terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Epifânia (Vana Comissoli)

Simplesmente virou estátua enquanto as palavras assaltavam seus ouvidos e roubavam a compreensão bem debaixo do nariz. Depois que a porta bateu ainda permaneceu quieta, alguma coisa não encaixava na bagunça restante no apartamento. O que as pobres plantas tinham a ver? Elas nem precisam levar tiro, ou facada, basta que as deixe à míngua ou ponha o vaso no lixo. Plantas são frágeis e dependentes. Quase sentiu as folhas murcharem em seu próprio caule lerdo e ingênuo.
Um grande amor quando acaba... Grande amor acaba? Um médio amor quando acaba... Médio amor não tem que levar um médio tempo para acabar?
Quando um amor de qualquer tamanho acaba sai com delicadeza, fechando a porta sem ruído, deixando sobre a mesa um ramo de flores semi-murchas, ousemivivas, como um ato falho que a gente faz de conta que entendeu e a intenção não era aquela, mas abemos que era. Fica possível a generosidade de imaginar a ausência como uma volta que não aconteceu.
Não foi assim. Foi uma acusação atrás da outra e nem sabia mais quem era o bandido, ou talvez fosse mesmo ela e não havia percebido o roubo, sendo uma cleptomaníaca disfarçada até para si mesma.
Depois a maravilhosa massa carbonara que ainda respingava de aroma a sala, fora jogada na pia. “Dá para o gato! Bicho é que se prende pela barriga!” Teria errado na dose de bacon? Tinha provado, estava uma delícia, isso antes de recolher uma porção da pia mesmo por que afinal não era de jogar comida fora. Um desperdício enquanto tanta gente passa fome. Deu-se conta que não tinha gato e nem cachorro para dar o que se molhara na cuba. Como daria ao gato então? Estava tudo do avesso e ela devia ter atravessado o Equador e tomado champanhe demais, bem que a avisaram que faria besteira se abusasse. Talvez o vestido de alças fosse mesmo uma saia de ula-ula.
Havia também a cama arrumada e gastara seu melhor perfume jogando gotas nos lençóis. Outro desperdício, esse não havia como recuperar e ela não dormiria em cima deste aroma nem morta. Muito menos morta, deve ser horrível chegar do outro lado da ponte com cheiro de quem queria se deitar com um homem e não deitou.Caronte não aceitaria nem 30 moedas!
Resolveu anotar os desperdícios por que estavam ficando muitos, seriam necessárias várias sessões psicanalíticas para resolver este lesa poupança. Mas foi a merda do psicanalista que mandou arranjar um namorado! É o que dá ouvir estes babacas que veem pena em todo ovo. Às vezes um charuto é apenas um charuto mesmo que mate o pai da psicanálise de câncer depois, donde se conclui que um charuto sempre é um charuto cheio de recheio que não enxergamos.Sempre. Não fálico, talvez, não sabia bem, mas com certeza tendo consequência, o que era uma merda por que ninguém é radar para fiscalizar o tempo todo.
Onde é que ficaram mesmo os talheres? Escondera, no meio da refega lembrara-se da mulher assassinada pelo amante com a pazinha de lixo, talheres seriam ainda mais perigosos. Ficaria horrorosa na primeira página com um garfo enfiado na jugular. A maquiagem já estaria derretida e teria aqueles riscos pretos de rímel escorrendo pela cara..
O problema maior era ter uma vizinha de 78 anos, nem um pouco surda e de nome Assuntina. Na certa não confundiria “vai à merda” com “aurevoir”. Tinha 5 gatos e todos com cara de felinos selvagens. Só pelos gatos que odiava, teria motivos suficientes para uma saída elegante e não este escarcéu de fim-de-linha.
Como poderia adivinhar que o tal namorado... Como era o nome mesmo? Droga!Sempre trocava o nome do sujeito, por isso resolveu dar um apelido carinhosos: Bimbo. Ia adivinhar que o cara tivera um cachorro com esse nome, que enlouquecera e deixara aquela marca escura e redonda na bunda dele?
Livre associação - ouviu a voz rubicunda do analista, mostrando o quanto ela era idiota.Não sabia muito bem o significado de rubicunda, mas era assim que sentia a voz e era uma palavra horrorosa que caía à perfeição na ascendência germânica que o deixava de bochechas vermelhas fosse inverno ou verão, portanto a voz devia seguir a mesma linha.
E como poderia saber que chama-lo de filhinho não seria considerado carinho, mas um desejo oculto de ter filho e isso o apavorava? Ela por acaso queria filho? Claro que não! Estes monstrinhos tão fofinhos e cheirosos, falando que é um amor, mas bagunçando tudo e provavelmente seriam alérgicos ao gato que pretendia ter para nunca mais jogar comida fora. Filho? O que é isso? Já ia para os 35 anos e logo seria fruta passada e filho é uma invenção dos hormônios malucos que adoram choro de criança e o maldito sorriso engraçadinho. Como são mornos de se por no peito! Amamentar? Nem pensar! Tinha posto um silicone a fuzel, não faria este desperdício de jeito nenhum. Mas eles são um amor e quando começam a falar tlocandoasletlas, então...
Olhou pela janela desperdiçando o olhar e deu-se conta que o sol ia alto.Também estas lâmpadas modernas dão a impressão que é diaquando ainda é noite. Dentro de casa nem se vê mais o dia chegando, a menos se estiver de olhos fechados no bom do sono de todas as noites, esquecido lá pelos 28 anos.
Deu uma vontade enorme de pão quente e, conscientemente, é claro, resolveu desperdiçar o integral que guardava muito bem guardado na geladeira. Pegou a bolsa e foi à padaria.
No meio da rua lembrou que nem sequer sabia se tinha padaria no bairro, só comprava no supermercado para agilizar tudo e não jogar gasolina fora. Ir a pé era a solução sensata, perguntaria a alguma mulher com cara de quem leva pão para casa todas as manhãs, com certeza teria filho esperando de bico aberto. Filho? Argh! Argh? Não teria posto o macarrão fora se tivesse filho e nem teria confundido o cara com Bimbo, seu cachorro da infância. Olha só! Que coincidência! Lembrou que também tivera um Bimbo em sua vida e era uma graça de pelo acinzentado igual ao cabelo do cara que não sabia dizer good bye.
As pessoas colocam cada coisa fora! Que desperdício! Olha o cachorro de pelúcia tão fofinho e da cor do Nescau que adorava, jogado na lixeira como se não servisse para mais nada. Nem faltava olho ou focinho igualzinho aos de verdade.
Enquanto o tanque enchia de água com sabão líquido que era mais cheiroso e rendia mais, ela preparou um sanduiche de pão integral, afinal não descobriria nunca onde era a padaria e o Bimbo era grande, uns 60 cm, estava sujo o coitado, precisava de banho urgente.
Quando o telefone tocou pelo meio da manhã, logo que conseguira dormir depois de colocar o Bimbo para secar e energizar sob o sol, não entendeu direito quando pelo fio avisaram: É o Bimbo.
- Que Bimbo? O da infância, o de pelúcia no varal ou o animalão idiota que não sabe dizer nem aurevoire nem good bye?
Sentiu um furioso prazer ao se despedir antes de quebrar o telefone:
- Tschüss.

Vana Comissoli

domingo, 22 de janeiro de 2012

Tempo... (Marcio Erino Ochner)

Sem escolha,
Nem querer,
Na corrida cerrada,
Que cessa ao tempo que passa...

Num momento cruel,
Sem compaixão,
Num oposto sentimento...

Das fotos recortadas sobre o espelho,
Dos amigos que refletiam a mão passada,
Do prato à mesa,
Na comida sem sabor,
Do vazio sem gosto,
Da amarga certeza...

Num pequeno momento,
De luz ofuscante,
No penduricalho que cai,
Do aparelho que vibra ao abrigo da mesa,
Nele anunciava o fim,
Cai e se parte em pedaços...

Cala-se a risco da vida .

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A Chuva (Sônia Pillon)

Chove, não chove, chove, não chove, chove, não chove... ou chove?!


Chove que chove, chove que chove... que não chove mais, que volta a chover, que chove, chove, chove...

Chuva que chove, que não chove, que faz sol, que já fez, que vai fazer, que não faz mais... que vem e que vai, que vai e vem, sempre!

Chuva que é como a Vida, que cai como lágrimas, que molha a face...

Chuva que inunda, que transborda, que faz desmoronar, que desaloja, que faz perder tudo aqui, que traz a Morte, porque é em excesso, e que falta lá, onde gota nenhuma há...

Chuva que seca, como o sol que cai na relva, e que no instante seguinte aquece, ilumina, traz alegria e esperança...

Chove, não chove, chove, não chove, chove, não chove... ou chove?!

Chove que chove, chove que chove... que não chove mais, que volta a chover, que chove, chove, chove...

Chuva que chove, que não chove, que faz sol, que já fez, que vai fazer, que não faz mais... que vem e que vai, que vai e vem, sempre!

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Envelhecimento precoce (Tiago Nascimento)

Quieto
Quedo-me olhando a lua
Não sou já tão moço, a emoção não vem mais
Aos 23 tudo envelhece
A morte passa a ser inevitável.
Adiar; um dia a mais, que diferença isso faz?

Tiago Nascimento, jesuscristohumano@gmail.com

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Sombra e destino (Marcelo Lamas)

Desde menino fui perseguido pela sombra do meu sobrenome no futebol da cidade que nasci. E este virou nome de guerra, pois havia uma safra muito grande de Marcelos no colégio – na mesma sala éramos 9 – e assim, desde cedo fui chamado pela alcunha originada entre a Galícia, no interior da Espanha e Portugal. Como o meu pai e os meus tios tinham sido futebolistas conhecidos, quando algum transeunte ouvia meu sobrenome, me questionava: “Tu és filho do Lamas? Jogas futebol como ele?”.


Relutante, eu evitava participar dos jogos temendo não corresponder às expectativas. Só aceitei entrar no time da sala para jogar a Gincana de 1985, porque não tinha goleiro. Dali para frente passei a ser o arqueiro da escola e ficava na reserva da equipe da empresa que meu pai trabalhava.


Depois de alguns anos, tive que mudar de posição, pois a minha estatura era bem menor que as dos outros goleiros. Então passei a jogar de zagueiro e até hoje jogo futebol com meus amigos na retaguarda.


No final do ano passado fui assistir a um treino do Museu EC, clube de veteranos que meu pai frequenta e que tem maioria sexagenária. Como estava muito quente, faltou gente para jogar e fui escalado para ficar de goleiro.


Consegui a proeza de tomar 10 gols, sendo o último por cobertura.


Ao longo da minha carreira esportiva tive derrotas, aprendizados e fiz inúmeras amizades.


Também tive boas vitórias, inclusive naquela Gincana do colégio em 1985, que teve a minha modesta participação. Ao final daqueles jogos ocorreu um inesperado empate na somatória dos pontos das várias modalidades (corrida do saco, cabo de guerra, corrida do ovo, caçador, futebol, vôlei, entre outros). Às pressas, pois a noite chegava rapidamente naquele inverno do extremo-sul do país, os professores acharam um jeito de definir a sala campeã.


E eu fiz a redação que desempatou a gincana.

Desde lá, não sei definir qual dos dois esportes é o meu favorito.

Marcelo Lamas, autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.
marcelolamas@globo.com

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

O sêmen milagroso do padre Jesuíno (Fernando Bastos)

A faxineira entrou no quarto religiosamente às oito da manhã. Ouviu o barulho do jato de urina que vinha do banheiro contíguo ao quarto do padre, e imaginou que aquele santo homem era afinal, igual a todos os espécimes masculinos: tinha pênis, bolas e também precisava aliviar a tensão da bexiga.
O simples fato de pensar nesse apêndice de um homem de Deus ruborizou-lhe a face macerada, cravada de rugas. Ângela beirava os 50 anos, era uma beata. Não era feia de estampa, apesar do andar meio de banda. Houve dias em que alguns paroquianos de língua mais afiada aventavam mirabolantes histórias sobre o padre Jesuíno e ela. Mas eram só boatos. Ângela não era apenas fiel a Deus; mantinha-se casta diante dos prazeres da carne.
Conformava-se com a artrite reumática. Dizia que a doença nos ossos era sua grande amiga, que a deixava mais próxima ao Senhor Jesus. Já abrira as cortinas do quarto e preparava-se para trocar os lençóis quando o bom sacerdote saiu do banheiro, e, como sempre fazia, saudou a empregada com um largo sorriso:
- Bom dia, Ângela...
- Bom dia, sua bênção, padre.
- Deus a abençoe – e foi para o refeitório, tomar o café.
Sozinha no quarto, a mulher deu prosseguimento à sua labuta diária. De chofre, algo lhe chamou a atenção. Uma revista de “mulher nua” estava sob o travesseiro. O padre havia esquecido de guardá-la. Mas havia mais uma coisa: uma mancha sobre o lençol, e, ao tocar o dedo médio, a faxineira sentiu a viscosidade do líquido. “Será creme de barbear?”, pensou a mulher. Levou o dedo a um centímetro das narinas e cheirou. Pareceu-lhe ter cheiro de Kiboa, a meleca. Ângela levou o dedo à boca, sorveu vagarosamente a massa gelatinosa, estalando várias vezes a língua para apurar o paladar e engoliu.
- Hm, parece pudim. Mas sem açúcar.
Na cozinha, encontrou a amiga temperando o almoço e contou o “milagre”.
- Quer dizer que as dores sumiram? – perguntou a cozinheira – Como assim?
- É um milagre, Valdirene – disse Ângela, radiante – Foi logo que saí do quarto do padre.
- Ele a abençoou? Você fez alguma reza especial? Viu o Anjo da Misericórdia?
- Não, não. Fiz o que sempre faço toda a manhã…Ah, tem uma coisa que preciso lhe contar…
- Conta, não me esconda nada…
Dez minutos depois, aparecem Jesuíno e um padre mais moço, o Ramirez, para inspecionarem o almoço do dia. A cozinheira não perdeu tempo:
- Padre, aconteceu um milagre. Ângela foi curada do reumatismo.
- Isto é verdade, Ângela? – perguntou Jesuíno, cético que era.
- Verdade verdadeira, padre – atestou a própria agraciada pelo “néctar dos deuses” – veja, consigo até fazer flexões.
- Você mudou o medicamento?
- Não, padre, são os mesmos remédios de sempre. Aqueles corticóides que me fazem engordar. Mas não vinham mais fazendo efeito. Até que hoje…
- Até que hoje?… – repetiu o padre.
- Até que hoje Deus resolveu me curar.
- Ângela, fale do “creme consagrado” – insistiu Valdirene, dando uma cotovelada na amiga.
- Creme? Que creme? – perguntaram os padres.
E Ângela explicou tudo aos dois padres, que ouviam estupefatos a narrativa da mulher. “Meu Deus”, pensou Jesuíno, “será meu sêmen milagroso?”.
Um mês se passou desde aquela manhã do “milagre”. Jesuíno decidiu se confessar. Não conseguia mais dormir direito. E Ramirez era o mais apto a ouvir sobre sua diversão solitária.
- Date gloriam Deo – fez o padre Ramirez por trás da janelinha do confessionário. Deus abençoou seu líquido seminal, meu irmão. A Igreja tem registrado preciosas relíquias de santos como ossos, sangue, cordas vocais, dedos. Mas “porra santa” é a primeira vez na história.
- Não brinque com algo tão sério, Ramirez – pronunciou o penitente.
- Não estou brincando, Jesuíno.
- Eu quero minha absolvição, padre.
- Ora, Jesuíno, bater uma punhetinha não é pecado. Eu mesmo toco as minhas de vez em quando…
- Uma santa mulher bebeu meu sêmen. Por descuido meu. Preciso de sua absolvição…
- Ao contrário, irmão. Você merece toda a glória dos céus, todos os cânticos sagrados dos anjos celestiais. Jesuíno, você é um santo.
Nesse instante, padre Ramirez saiu do confessionário, tomou a mão de Jesuíno e a beijou com fervor.
- Padre Jesuíno, preciso que você cure minha gastrite.