu estava claro dentro da noite escura, cheio de estrelas demarcando os pontos cardiais, viram ao mesmo tempo uma estrela descolar-se da outra e riscar o céu. Serendip! Saudaram e invocaram sonhos ao mesmo tempo e o acaso as abençoou com sua clemência divina.


 Vana Comissoli



• SERENDIPIDADE nos dias de hoje é considerada como uma forma especial de desenvolver o potencial criativo de uma pessoa adulta por meio da perseverança, inteligência e senso de observação. Em outras palavras, ela significa que estar aberto ao mundo e a novos conhecimentos pode levar a mente muito adiante.


• SERENDIP é o nome original do Sri Lanka, de onde provém a lenda dos três príncipes de Serendip que aprenderam a usar com as qualidades necessárias, o acaso a seu favor. Alguns a chamam insight.


• Flemimg estudava estafilococos (tipo de bactérias) em placas de petriencubando-os; entretanto, não se sabe porque deixou umas placas sobre a bancada do laboratório. Ali receberam esporos de um fungo, Penicilliumnotatum, os quais cresceram sobre a cultura de bactérias. Pensando ter perdido seu trabalho, Flemimng antes de jogar fora, teve o insight ao perceber que em torno nos fungos havia uma zona clara sem Estafilococos. Ele investigou a toxina presente e descobriu a penicilina, princípio dos antibióticos – uma das maiores descobertas médicas de todos os tempos. Foi capaz de aproveitar um fato corriqueiro e aplicá-lo na solução de um dilema maior. Isso é serendipidade.


A vida tal como a ciência em parte é controlada pelos nossos sonhos e esforços. Entretanto, para o que não é controlado, é preciso serendipidade, sagacidade, jogo de cintura e o mais importante, fé.”



 - Recanto das Letras - Enviado por Joseph Shafan em 27/08/2010. -

 

Os três príncipes de Serendip (Vana Comissoli)

“O acaso só favorece a mente preparada”
- Louis Pasteur


Todos que ouviam o sobrenome da família se espantavam por sua estranheza. De forma alguma era um sobrenome comum, de onde tinha surgido e o que significava. Os irmãos, Mauro, Gustavo e Felipe, quando pequenos, sentiam-se importantes em informar que era o antigo nome do Ceilão, atual Sry Lanka, onde seu avô paterno fora adido militar. Na adolescência já haviam cansado a repetição exaustiva da genealogia e o descrédito recebido de que pudessem ter tido tal avô, apenas informavam que queria dizer “acaso”.



Os interlocutores continuavam sem entender nada e questionavam ainda mais. Então mandavam que fossem se ilustrar começando por 1010 e atravessando os séculos, com um pulo pelo Talmud até chegar em Horace Walpole em 1754.
Os irmãos sabiam perfeitamente bem todos os detalhes da história do rei chamado Giaffer e seus três filhos treinados em todas as ciências e artes para, quando chegasse sua vez, pudessem reinar de forma irretocável.
A família Serendip incorporara a tradição descoberta pelo avô João Melquíades e todos os descendentes eram assim educados, não para um reinado, mas para a vida, o maior dos reinos. Os jovens eram estudiosos, divertidos e serenos, nada havia de muito especial fora a fé na serendipidade e em seus princípios..
Nos dias de hoje, a serendipidade é considerada como uma forma especial de desenvolver o potencial criativo de uma pessoa adulta por meio da perseverança, inteligência e senso de observação. Em outras palavras, ela significa que estar aberto ao mundo e a novos conhecimentos pode levar a mente muito adiante.
Sabiam, sem dúvida, que a história da ciência está repleta de casos que podem ser classificados como serendipidade. Arquimedes, por exemplo, descobriu como verificar se a coroa do rei era de ouro enquanto tomava banho (princípio da hidrostática). Já Alexander Fleming descobriu a penicilina enquanto limpava seu laboratório ao voltar das férias.
Tinham a mente aberta para captar os sinais que indicariam caminhos considerados pelos incautos como sorte, acaso ou bum bum virado para a lua.
Tinham nascido em tempos muito próximos, entre o primeiro, Mauro e o segundo, Gustavo, nem um ano haviam se passado. O pai não gostava muito de televisão e preferia divertir-se com a esposa, entregues ao acaso de um possível pimpolho acabar gatinhando pela casa. Estavam sempre dentro da mesma faixa etária, isso era divertido e companheiro, as fases eram trocadas como mais uma experiência de observação de quanto a serendipidade os agraciava, para o bom e para o ruim.
O pai apoiava suas investigações vivenciais:
- A vida não teria a menor graça se não pudéssemos aprender a cada instante e eternamente. Serendipe-se, e abra a sua mente para aprender com os acasos incríveis da vida.
Estavam em torno dos 18 anos e os pais, não sendo do tipo castrador e muito menos videntes de catástrofes legavam tranquila liberdade sem as previsões de alguma terrível catástrofe cair sobre os rapazes. Viajavam como namorados ainda, também tinham aprendido muito bem o legado da família, costumavam pegar caminhos a esmo, nos finais de semana prolongados e deixar o acaso mostrar o pouso. Divertiam-se com os desacertos e curtiam os acertos.
Na volta de uma dessas viagens encontraram como sempre, ao fim do domingo, os filhos torcendo pelo time frente à TV. Apenas Felipe dorminhocava no sofá, fato estranho, pois era o torcedor mais entusiasmado. A seu lado algumas latas de Coca-Cola se enfileiravam. Umas já bebidas e outras cheias, com suor do gelo ainda escorrendo.
A mãe deu um piparote na atenção que brotou imediatamente. Não havia de ser tão infalível assim a sagacidade, sempre tivera receio de levar muito ao pé da letra e acabar quebrando a cara. Foi para o quarto descarregar a pequena bagagem que levavam.
Era um quarto diferenciado, muito amplo, com espaço para poltronas e até um agradável jardim de inverno onde acarinhava plantas. Muitas vezes os amigos se reuniram ali para bate papo alegre e descontraído. Mesmo no inverno, um caseiro fogo de ferro aquecia o ambiente, dando um ar de acolhimento gostoso de desfrutar.
Após poucos momentos voltou à sala e perguntou:
- Qual o sem vergonha na cara que fez festa no meu quarto?
Os três se entreolharam e Felipe acordou num sobressalto. Remendaram mil explicações quase acusando a mãe de inventadeira de pena em ovo.
- Sigam-me e vamos ver quem está inventando o que.
Meus travesseiros estão desordenado e, o de pena, evidentemente recebeu uma cabeça.
- Fui eu – identificou-se Gustavo. Vim assistir TV aqui, os manos estavam jogando.
- TV? E aquele pingo de vinho com pequenos cacos embaixo da poltrona. Também foi vendo televisão? Os restos de vômito na privada foram feitos pela cachorra? Alguém festiou aqui, bebeu demais, quebrou o copo, derramou o vinho, passou mal e vomitou na privada.
Eram irmãos unidos, jamais um iria sozinho para fogueira.
- Nós três. Trouxemos umas meninas, quisemos impressionar. Não passou disso.
Neste momento soou o telefone. Os três se esticaram para atender, Marli foi mais rápida e ouviu:
- Oi, Dona Marli. O Felipe está? Acho que ontem esqueci minha... meu casaco na sua sala.
Marli caiu na gargalhada, coisa que a menina não entendeu nada.
Os filhos ouviram o recado e riram também. Logo os quatros estavam gritando:
- Serendipidade!!!


Vana Comissoli


O fato aconteceu de verdade com meus filhos, só anos depois fui saber que eu já exercia essa força fantástica do Universo que nos surpreende se soubermos nos abrir para ela.


PARA QUEM QUISER CONHECER A LENDA ORIGINAL:


“No país de Serendip (hoje Sri Lanka) há muito tempo atrás, havia um rei chamado Giaffer, o qual tinha três filhos. A estes, proporcionou o monarca a melhor educação sob a tutela dos mais sábios mestres, tanto em matéria de ciência quanto de moral. Ao final do processo educacional, quis Giaffer testar os filhos e lhes chamando disse:
- Filhos, estou velho e já governei por muito tempo; vou me retirar do governo para viver uma vida de busca espiritual. Quero que vocês tomem conta do Reino.
Um a um, os três renunciaram à oferta, dizendo não serem dignos desse poder. Surpreendido com a sabedoria deles, mas não satisfeito, o Rei finge-se furioso com a negação e os manda para uma longa jornada.
Aconteceu que, mal haviam chegado ao exterior, resolvem descobrir pistas para identificar com precisão um camelo que jamais haviam visto. Concluem, então, que o camelo é coxo, cego de um olho, sem um dos dentes, transportando uma mulher grávida, e carregando mel de um lado e manteiga do outro.
Quando, depois, encontraram um comerciante que procurava um camelo, relataram as suas observações. O comerciante, pasmo, acusa-os de terem roubado o camelo e leva os três príncipes diante do Imperador Bahram, exigindo punição.
Os três príncipes negam qualquer crime, ao que Bahram indaga como poderiam ter sido capazes de descrever com tanta precisão um camelo sem nunca o terem visto. A partir das respostas, baseadas em evidências somadas em pequenas pistas, dadas pelos três príncipes, percebe a inteligência dos herdeiros de Serendip na identificação do camelo.
Os príncipes disseram que, como a grama havia sido comida pelo lado da estrada onde estava menos verde, haviam deduzido que o camelo era cego do outro lado. Também falaram que havia pedaços de grama semi mastigados na estrada, do tamanho de um dente de camelo, eles deduziram que haviam caído através do espaço deixado por dente perdido na boca do animal.
Como as faixas de marcas na estrada deixavam as impressões de apenas três patas, a quarta estava sendo arrastada, indicando pelo que devia ser coxo.
A questão da carga tinha sido muito simples, posto que haviam formigas de um lado indicando que foram atraídas pelo mel, de um lado da estrada, e o outro lado mostrava nódoas de manteiga derramada.
Quanto ao transporte da mulher, um dos príncipes disse: "Imaginei que o camelo transportava uma mulher, porque havia notado, próximo à trilha, onde o animal deixara marcas de ajoelhar-se, o rastro visível de pés, claramente femininos, onde tinha resquícios de urina humana que, pelo seu próprio odor, denotava ter sido deixados por uma mulher que tinha mantido relações sexuais há algum tempo.
O outro príncipe, esclareceu que concluíram a gravidez da mulher, pois próximo às marcas dos pés, haviam marcas de mãos femininas, denotando que ela havia se apoiado com as mãos para urinar o que configurava o peso da gravidez.
No momento que terminavam o relato ao Imperador, adentrou à corte, um viajante que discorreu ter encontrado o camelo vagando pelo deserto e que o havia reconduzido ao dono, bem como sua carga e transporte.
O Imperador Bahram, além de, evidentemente, poupar as vidas do três príncipes, os encheu de ricas recompensas e os elegeu conselheiros do Império.
Através de Horace Walpole e suas correspondências com Rei George II (Florença) o termo Serendipidade foi criado. Ainda não presente nos dicionários de língua portuguesa, serendipidade define a capacidade de fazer descobertas inusitadas do acaso, de, no meio do caos, perceber a solução para dilemas. Advém da capacidade de observação e reflexão. Alguns a chamam insight.
Flemimg estudava estafilococos (tipo de bactérias) em placas de petri encubando-os; entretanto, não se sabe porque deixou umas placas sobre a bancada do laboratório. Ali receberam esporos de um fungo, Penicillium notatum, os quais cresceram sobre a cultura de bactérias. Pensando ter perdido seu trabalho, Flemimng antes de jogar fora, teve o insight ao perceber que em torno nos fungos havia uma zona clara sem Estafilococos. Ele investigou a toxina presente e descobriu a penicilina, princípio dos antibióticos – uma das maiores descobertas médicas de todos os tempos. Foi capaz de aproveitar um fato corriqueiro e aplicá-lo na solução de um dilema maior. Isso é serendipidade.
A vida tal como a ciência em parte é controlada pelos nossos sonhos e esforços. Entretando, para o que não é controlado, é preciso serendipidade, sagacidade, jogo de cintura e o mais importante, fé.”
Recanto das Letras - Enviado por Joseph Shafan em 27/08/2010.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Perto da Morte (Fernando Bastos)

“Sofia lembrou-se que a avó, no dia em que soubera da
sua doença, dissera algo semelhante. - Só agora tomo
consciência de como a vida é rica - dissera ela.
Não era triste que a maior parte das pessoas tivesse que
ficar doente para reconhecer que a vida era bela?”
(O mundo de Sofia, de Jostein Gaarder)


Você me disse que precisava falar. O quer foi, amigo, algum problema?

Precisava desabafar com alguém. A gente se conhece há mais de trinta anos, e sei que você é a pessoa certa pra me ouvir, aliás, coisa que você sabe fazer tão bem.
Sua cara não tá boa. Fala, o que houve?
Os médicos sabem. Quando um paciente é avisado que tem uma doença grave, a primeira coisa que faz é prometer que vai mudar radicalmente de vida. Depois de algumas semanas, passado o susto, volta a cometer os mesmos erros, deixa a caminhada de lado, retorna à cerveja e às carnes gordurosas. Assim aconteceu comigo. Você sabe, tenho 60 anos cravados. Uma mulher linda e dedicada, e três filhos, todos crescidos e encaminhados. Mas eu achava que viveria até os 100, e esse foi meu erro. Eu já sabia que minha saúde não andava bem das pernas, mas relaxei, e não me cuidei. Agora a coisa ficou séria. Estive novamente no médico, pra umas baterias de exames. Se eu quiser ter uns anos extras de vida, vou ter que entrar na linha, senão...
Eu já havia te falado sobre isso.
Sei, lembro. Mas eu não tinha noção do tamanho da enrascada. Mesmo assim, te garanto que não temo a morte. E Epicuro me lembra: “Por que ter medo da morte? Enquanto somos, a morte não existe, e quando ela passa a existir, nós deixamos de ser." O que me faz agora me agarrar à vida com unhas e dentes, é que finalmente percebi que a vida é melhor do que eu pensava, apesar de tudo... apesar de tudo, eu quero viver.
Fico feliz que tenhas agora tomado consciência disso...
Você ouviu falar na enfermeira Bronnie Ware, autora de um livro que trata dos arrependimentos de quem está para morrer? Ela o escreveu após anos convivendo com pessoas em estado terminal. O primeiro dos arrependimentos é: “Muito me arrependo de não ter vivido a vida que eu queria viver, mas de ter vivido a vida que os outros esperavam que eu vivesse”.
Você se arrepende do quê?
Nossa! De tanta coisa. Eu faria muita coisa diferente. A primeira, teria sido mais cuidadoso com minha saúde. A outra, teria sido menos inseguro nas minhas relações. Esses dias, prestei atenção à letra Epitáfio, dos Titãs.
Diz assim “Devia ter amado mais/Ter chorado mais/Ter visto o sol nascer/ Devia ter arriscado mais/E até errado mais/Ter feito o que eu queria fazer...”
É linda e profunda essa letra...
Sim, e serve perfeitamente para mim nessa hora.
Nesse instante, meu amigo me abraçou, e algumas lágrimas inevitáveis desceram sobre minhas faces. Eu estava me redimindo de meus pecados.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

No mundo da lua: Dom Quixote contemporâneo (Sônia Pillon)


Ele levanta acordado pelo despertador do celular. Corre contra o tempo para se arrumar e fica matutando como esticar o dia. Tanta coisa para fazer! Fica imaginando como transformar aquela peça de teatro em um sucesso nacional. Já está até vendo a cena: os anúncios na mídia, os outdoors espalhados pela cidade, as críticas favoráveis, o teatro lotado, o público aplaudindo de pé... E ele lá no meio, junto ao elenco... Bravo! Bravo!


Lágrimas de alegria escorrem pela sua face, enquanto imagina a realização do seu sonho. Seu coração bate acelerado e ele mantém um sorriso de genuína alegria...


Enquanto dilui o café solúvel e mastiga um pão dormido com manteiga, ele abre rapidamente o notebook. Confere as principais manchetes, a previsão do tempo, os escândalos de Brasília, a cotação do dólar... Eita, mundo cão!...


Olha um anúncio de brinquedos eletrônicos e lembra daquele roteiro infantil que criou 10 anos atrás, uma releitura erotizada dos personagens “Chapeuzinho Vermelho” e “Lobo Mau”, transformados em uma “Lolita” do século 21 e em uma espécie de “Dom Juan de Marco” à brasileira, à la Nelson Rodrigues... A vida como ela é... – Bando de provincianos! Não sabem o que é arte!


Quase 10 horas! Desce as escadas correndo em direção ao portão. – Não posso me atrasar na entrevista com o tubarão! E se ele patrocinar o projeto? Amanhã mesmo vou poder reunir o elenco, retomar os ensaios, planejar a temporada, a turnê nacional...


Na saída, vê a caixa de correio entupida de contas, contas e mais contas para pagar... E “santinhos” de políticos, que de santos não tem nada... - Haja estômago!, pensa em voz alta, fazendo uma careta.


Ele apressa o passo. Chega suado e esbaforido até a antessala do diretor presidente. A secretária executiva o olha por baixo dos óculos e pede que espere até o final da reunião. E ele espera... 10, 15, 30 minutos, até que a porta se abre e os executivos deixam a sala do tubarão-todo-poderoso. – Pode entrar, diz a secretária.


Finalmente o roteirista entra, segurando a pasta, frente a frente com o tubarão...


- Li atentamente o seu projeto. Bem interessante. Mas infelizmente já fechamos o orçamento deste ano. Decidimos associar a nossa marca a um cantor sertanejo que está bombando e vendendo que é uma beleza! Lamento. Fica para a próxima!


Ao sair da empresa, ele decide que não vai desistir. Afinal, é o que sabe fazer e não está disposto a entregar os pontos. – Amanhã é outro dia! De algum lado o sol tem que sair!


E lá vai o heroico e idealista Dom Quixote contemporâneo, pronto para enfrentar seus moinhos de vento, mais uma vez...


Sônia Pillon é jornalista e escritora, autora residente dos sites de literatura Letras et Cetera e Cooperativa de Letras.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

A escrita como tentativa de preservação: de um lugar, de muitas vidas (Ítalo Puccini)

             Eis o que é possível encontrar no filme “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane Caffé, vencedor de melhor filme no VII Festival Internacional de Cinema de Punta Del Este (2004) e no 5º Festival de Cinema des3Ameriques (2004, Quebec, Canadá). Produção nacional de 2003 que aborda o sumiço da cidade de Javé, a ser submersa pelas águas de uma represa.


            Taí um filme que procuro trabalhar em sala de aula com turmas do Ensino Médio, abordando não somente a desagradável situação da tomada de terras alheias, mas também a importância da escrita, e sua distância para a oralidade. São conversas que transitam pela trama, pela importância que adquirem a memória e a oralidade na história, e pelos caminhos através dos quais o filme nos leva à literatura.


Tudo acontece a partir do drama que enfrentam os moradores de Javé: a instalação de uma usina elétrica no vilarejo vai levá-lo a não mais existir no mapa. E a solução que lhes resta é uma só: registrar por escrito o vilarejo, tornando-o de valor histórico e científico, conforme falam. É preciso contar a história de Indalécio, o fundador de Javé.


Eis, então, o momento em que surge o personagem AntonioBiá, o salvador dos habitantes de Javé, aquele que em anos anteriores fora expulso de lá pelo motivo que agora o trazia de volta: a escrita de histórias. Biá é chamado para escrever a história de Javé, por ser o único ali que sabe escrever (Biá trabalhava na agência dos correios em Javé. Como ninguém fazia uso da escrita e da leitura, ele passou a inventar histórias dos moradores da localidade, como forma de tornar a agência movimentada, e assegurar seu emprego. Justamente por isto foi expulso pelos moradores quando descobriram o que ele inventava). 


No momento em que Biá passa a ouvir as histórias dos moradores de Javé é que passamos nós, telespectadores, a percebermos como a memória oral de cada um privilegia aspectos e detalhes que ninguém conhece, e que jamais serão registrados como de fato aconteceram. Passamos a perceber o quanto a escrita não dá conta daquilo que é da oralidade. E também o quanto toda escrita fica marcada por aquele que a produz, o que nos leva a pensarmos na isenção do historiador no momento de registrar uma história.


Biá vai ouvindo as versões de cada habitante de Javé. Cada um "puxando a sardinha" para o seu lado, apresentando algum detalhe que antes não havia. Como já dizem os ditados, quem conta um conto, aumenta um ponto. E existem sempre três verdades: a minha, a sua, e a que de fato existe. E Biá deixava claro aos moradores: Uma coisa é o fato acontecido. Outra, o fato escrito. E as verdades produzidas pelos moradores do vilarejo são compostas de memória. De uma memória mítica, onde se encontra com a fala. Uma memória que é feita de fala, que é produzida pela narração. 


            Diante disso, algumas pontes que podemos estabelecer com a literatura fazem referência a dois aspectos textuais apresentados pelo teórico Mikhail Bakhtin, a polifonia (as várias vozes de um discurso, uma vez que a coexistência de inúmeros narradores, narrativas e formas de narração compõem uma heterogeneidade discursiva, que é o que observamos no filme, nas várias narrativas que o compõem) e o dialogismo, a partir de uma citação do próprio Bakhtin: "Tudo se reduz ao diálogo. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida". 


            Além disso, importante lembrar das várias leituras que podem e devem ser feitas de uma mesma história. A história de Javé é, na verdade, as histórias de Javé. A história de cada morador é a leitura que cada um deles faz da localidade em que vive, o que prova que não existe uma só maneira de se ler algo, e sim maneiras de se ler. E de se escrever.


 Ítalo Puccini

sábado, 6 de outubro de 2012

No motel (Marcelo Lamas)

Numa noite quente – e caliente – o casal de namorados foi para o motel. Depois de um bom tempo por lá, surgiu um imprevisto: faltou energia elétrica. A princípio nem deram bola, pois estavam distraídos e o calor demorou até tomar conta do ambiente escuro.
Na hora de sair, Eric foi até o carro e acendeu as luzes, assim conseguiram pegar as coisas que estavam espalhadas. Ele lembrou que ainda haveria um problema a ser resolvido: só tinha levado cartão de crédito. Estaria a maquininha funcionando? Samantha também não carregava dinheiro consigo.
Eric ligou para a recepção e o atendente disse que havia usado a máquina o dia todo apenas com a bateria e que esta acabara de ficar totalmente descarregada com as saídas anteriores – como de hábito, o movimento na hora do almoço tinha sido intenso naquele dia.
O atendente disse que estava à procura de uma bateria reserva que talvez tivesse alguma carga, mas a escuridão estava dificultando a tarefa.
Eric pensou em chamar alguém para socorrê-los, mas Samantha achou que seria muita “pagação de mico”. Tempos depois o recepcionista ligou:
- Alô, moço, vamos dar um jeito aqui. Achei a bateria.
- Ah! Legal. E como eu faço pra abrir este portão da garagem?
- Estamos fazendo manualmente senhor. Até por segurança. A gente manda o pessoal abrir um portão por vez. Sabe como é, né? Sem luz e sem câmera a gente não pode deixar ficar uma fila de carros aqui na saída.
Depois de mais espera, o homem ligou de novo e disse que era a vez deles. O casal entrou no carro. Pelo canto do portão dava pra ver duas tiazinhas vestidas de copeiras tentando destravar o mecanismo com uma chave de fenda, que caía a toda. Eric não podia ajudar pois a operação era do lado de fora.
Chegando à recepção, tava lá o sujeito com uma lanterninha de 1,99 na mão e evitando olhar para o casal. Depois de algumas tentativas, a operação foi completada. E lá vieram as duas tiazinhas de cabeça baixa para abrir o portão principal.
Quando o casal saiu, deu de cara com um ponto de ônibus lotado e um “mercedes” amarelo bem cheio, recolhendo o pessoal. E o povo olhando pra ver quem tava saindo do lugar, e todos se viram, pois no carro de Eric não tinha película. Todo o profissionalismo do pessoal do motel foi por água abaixo. Se fosse um casal “ilícito”, o crime não teria dado certo. Como diz o provérbio: “Em cidade pequena o inferno é grande”.


Marcelo Lamas
marcelolamas@globo.com

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Cansaço (Fred Paiva)

"Estou cansado", repetia diversas vezes ao dia, indiscriminado, descompassável, entrelinhas 1,5. Nem sei se realmente estava cansado ou se estava acostumado a dizer que estava ou se estava acostumado a se sentir assim, cansado. Ou a vida lhe cansava mesmo, pode ser. Tantas responsabilidades. Todos os compromissos marcados. Outlook, celular, agenda. Tudo. Queria um tempo disso tudo. Precisava dar um tempo disso tudo. Manter-se só, ermitão. Uns dias, que fosse. Agorafóbico em si. Pisar a terra descalça, tomando a brisa fresca, pouco úmida da manhã. Ver o tempo-espaço passar-ruindo. Sem devidas providências. Em off. O2. CO2. O2. CO2. Até cansar-se disso também. Esgotar.