quinta-feira, 28 de junho de 2012

Água de chuva (Inacio Carreira)

Realidade é alguma coisa na qual, quando
você deixa de acreditar, não vai embora.
Philip K. Dick


Vontade de tomar água de chuva. Água destilada, dizia meu pai, boa para colocar na bateria do carro. Faz tempo, sim. Que, hoje, as baterias – ao menos a maioria delas – vêm blindadas, o vivente não pode colocar nem tirar nada, nada... Porque água de chuva? E se essa chuva for a decantada “chuva ácida” do filme Blade Runner – O caçador de andróides? Filmado em 1982, virou cult ao retratar Los Angeles do ano 2019 (pertinho de nós, agora). Aliás, novembro de 2019. Eu nasci em novembro... Será uma premonição? Serei andróide? Não, sou muito estúpido, andróides são – seriam – programados para a excelência.


Voltando à chuva ácida, que parece ficção científica, vou à rede e leio que é um dos problemas ambientais mais sérios da contemporaneidade, causada pelos gases tóxicos liberados na queima de combustíveis fósseis, carvão ou petróleo. Após a sujeira da combustão ganhar a atmosfera, parte dela reage com o vapor d’água e outros componentes em suspensão, quando os gases poluentes transformam-se em ácidos, caindo por ocasião de tempestades, neblinas e nevoeiros. Embora expressa na ficção filmada em 1982, o livro que deu origem ao roteiro, de autoria de Philip K. Dick, foi lançado em 1968 com o título Do Androids Dream of Electric Sheep? Entretanto, o problema é pesquisado na Europa desde o século 17, ganhando fama na década de 60 (do século 20), com o declínio do número de peixes em lagos daquele continente: tem – a chuva ácida - o poder de destruir florestas, acabar com os nutrientes do solo, matar a vida aquática e, lógico, prejudicar a saúde humana.


Será essa vontade, de tomar água de chuva, uma necessidade de ligar-me aos elementos da natureza, numa inconsciência holística, numa comunhão telúrica, numa vontade de esvair-me com a água, de descer aos infernos (as regiões subterrâneas) e renascer, fênix pós-moderna, replicante inconformado com a mesmice amém?


Preciso tomar água, muita água. Os rins não funcionam direito, pedreira, causa ou efeito da abstenção aquosa, ou líquida no geral... Se fosse água da chuva o líquido ingerido, faria tão bem quanto às baterias de minha infância? Mas, se essa chuva for ácida, ficarei mais empedrado, contaminado, modificado, células multiplicando-se desordenadamente, organismos buscando romper a barreira da pele, ossos esfarelando-se, olhos cegos, tapete de pelos e cabelos forrando a habitação?


A água, então, pode ser droga, também. Alterar as funções do organismo. Em vez de ajudar, contaminar. O que, aliás, não precisa ser esperado de todo esse processo poluição / ascensão da mesma / descida em forma de chuva: reza a lenda que não existe nem uma gota d’água livre de contaminação após as bombas atômicas que arrasaram Hiroshima e sua irmã no horror... Nem o famoso Aquífero Guarani, subterrâneo, escapa a esta sina. Hodierna e hedionda.


Já não tenho vesícula biliar; meus dentes foram substituídos paulatinamente, ao longo da vida; por conta de duas hérnias inguinais ganhei uma tela de metal na região subcutânea abdominal; meus olhos são protegidos por lentes, por hora em armações, mais um pouco e colocadas diretamente no globo ocular; meus ouvidos apitam diuturnamente, em breve requerendo intervenção cirúrgica; minhas pernas cambaleiam, exigindo pesquisa de labirintite, meus... deixa pra lá.


Melhor colocar um chip, ou mais, e transformar minha ficção em realidade, andróide também, ou semi-andróide, a trabalhar mais um pouco, a aproveitar o que foi armazenado no cérebro (que teima também, o safado, em negar informações). Eu, new-andróide, ao contrário da história contada em Eu, Robô, parto do humano para o quase humano, na esperança de vivenciar o ano 2019, se as profecias catastróficas não se concretizarem...


........


Pesadelo. Acordou sem saber mais quem era, se o Eu da voz narrativa ou se alguma outra voz, daqui ou de lá, nascido de mulher ou criado em laboratório. Admirável mundo novo...

domingo, 24 de junho de 2012

Rapunzel (Vana Comissoli)


O sol enganava vida quarto adentro, o que aumentava minha indignação. Era muita falta de pudor me afrontar com toda a sua luz branca, borbulhante, desenhando raios diagonais pelas teimosas janelas que permitiam sua entrada.


Ela me olhava maravilhosa, quase bonita demais para meu momento. Era ela e eu. Sua falta de olhos, igual membro amputado, fazia com que eu sentisse seu olhar como uma dor aguda e congelante. Já tinha escrito pelas paredes a minha fúria, em vermelho batom e preto lápis de sobrancelha. Estavam cobertas do teto ao chão repetindo o que se repetia incansavelmente dentro de minha cabeça: Por quê? Por que eu? Roubara os versos desesperados do poeta e os desenhara borrados de sombras para pálpebras verdes, azuis e lilás:
“Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
Embuçado nos céus?”
Nada de respostas. Silêncio total. Um silêncio que não existia em mim. Os avisos, conselhos, compaixão tinham se multiplicado em e-mails e telefonemas que eu não queria ouvir ou sequer saber que existiam. Ninguém precisa ter calma nessa hora, eu queria gritar enquanto fazia tudo que precisava fazer. Tomei todas as providências, fiz todos os exames, consultas e cirurgias diagnosticadas, ainda assim essa hora não se afastara de mim. Eu sabia que chegaria inexorável, mas ainda assim desejara, pedira, fora aos santos, para que ela morresse de inanição, penúria, gastura, como diria minha avó. Não morreu. A morte é uma mesquinha criatura, nunca pensa no outro, faz só o que lhe dá vontade e assim vai matando quem não quer morrer e deixa vivo quem deveria ir dessa para melhor.
O que me falavam de pensamento positivo, força, otimismo, me soava como cobrança. Não me cobrem postura, o câncer é meu! Eu não tinha essa magnânima postura de encarar “as coisas da vida” com naturalidade. Achava que as terapias não funcionavam e otimismo era um sentimento que estava a mil quilômetros de sanidade distante, não passava de uma palavra vazia.
Tudo isso para eu chegar ali. Com a desculpa de enjoo e cansaço, mal saía do quarto, minha torre de cristal. Todo mundo sabia o que eu vivia lá dentro, pelo menos me parecia que sim, como poderiam crer que pudesse ser diferente? Era o meu momento, me deixem em paz, mas não dizia nada, apenas me deixava embalar pelo meu medo e desespero.
O movimento dos raios solares afinal caiu sobre ela pondo belos reflexos acobreados com os quais eu sempre sonhara e que achava tão deliciosamente fatal. Já que não os tinha naturais os construí nela.
A quimioterapia é isso aí:talvez e só talvez matasse a bola de células doidas que tentava me matar, mas antes me deixaria acabada de náuseas, vômitos e diarreias que tornam qualquer um amesquinhado. E pior, martírio imposto: me deixaria sem cabelos!
“O cabelo é o de menos, pense na vida”. Não é bem assim, não é tua cabeça a prêmio, rangia por dentro meu pensamento entontecido. Pelo menos não é o que apregoam quando se está no terceiro round.
Logo que o câncer foi descoberto se pensa só nele, depois se fica tão soterrado de exames, pareceres, frases “levanta astral”, diagnósticos e prognósticos que não se pensa nos cabelos. A cirurgia, o cheiro de hospital e de flores que enchem o quarto mais do que o suportável quando seria insuportável não recebê-las absorve qualquer possibilidade de raciocínio, muito menos de sentimento sobre qualquer coisa. Até que chega a terceira fase: a químio e a rádio. Duas senhoras que se assemelham à freiras visitadoras, trazem braçadas de esperança, mas são assexuadas, sem brilho e levemente indiferentes. Nas mãos o rosário de observações e consequências e da milagrosa fé que vacila corações e roda a tômbola da sorte.
Eu tenho 37 anos, adoro ser mulher. O feminino me habita com uma naturalidade felina que me enche de prazer. Nunca, em nem um momento, desejei ser outra coisa que não mulher. Adoro a fantasia dos vestidos, da maquiagem, dos sorrisos que derrubam homens e me apaixonar loucamente em versos de amor é minha especialidade favorita. Jamais me passaria pela cabeça cortar os cabelos,mulher é mais mulher com fios longos, macios e brilhantes e, de repente, não tão de repente, eu tinha que enfrentar ela, esta coisa: a peruca que se exibia à minha frente e deixava-se fotografar pelo descuidado sol.
Sempre se tem opção. É muito ridículo saber disso diante de uma peruca que o travesseiro, desenhado de fios a cada acordar, me confessava necessária. Ou ela ou a calvície. Alguém pode realmente se imaginar, se desejar careca? Uma mulher tem tal força?
Sinceramente não acredito que nem os pobres homens que receberam este diabólico brinde genético gostem. Imagine eu. Aceitando-a, viriam os lencinhos pastoris e floridos, estampa que só piorava a situação, ou echarpes de seda a cair pelas costas, boinas e bonés masculinizados.
Eu podia enxergar meu cabeção careca. Passei até a entender e aceitar a tentativa frustrada dos homens que atravessam longos fios de um lado para outro da cabeça numa via férrea horrível que já abortara possíveis amoresem meus braços.
Parei na frente do espelho. Talvez os cílios e sobrancelhas também sumam, dei-me conta arrepiada. Meus lindos pelos! Não sabia que os amava tanto e que eram tão representativos de minha identidade. Pensei até nos pentelhos. Nunca ninguém me disse se eles caíam ou ficavam lá, irônicos, rindo debochados para a nudez de todo o resto.
Parece drama pensar nos cabelos, riscar as paredes, ter auto piedade diante deste monstro paquidérmico que é o câncer, mas é o que acontece. Podem vir os psiquiatras falando em desvio do conflito central que é o pavor da morte, isso não diminui em nada o tal pavor. É doloroso, é perder uma parte de si mesmo sem que haja cola, conforto, amizade que segure.É como se em meio a um temporal, numa busca de abrigo, ainda caísse um galho de árvore em sua cabeça.
Dizem que a gente dá outra dimensão à vida depois de um câncer, ou durante. Eu não sei, não cheguei neste quarto round. Sei que lidarei melhor com o câncer de outra pessoa, não a encherei de estímulos vazios de sentido para quem não teve a praga.Talvez me sente quieta ao seu lado, deixando que o silêncio seja uma partilha maior e permita que revele sua horrível dor de perder os cabelos, de ter deixado em uma mesa de cirurgia alguns pedaços queridos de seu corpo.
Não sei se serei mais generosa, ou, se eu o vencer, voltarei alegremente a ser eu mesma com todos os meus defeitos.De há muito conheço a memória humana, tão aguda no momento, tão distraída depois que a dor dá as costas. Não pretendo esperar muito de mim, seria uma afronta me obrigar a ser outra pessoa por que enfrentei covardemente ou estoicamente a doença. Me aponta um que tenha sido heroico de verdade diante dela, que não tenha sorrido apenas para que deixassem de atirar pérolas de consolo sobre ele. Sei que tem gente contando maravilhas de sua fase pós câncer, tenho dúvidas se o milagre ocorreu, ou se é apenas uma expressão de profundo alívio.
Pretendo ser a mesma vaidosa que sempre fui e com muito mais cuidados porque amarei ainda mais meus cabelos, meu corpo são e livre. Me maquiarei com mais esmero para que eu veja como é bom ter rosto para maquiar, cabelos para receber os melhores shampoose cremes. Talvez gaste partes de meu salário com esses cosméticos divinos e cheirosos.
As paredes cheias de minha letra nervosa voltam a me perguntar: E agora?
Sou irredutível: Não quero esta linda maldita peruca, disfarce de fantasma, não quero os lencinhos que sempre ridicularizei, as boinas que amo e ficarãoburlescasseguras apenas pelas orelhas. Vou indignar a calvície, eu a aceitarei.
Tenho câncer sim, mas não morri e nem sei se morrerei. Coisa mais boba, claro que sei, todos morrem, a calvície também morrerá. Espero que antes de mim.


Vana Comissoli

sábado, 23 de junho de 2012

Insanidade (Marcio E. Ochner)

Olhos que avistam dois momentos entre vidros,
Nele a reprodução da minha face.
Jogo-me num instante à eternidade do tempo,
Que se consumeem pensamentos, tedioso,oxidoem vazios.

Nunca achei que fosse tola de acreditar,
De que eu abandonaria o seu colorido,
Você é a luz que enche minhas noites.
És minha inspiração nos dias, em que, não passa de um momento escuro,

Sei que isso logo passa,nesse momento, ficarei dias sem nota-la,
Mais juro que tentarei enxerga-la doutra maneira,
Mais o que sinto, não posso deixarde expressar,
Parece ser pouco, somente para quem nunca teve algo,
é...
Você é meu todo...
Minha insanidade.

Carta para: Cintia P. Ochner

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Drama II (Fred Paiva*)

Não, não é isso...
As lágrimas vieram
e eu já estava ao chão.

Eu cantava
e memórias plimplintavam na pontinha do nariz.
A dor tomava meu corpo,
contorcia-me os rins.

Levantei cambaleante,
a cabeça girava.
Mal podia abrir os olhos,
a boca arreganhada cheia de dentes.

De repente,
senti o parapeito roçar-me o quadril.
E ganhei vôo.
Contorcia-me ainda quando do baque seco.

Houve-me tempo de ouvir um deboche:
"Esta louca se jogou às gargalhadas, feliz da vida."
----

Fred


*Colaborador Ocasional

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Lupanar (Marcelo Lamas)

Na época do cursinho pré-vestibular fui com um amigo numa festa. Dentro da balada, perto do bar, havia um grupo de mulheres. De belas mulheres. Uma delas era sósia de uma atriz que era a bola da vez da Globo, hoje seria uma Isis Valverde. Eu fiquei observando e fiz uma aproximação. Fiquei um tempo ali perto, ouvi algumas coisas que elas falavam em alto tom. Aparentemente estavam ali só para curtir a festa. Puxei conversa, falei pra sósia que ela era a mais bonita ali presente. Ela agradeceu e retribuiu com um beijo no meu rosto. O meu amigo ficou espantado. Queria saber o que eu tinha dito e, quem sabe, repetir aquele golpe certeiro com outrem. Eu não respondi. Idiotice de adolescente. Mas, falei pra ele que, pelas evidências, aquelas meninas trabalhavam em alguma casa de tolerância.
A minha desconfiança virou certeza numa noite que cheguei num lupanar, numa despedida de solteiro - hoje em dia as despedidas não acontecem mais. Mal entrei, já vi a sósia sendo o centro das atenções, cercada por um monte de admiradores. Depois que diminuiu o assédio, me dirigi a ela chamado-a pelo nome, que eu deduzira ser ‘o de guerra’. Foi como se eu tivesse dito uma senha. Ela saiu do meio dos elementos e veio conversar comigo, rapidamente, pois ela estava a trabalho e eu não tinha cara e nem jeito de quem pudesse pagar pelo seu tempo.
E assim aconteceu noutras vezes que fui noutras despedidas de solteiros - como o pessoal casava naquela época, acho que nem tinha tanta igreja pra dar conta. Eu chegava, a sósia vinha me cumprimentar, trocava umas palavras e depois voltava ao seu trabalho de dançarina, performista e atendente sentimental.
Como eu sempre chegava com algum amigo, estes achavam muitíssimo estranha aquela minha intimidade com a sósia. Queriam saber detalhes daquela amizade. Acredito que muitos do nosso meio achavam que eu era namoradinho da meretriz. Acontece que eu era já um universitário e como tal, não teria como manter um relacionamento com uma profissional, que vivia da arte de amar, o que quebraria uma antiga lei da economia.
Mas a desconfiança deles aumentou, numa vez que chegamos lá, a sósia cumpriu o protocolo de sempre, mas pegou a minha comanda e devolveu-me com um carimbo de PAGO e ainda trouxe uma Coca-Cola com gelo. E aí a imaginação deles foi longe. Que tratamento VIP era aquele? E justo da profissional mais famosa de Springfield do Sul? Eu só ficava me esquivando. Nunca disse a verdade.
Todo aquele tratamento começou numa noite de pouco movimento em que ela me entregou seu número de celular num guardanapo. Vez por outra, quando vinha algum forasteiro e me perguntava sobre a vida noturna, eu passava o contato da acompanhante.
Aquele comportamento dela nada mais era que um singelo agradecimento pela indicação dos seus serviços. Se eu contasse, os meus parceiros iriam me acusar de cafetinagem, que até crime é.
Por esse motivo, até hoje tenho relutância em usar qualquer botão da camisa aberto e também me recuso a usar qualquer tipo de pulseira ou corrente de metal no pescoço.


Por Marcelo Lamas, escritor e autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Presente de casamento (Fernando Bastos)

Baseado em uma história real
Como é comum nos dias de hoje, a cerimônia religiosa e a festa seriam no mesmo local. No caso, em um clube famoso da cidade. Em um primeiro olhar, parecia tudo normal.
Os cozinheiros, com suas toalhas sobre os ombros; os convidados, sentados às mesas ou em pé, pelos cantos; os dez pares de testemunhas, em impecáveis trajes de gala, devidamente perfilados, aguardando a chegada da noiva; os pais dos nubentes, segredando a quem estava ao lado, que aquele era o dia mais emocionante de suas vidas; o noivo, sorrindo de vez em quando, para disfarçar o nervosismo; meia dúzia de crianças correndo pra lá e pra cá, alheias a tudo; um cão rodando o pátio à espera de comida; tudo parecia andar conforme as regras.
No entanto, faltava a protagonista. Embora a noiva já havia chegado ao clube, trazida em um carro de luxo importado, para talvez dar boa sorte, ela havia desaparecido. Ninguém sabia de seu paradeiro. Um dos convidados sussurrou no ouvido da esposa, Cadê a menina? Ela respondeu, como se fosse uma vidente, Deve estar no banheiro retocando a maquiagem. Você não lembra que, quando casamos, eu também demorei pra entrar?
Claro que ele lembrava. Mas o motivo pelo sumiço da jovem, isso ele saberia mais tarde, era de outra ordem. A conversa a seguir aconteceu numa sala do clube, enquanto todos esperavam pela noiva. Um homem grande, de terno feito sob medida e uma jovem apreensiva, toda de branco, que segurava bem apertado um ramalhete de brancas rosas, estavam frente a frente. O homem grande, que celebraria em instantes o casamento, sabedor dos desejos divinos, disse com um franco sorriso, Você está radiante, Julieta. Obrigada, respondeu a menina. O porta-voz de Deus perguntou, Trouxe o CD? Claro, tá aqui, disse ela. Quando estendeu o braço para entregar o CD ao homem de Deus, a nubente sentiu o braço tremer. Ele leu, por alguns segundos, o repertório escrito em azul, com a letra dela, nas linhas do encarte,
Someone like you, Adele, música de entrada. Depois, Rihanna, Wait your turn; Mariah Carey, I want to know what Love is; Beyoncé … Já chega!, disse o homem irritado. Jogou o CD no lixo – juntamente com sua compaixão cristã -, e declarou, em tom firme, Com essas músicas, você não vai casar nunca, querida.
Uma lágrima escorreu do olho esquerdo da noiva, borrando a maquiagem. Ela tentou argumentar, São as músicas que eu e Romeu mais amamos, cada uma delas lembra um momento especial em nossas vidas. O líder religioso discordou, São músicas “do mundo”, Julieta, e Deus odeia essas canções. Não fique triste, jovenzinha. Deus sabia que isso iria acontecer e me orientou a preparar uma seleção musical mais adequada ao momento. Agora, pare de chorar, vou chamar minha esposa, que retocará sua maquiagem.
Vinte minutos depois, Julieta, tão bela como jamais Romeu imaginara, ia a seu encontro, para a troca de alianças. Todos se levantaram. Embora sorrisse, era visível uma estranha tristeza em seus olhos, que brilhavam devido às lágrimas contidas.
Quando tocou a marcha nupcial de Wagner, ela não resistiu, e chorou. Seus lábios, no entanto, iam cantarolando baixinho uma canção, que só ela ouvia, a música que ela havia preparado para o momento mais feliz de sua vida:

“Never mind, I'll find someone like you
I wish nothing but the best for you, too
Don't forget me, I beg, I remember you said
Sometimes it lasts in Love...”

sábado, 9 de junho de 2012

Reminiscências no entardecer (Sônia Pillon)

Sentado na varanda, o aposentado mirava o horizonte, onde o sol se despedia e lentamente cedia espaço para a noite chegar. Era o momento em que ele gostava de se isolar com suas recordações. Nessas horas, não raro, soltava discretos suspiros e seus olhos ficavam embaçados. O movimento de vai-vem da cadeira de balanço combinava com o ritmo de suas memórias, entrecortadas e carregadas de nostalgia. Ficava lembrando da família, dos nove irmãos, da dura lida na roça, do breve tempo em que foi estudar no seminário, a mando dos pais, católicos fervorosos... E do dia em que deixou a pacata cidade do interior e se aventurou na capital, aos vinte anos de idade... Lembrou também dos estranhamentos, da difícil adaptação com o corre-corre, da luta pela sobrevivência, da distância da família... Da sua bem conhecida timidez, do primeiro casamento, da distância dos filhos, depois da separação... De quando refez sua vida e foi tocando em frente... As profundas rugas e a fisionomia cansada do octagenário revelavam angústias cuidadosamente guardadas. É bem verdade que ele andava muito esquecido, nos últimos tempos. Tentava lembrar o que tinha almoçado ontem, mas a memória não estava ajudando. “Velho é assim mesmo! O tempo vai passando, os anos vão pesando...” Mas se a memória de curto prazo o pregava peças, ele não esquecia dos tempos de menino, das longas caminhadas para ir à escola e das geadas no inverno. “Lá se vão mais de setenta anos! Quantos já se foram!”, refletia. Ele jamais conseguiu esquecer do dia em que seu avô se levantou bem cedo, se arrumou cuidadosamente, sem esquecer do precioso “rapé”, e rumou corajosa e decididamente até a porteira do sítio. Assustado com esse rompante, o então neto adolescente o abordou, no dialeto vêneto: - Onde é que o senhor vai, nono?, perguntou, apreensivo. - Vou voltar para a Itália!, respondeu o velho imigrante, convicto. Foi somente depois de muita conversa que ele conseguiu tirar aquela ideia fixa da cabeça do nono... Era a vontade de retornar à terra-mãe, história que com certeza se repetiu no coração de todos os imigrantes que chegaram ao Brasil e não conseguiriam fazer o caminho de volta... A noite chegou. Estava na hora de acender o fogão à lenha e se agasalhar, “porque o frio hoje vai ser de lascar”, pensou o idoso, enquanto se levantava lentamente e se dirigia à cozinha.


Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC).