segunda-feira, 26 de setembro de 2011
URUBUSERVANDO (Vana Comissoli)
Ele era alto, moreno, de grandes e estarrecidos olhos negros. O cheiro de carniça estava soterrado sob um excitante Mont Blanc que devia custar quase, ou mais, do que um salário da plebe.
Eu sobrevoava os campos primaveris de minha fácil vida. Gostava de encantar, mais precisamente de seduzir, sem saber dos riscos servidos nos canapés de caviar com que me lambuzava nessa promessa de retornos jamais vindos.
Quando cheguei à festa o aroma me alcançou nos olhares famintos de minhas amigas, no ti ti ti que rapidamente foi confirmado ao enxergá-lo. Era ele, tive certeza. Vinha montado no cavalo branco e eu esperava seu beijo fingindo adormecida. Não era fingimento.
Envolvê-lo foi fácil, eu tinha todos os ingredientes necessários da receita de princesa. Flores, bombons, mimos... Princesas são tão bobas! Ouvem uma única melodia tocada em cravo secular onde a letra, canto-chão repete: Felizes para sempre...
Assim que pousei sobre ele a carniça exalou. Acontecia nas brincadeiras do amor. Amor, rosa, vermelha, cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... Cálice de vinho tinto... branco, uísque, vodka, caipirinha caipira de cachaça, cálice... cálice,,, cálice. Copos... copos... copos... “Pai, afaste de mim esse cálice, de vinho tinto de sangue”.
No princípio culpei o vizinho que fedia e todos sabíamos, depois meu nariz osfrésico. Pulei para o alerta, deixei rastros de perfume de todos os tipos: reportagens, livros, avisos. Efeitos dos perfumes daninhos. Meu príncipe amava o odor afrodisíaco, hipnotizante, acostumara-se e não via mais a diferença, ou se a via, apaixonara-se por ele, acostumara os sentidos e se encharcava cada vez mais.
Por fim decidi que meu amor soberano o envolveria se eu o exercesse à exaustão. Desenvolvi aromas de carinho, entusiastas, chorosos, lamentosos, impediriam que ele se inebriasse do cheiro de desespero e infâmia.
Fomos deixando os duques e duquesas de lado, tinham começado a respirar fundo quando chegávamos, embora disfarçando, para logo em seguida passarem a usar máscaras protetoras descaradamente.
O príncipe já era quase um sapo disforme e coaxava noites a dentro transformando meu sono de pós prazer numa vigília de temor constante numa guerra ímpia e injusta como ouço no hino de minha terra.
Eu tinha que desistir. O urubu em mim crocitava não. Dizia que carniça tinha lá seu encanto, seu prazer. Quem sabe encontraria vida sob as carnes sanguinolentas, embaixo da aparência pútrida das olheiras. Quem sabe eu...
Não, por mais que ele me mostrasse as delícias de aspirar o odor branco das nuvens eu não podia, não conseguiria me habituar a ele.
Urubus comem carne morta, mas não apreciam se transformar em pasto de seus iguais. Exatamente para manterem a sua, linda e fresca ingerem a repugnante refeição. Eu fazia isso? Era isso que eu era? E a princesa, o castelo, o cavalo branco?
Eu voava, planava sobre tudo, além das nuvens e não me vinha coragem de abandonar a paisagem ruandense de 1994. Era a isso que assemelhava minha visão: facões cortando corpos, sonhos, planos. Cortando e estripando meu príncipe.
Os amigos dele tomaram o lugar daqueles que escolhem melhor seus perfumes e eu planava sobre eles também, cada vez mais alto e durante mais tempo, era a maneira de acreditar horizontes.
O príncipe tomou banho, sentou-se todo príncipe branco com o perfume nas mãos, acreditei em renascimento como uma entrega ao santo da devoção. Havia incenso queimando. Orei a ele que era meu tudo, meu deus particular:
- É tão importante? Mais importante que eu que te amo tanto? Te dou minha vida e meu ar? – Não mais chorosa, perguntei amassada, minha própria pele se desfazendo.
Ele jogou aquele olhar comprido e doloroso que sempre fisgava o perdão dentro de mim. Vi alguma coisa verde dentro dele, muito rápido e logo branqueou. Ronaldo abaixou a cabeça extremamente concentrado, fechou suas cortinas estendendo-me meu aviso de demissão e cheirou a primeira das cinco carreiras enfileiradas como soldados mercenários.
Vana Comissoli
terça-feira, 20 de setembro de 2011
Castelo de areia (Sônia Pillon)
Chove e faz frio.
Tempestade.
Raios.
Trovão.
Dia que se faz noite.
Vento forte que sacode a aldeia.
Choro.
Castelo de areia desaba no chão.
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
O menino que queria mudar o mundo (Tiago Nascimento)
um menino pequeno de sorriso "facinho"
tinha um sonho, um belo sonho esse menino.
Queria mudar a ordem estabelecida,
mexer com o status quo da vida.
Era um sonho e tanto, imagina...
Mas o tempo passou, como sempre
e o menino mudou, ficou doente
adoeceu da doença maturidade
formou família, entrou pra faculdade.
E o sonho foi perdendo em detalhes,
foi sobrando nas listas de prioridades
e de tão ínfimo, o menino o perdeu.
A vida tal como é, outra vez a um rebelde venceu...
terça-feira, 13 de setembro de 2011
Em nome da Fé (Fernando Bastos)
Vamos dirigir nosso olhar para os dois grandes livros, responsáveis por ditar regras de comportamento em mais da metade do planeta: a Bíblia e o Corão. Ambos trazem versos confortadores e amorosos. “Amai-vos uns aos outros” é um pedido cristão e a sura 4,36 (Corão) declara: “Tratai com benevolência vossos pais e parentes, os órfãos, os necessitados, o vizinho próximo, o vizinho estranho, o companheiro...”. É espantoso que duas religiões que sustentam esses versos de amor tenham sido causadoras de cruzadas, guerras santas, inquisições, e atos de terrorismo em nome da fé que seus devotos seguem.
Expandindo nosso olhar sobre as escrituras, veremos que nem só de amor e perdão nos “falam” aquelas páginas. A Bíblia traz em Deuteronômio 17,2 a sentença de morte para quem adora outro deus (quem tem outra religião). Em cima disso foi possível a Santa Inquisição, liderada pela Igreja, onde milhares foram mortos. O Corão ensina na sura 4,89 como tratar os que não seguem Alá: “capturai-os e então, matai-os, onde quer que os acheis”. Assim como papas autorizaram a morte na fogueira de hereges, os terroristas do 11 de setembro tinham apoio da fé para o ato que cometeram.
Esse talvez seja o grande mal na religião: ensina que devemos dar a mão ao próximo, desde que ele acredite naquilo que acredito. Não há tolerância e respeito a pensamento diferente. É mais importante crer do que ser. A salvação é questão de crença e não de caráter. Agora podemos entender um pouco porque uma crença pode ao mesmo tempo motivar alguém a acolher um desvalido, bem como inspirá-lo a botar tudo pelos ares.
Fernando Bastos, cartunista e escritor.
sábado, 10 de setembro de 2011
Inverno, infirmo, inferno (Inacio Carreira)
O frio é incomum. Passa as tardes ao lado de um aquecedor cujo uso fará, no próximo mês, a delícia dos acionistas da companhia de energia elétrica. As manhãs passa-as na cama, sob uma grossa camada de cobertores, edredons, mantas, lençóis e outros artifícios /artefatos contra baixas temperaturas
Há mais de 20 anos, quando saiu de sua cidade para esta, em outro estado, preparou-se como para uma viagem ao Ártico (exagero, exagero), mas perdeu o investimento. O sítio mostrou-se cada vez mais quente, ele parou de fumar, engordou e as roupas foram para um amigo. Eram boas, quentes, mas não serviriam de nada, agora. A numeração passou de 48 para 54 (dependendo da fábrica). Devia utilizar-se de náilons e outros sintéticos ao invés da velha e boa lã, casimiras, flanelas, malhas flaneladas, veludos, couros... Ainda tem muita coisa a usar, mas carecem de cuidados, de lavações, de banhos de sol que lhes tirem os ácaros, os cheiros de naftalina, os ovos de barata. Resistentes, essas baratas. Fazem, da naftalina, desodorante. Continuam, perfumadas, o banquete em minhas roupas e agasalhos que, descobertos, ganham o caminho da rua, do lixo.
O frio é incomum. Existe uma vantagem: as comidas estragam menos. Estragando menos, também tem que cozinhar menos. Pilota o fogão, no máximo, duas vezes na semana. Guarda as sobras, aproveita-as bem, come fora vez em quando, às suas expensas ou convidado por amigos, vez em quando trazendo uma sobra para casa. Ainda agora tem, glória das glórias, camarão com molho rosé e maçãs no congelador, prato que degustou, de prima, à beira-mar em Itajaí, num restaurante chamado Sereia Tropical.
Outra vez, almoçando na própria cidade com uma amiga turista, levou para a geladeira um linguado ao molho branco com alcaparras, mas, quando quis utilizá-lo, estava virado em aguarela. Intragável. O molho branco se desmanchou, do peixe só sentiu o cheiro forte. O conjunto ganhou a lata de lixo e, ato contínuo, a lixeira comum do condomínio, não fosse ficar no apartamento atraindo moscas.
O frio é incomum. Ele, lamentando, falou de roupas, que esquentam por fora e de comidas, que esquentam por dentro. Mas encontra-se num impasse: nem as roupas nem os mantimentos, transformados em calorias, gorduras e vitaminas, podem ajudá-lo na atividade que enfrentará a pouco: o banho. Não, não irá colocar o aquecedor no banheiro. É contra-indicado, o fabricante informa que o mesmo não deve ser ligado em áreas molhadas. O que resta é o velho truque – perigosíssimo – de colocar fogo ao álcool, colocado em uma lata. Não fique preocupado, não. O banheiro, ou a sala de banhos, tem abertura suficiente para não asfixiar o usuário. Aliás, abertura perene, pois a janela não fecha, a ferrugem impede o acionamento da alavanca que vedaria o espaço.
Sofre duas vezes: no frio, agora incomum, tudo é pouco para aquecer o ambiente e a água. No calor, às vezes mesmo desligando o interruptor do chuveiro a água é tão quente (pela proximidade da caixa d´água com o telhado) que quase não aguenta a temperatura elevada. Isto faz com que cada banho hibernal exija uma reflexão, um buscar roupas no cesto e nas gavetas, acomodando-as no banheiro para uso imediatamente após secar-se; um planejamento estratégico para não deixar a embalagem de álcool perto do fogo, não deixar os fósforos perto do fogo, a toalha idem, sua pele mais cuidada ainda.
Como seria bom assinar, como suas, as afirmações acima. As queixas acima. As dúvidas. Mar aberto, fica à mercê de cuidadores, sem sentir frio ou calor, lembrando de quando tinha estes felizes desconfortos. Precisa entrar um pouco mais mar adentro, afundar, sumir, integrar-se ao grande nada. Com qualquer temperatura.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
A cerimônia do chá (Sônia Pillon)
A sala estava impecavelmente limpa e arrumada. Quatro horas de preparação até a chegada daquele momento. O tatame estava precisamente no meio do recinto. Um quadro com ideogramas japoneses e um vaso de ikebana, com flores, folhas, galhos, frutos e plantas secas adornavam o lugar e transmitiam uma sensação maravilhosa de bem-estar.
Tudo lá foi arranjado, meticulosamente, para conduzir à harmonia, respeito, pureza e tranquilidade. Lá fora, o sol começava a se despedir com o cair da tarde, mas seus raios ainda atravessavam timidamente as persianas de madeira. Emanavam calor na medida certa.
Eis que chega a tão aguardada cerimônia do chá. O convidado entra no recinto, não sem antes tirar os sapatos, para depois se ajoelhar no tatame, com uma reverência de cabeça. Ele está nervoso, suas mãos tremem. Do outro lado, à sua frente, a anfitriã repete seu gesto e o ritual começa quando ela serve um doce num guardanapo ao convidado, que sorve cada pedaço, sem pressa. Por um longo momento, seus olhares se encontram. Depois, os dois baixam os olhos.
Ela então pega um lenço e cuidadosamente começa a purificar os potes onde serão servidos o chá. Primeiro, pega a concha de madeira para em seguida pegar a água aquecida e colocar nos potes. Depois abre o recipiente com o chá em pó e o mistura nos potes, em movimentos circulares.
Só então ela entrega o pote ao homem à sua frente, e suas mãos se tocam. Ele gira o pote e fica admirando a pintura a mão da delicada porcelana. Depois ela repete o ritual e finalmente ambos começam a beber o chá, vagarosamente, como se quisessem esticar aquele breve momento. A tradição milenar do chá os mantém unidos em corpo e alma.
Agora seus olhos se fitam profundamente, enquanto lágrimas involuntárias começam a escorrer de seus rostos. Ambos sabiam que aquele momento iria acontecer. A despedida era inevitável, mas como evitar o turbilhão de emoções desse momento? Como esquecer a beleza e a intensidade do que viveram?
O ritual do chá chega ao fim. Está na hora do convidado partir. Num impulso, a anfitriã pega seu pote, toma um gole e imediatamente oferece outro gole ao convidado, que retribui o gesto, quebrando as regras daquela tradição milenar.
Agora os dois unem suas mãos em sinal de prece, na altura do coração, e inclinam suas cabeças um para o outro, num gesto de reverência e agradecimento mútuo.
Com dificuldade e ainda com lágrimas nos olhos, o convidado se levanta e se dirige para a porta andando para trás, sem voltar as costas para a anfitriã.
- Nunca vou esquecer o que vivemos aqui, por mais que passem os anos!, diz o convidado, com a voz embargada.
- Eu também nunca vou esquecer!, responde a mulher, emocionada, enquanto ele alcança a porta e se dirige resolutamente para a estrada.
Naquele dia, durante muitas horas, ela ainda permaneceu ali, ajoelhada sob o tatame, relembrando aqueles felizes e fugazes dias que antecederam a partida do samurai.
Sônia Pillon
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domingo, 4 de setembro de 2011
Necessário (Tiago Nascimento)
tenho tanto pra falar
nada de importante.
Eu só preciso de um romance
que embeveça o olhar
de todos os passantes.
Triste vida burocrática;
muito a se dizer
poucas as palavras.
Doce agonia monossilábica;
saudades de ser
infante, adolescente ou nada!
Eu só preciso de uma chance!
Quero respirar e ter
prazer de novo.
Eu até aceito um novo romance
ou ao menos ver você
de volta ao jogo...
Tiago Carpes do Nascimento; jesuscristohumano@gmail.com