terça-feira, 29 de março de 2011

Fechando o Verão... (Inacio Carreira)

“Amou daquela vez como se fosse a última”, alerta a música popular. Foi o que ele fez, sempre fazia isto, tanto porque nesta vida não se tem certeza de nada quanto por, sempre, procurar dar o melhor de si. Fazer com que sua companheira quisesse repetir a experiência mais uma vez, e outra, e ainda mais tantas. Muitas. Um sorriso malicioso iluminou seu rosto.


Não fosse essa danada chuva e tudo ficaria melhor. Ainda é março, mas o verão já foi, hoje é outono e o tempo não sabe disso? Ou Tom Jobim é que ignorou, dando-se licença poética para escrever a letra? “Águas de março fechando o verão...” que nada. Parece que estão, sim, essas águas, abrindo a temporada de resfriados, pneumonias, maruins, dengue... e da venda dos baratos e efêmeros guarda-chuvas de 4,99 real.


Sim, sim, a terra precisa ser molhada, o historiador grego Heródoto dizia que o Egito - um longo e estreito oásis - é (era) uma dádiva do Nilo. Agora viajei longe... Egito... As coisas para eles não estão bem, também. Nem no Japão. Nem... porra, o mundo todo está uma merda... Com tendências a piorar. Será que foi mesmo a última vez que fiz amor? Tem séria possibilidade de ser, sim... Afinal, saio para a rua e tenho que enfrentar enchentes, trânsito parado, assaltos, enxurradas, barreiras... Não só o homem está em guerra, a natureza também está em guerra contra o homem.


Desvia daqui, pula ali, escorrega, levanta... Parece que estava sendo filmado numa dessas abomináveis pegadinhas que infestam tudo, da televisão à internet. Pegadinhas... Ele gosta de pegadinhas, sim, mas de outro tipo. Novamente a lembrança da mulher, que tem a felicidade de poder ficar um pouco mais na cama, ninho que ainda deve conservar o calor que irradiaram: trabalha somente à tarde, se voltar cedo passa pelo serviço dela. Passa? Já não sabe mais.


Das ruas sobe um cheiro nauseante, misto de cemitério e latrina, água parada e esgoto, lixão e beira de linha de trem. De que adiantou tomar banho? Essas partículas vão grudar em sua roupa, seu cabelo, entrar em seus pulmões mais do que as partículas subatômicas que os técnicos insistem não apresentarem perigo à vida.


Viajou novamente. Mais longe, ainda. Que bom seria “erguer no patamar quatro paredes sólidas”, com o perdão de Chico Buarque, isolar-se do mundo e esperar a poeira baixar. Mas não dá. A vida é pra ser vivida, será que alguém disse isto? Se não disse, ele inaugura a frase. Parece boa. Divagar, divagar... Ter que andar rápido e, ainda assim, divagar. Para não pirar. Não marear. Não chorar. Não voltar correndo e se enfiar embaixo da cama, talvez o único lugar na casa, se não cair muita coisa em cima.


Porque foi pensar isso agora? Não consegue prosseguir, volta correndo para verificar. Lembrou que perto, bem perto, viu viaturas da Defesa Civil. Bombeiros. Mutirões. Os versos do “amou daquela vez como se fosse a última” não saíam de sua cabeça. Premonição. Pesadelo. Peste de coisa ruim que é pensar, pensar, pensar...


Ao chegar ao que fora sua casa, entra nos escombros em busca da companheira, é difícil se orientar, tudo fora do lugar, lugar fora do lugar, lutar contra o quê? Buscava, demente, a lógica dos desenhos dos tijolos, dos blocos, dos azulejos... No que fora o quarto do casal, um ruído seco desvia. Busca-se no avesso do espelho e não se vê.

domingo, 27 de março de 2011

A árvore centenária (Sônia Pillon)

Todos os dias, quando chegava a noite, Sofia se sentava de frente para a grande árvore, do outro lado da calçada. Da varanda da casa, ela admirava a imponência daquele ser vivo, tão altivo, corajoso e saudável em meio à selva de pedra. “Com certeza, tinha sido plantada há mais de 100 anos!”, pensava. Gerações chegaram e se foram, e lá estava ela, grandiosa, firme, impávida...

Quando chovia, as folhas verdes ganhavam uma aparência envernizada, de tão brilhantes, e as gotas de água mais pareciam pedras preciosas. A cada outono, o número de folhas amarelecidas se misturava com as verdes. E quando a enxurrada inundava a rua e arrastava tudo o que via pela frente, algumas folhas caíam como cascata e cobriam o chão. Mais parecia um tapete bicolor a contornar o grande tronco.

Eram nesses momentos que Sofia ficava acompanhando a ação da chuva e do vento, que sacudia os galhos para lá e para cá. Os galhos sempre conseguiam segurar a maior parte das folhas.

O ruído lembrava o farfalhar de um vestido de seda, “daqueles que as mulheres usam em eventos de gala”, imaginava a menina.

O que mais a impressionava era a energia que a árvore transmitia para ela, com suas fortes raízes fincadas no chão e seu tronco largo e maciço. Se sentia tão frágil, em comparação com a grande árvore! Magra, tímida e introvertida, a adolescente sempre se sentia intimidada ao avistar a grande árvore, ao longe...

Não era do tipo que passava as tardes no shopping com as amigas, muito menos nas baladas. Vivia para os estudos, e seu isolamento, muitas vezes interpretado como arrogância e altivez, nada mais era do que fruto de sua própria insegurança.

Ela já tinha lido em algum lugar que para recobrar as energias, bom mesmo era abraçar uma árvore e absorver um pouco da força emanada do tronco, mas nunca teve coragem de atravessar a rua para conferir isso.

Aquela árvore, que sempre atraía lindos pássaros em sua copa, era abrigo do sol e da lua, e também de casais que buscavam privacidade. “Ah, se essa árvore falasse!”, pensou, em voz alta. Até em dia de trovoada, mesmo com os raios, havia os que preferiam se arriscar e ficar embaixo de seu tronco. A centenária sempre transmitia segurança a quem passava.

Em vários momentos, Sofia lembrava da ótica espiritualista, da “árvore da vida”, associando sua estrutura ao corpo humano. E que na Índia, as árvores bodhi são chamadas de “árvores da felicidade”...

Hoje, a maior parte do dia foi quente, e o sol cobriu a árvore com seus raios. O poente se foi há poucos minutos. Ainda há luz do dia.

Como que impulsionada por uma força invisível, Sofia se encheu de coragem, levantou, caminhou até o portão, atravessou a rua e foi de encontro à grande árvore. Ela colocou as mãos no tronco rugoso, sentindo a textura, fechou os olhos e o abraçou, com toda a força. Lágrimas começaram a escorrer de seu rosto, mas dessa vez não eram de tristeza Queria receber toda a energia possível, para se sentir tão forte quanto a grande árvore centenária...

Enquanto abraçava o largo tronco, uma força indescritível tomou conta de todo o seu corpo, e um sorriso finalmente começou a surgir em seus lábios. Sofia ficou por longos minutos ali, agarrada à grande árvore, até que decidiu voltar para casa e tirar a cadeira da varanda, para espanto dos vizinhos. Estava decidida a não ser mais uma mera espectadora na vida!

Lembrou que suas colegas de escola iam assistir uma comédia no cinema, e decidiu confirmar que iria, para surpresa geral. Se sentia forte e pronta para enfrentar a vida, enfim...

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre e há mais de 14 anos radicada em Jaraguá do Sul.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Um pote de Sol (Vilson Rafael Riegel)

Um dia, andando pela rua, vi um senhor sentado em um dos bancos da calçada. Parecia alguém que ficou muito sozinho nessa vida. Seu rosto trazia as marcas de alguém que não sorriu muito e que não teve muito carinho. Seus olhos sempre fitavam para o mesmo ponto, estáticos, congelados ao brilho do sol, um paradoxo que o contexto permite.

Notei que ele ficava nesse banco todos os dias, sempre do mesmo modo, olhando para o céu. Aos poucos fui reparando e notei que além de um copo plástico fumegante contendo café ao seu lado também havia um recipiente de vidro, com uma tampa já gasta. O pote parecia vazio.

Em outro dia, andando pela rua, revi o senhor do banco, que deixara de ser apenas um senhor, à medida que contava aos meus daquela figura que tanto me intrigava. Nesse dia, sentei ao seu lado e sem que eu fizesse qualquer pergunta, sua boca recortada se abriu e ele disse:

- Há dias esperava por isso. – falou sem tirar os olhos do céu – O sol está lindo hoje, não acha?

Eu me limitei a responder que sim. Realmente estava. Quase não havia nuvens no céu, com exceção de um coelho que eu via a oeste...

Sem pestanejar e sem tirar os olhos do céu, aquela voz gutural, pouco usada, voltou a soar, dessa vez mais pesada, mesmo que não pudesse ser:

- Passei a vida contemplando a beleza do sol. Seu calor e sua luz sempre foi o que faltou pra mim. Vivo sozinho desde sempre, pois esta vida não me deu outras opções. O lugar onde moro parece vazio, como este pote que você repara todos os dias. Lá também não é um lugar muito aquecido, tal um coração sem amor. Senti que o único amigo que tive em toda esta vida foi o sol, que me abraçava sem que eu pedisse, sem nunca pedir nada em troca. Mas sempre que chegava a noite, tudo se acabava e o tempo reduzia seu ritmo, no ritmo descompassado de um coração que para de bater.

Após sorver um demorado gole de café, continuou:

- Por muito tempo tentei guardar para mim um pouco dessa luz. Passava dias olhando para o sol, com este vidro em minhas mãos, quando achava que ele estava completo fechava a tampa rapidamente e o guardava comigo. A noite chegava e nada estava diferente, a não ser minha pele castigada pelo constante calor onde o suor escorria e não bastava. Dia a dia eu repeti minha rotina e as noites foram ficando cada vez mais escuras, cada vez mais. A única certeza era que outro dia viria e eu novamente tentaria...

Pela primeira vez o senhor deixava de olhar para o céu e olhou diretamente nos meus olhos. O azul confuso de suas órbitas me deixou estupefato, procurando um ponto fixo onde não havia nada. Em tom de sentença o senhor completou:

- Em uma manhã perdida no tempo levantei daquilo a que chamo cama e me vi mergulhado na escuridão. Maior que os outros dias, tão iguais e tão diferentes. Não vi meu reflexo no espelho. Não vi o espelho. Não vi as paredes. Não vi e não vejo, pois o sol cobrou seu preço, pelo acalento e pelo abraço levou a minha visão para que eu me desse conta de tudo o que não sentia. Pois agora enxergo com a alma...

Vilson Rafael Riegel
vilson@idecom.art.br

quarta-feira, 23 de março de 2011

Poesia (Marcio Ochner)

Um sopro elementar...
formas rebuscadas de intenções...
manchas escuras...de sentimentos e inversões,

apontadoras dominantes que distraem-se no deslizar do lápis...

coisas que esboçam na cabeça de desordenada linguagem...

Simplesmente lançadas... instigando algo,
extraindo um pouco da ansiedade que mora em mim...

desenhando a sombra que se esconde do sol,
em porções pequenas...

preto e branco.

domingo, 20 de março de 2011

Big Besteirol Brasil (Tiago Nascimento)

Taquicardia, ansiedade e sudorese
Uma mistura de emoções a flor da pele
Gritos alucinados quando sai o resultado
Revolta se não lhe for do seu agrado

É o primeiro filho que acaba de nascer?
Quem dera. Nem ao menos o primeiro irmão.
É então apuração da eleição presidencial?
Nem de longe se parece. É apenas programa de televisão.

É amigo, aceitaria até copa do mundo.
Mas um reality show na telinha da TV?
Agora eu entendo o porquê de o fim de tudo
Estar chegando, anunciado e ninguém ver...

É o nascimento dos astros do medíocre
Miopia coletiva engolindo a população
Cada povo tem os heróis que merece
E o BBB vem com tudo e com razão...

 

Prof. Tiago Nascimento
jesuscristohumano@gmail.com

sexta-feira, 4 de março de 2011

Mulheres (Tiago Nascimento)

Mesmo que a noite seja escura

Uma noite não dura para sempre

Logo a mãe vem e lhe assegura

Homem, filho, medo não sente.

E conforme o tempo vai passando

Rapaziada já sabe o que quer

Estará pela vida toda buscando

Substituir essa mãe, por outra mulher.





Minha homenagem para todas as mulheres. As mães, as esposas e as outras.

Tiago Nascimento
jesuscristohumano@gmail.com

NOITE (ou AO VIVO DE UM QUARTO QUENTE E ABAFADO) (Fred Paiva)

enfim
nem tomei banho ainda
só de manhã
e to de sapato desde de manhã
comecei a assistir cinema, aspirinas e urubus
mas não gostei, lento
mas vou terminar de assisti-lo
depois
na real queria tomar uma cerveja
e dançar um pouco
e ver gente
e sentir a brisa fresca do ar condicionado nas costas
me resfriando
as narinas, claro
---
pulei
pronto
e caí de cabeça
num cocozão de cachorro, fumegante
um cocozão de cachorro quente
aqui tá quente e tá foda
vou abrir a janela
e derrubar água na goela
você me mata e uma súbita inspiração bateu na porta
era o amigo chato
do namorado
do vizinho
do andar de cima
numa hora dessas?
isso me mata
me rala a paciência e mói os miolos
no sábado à noite sem nada
sem nata sem pão

- Não, não tenho açúcar!
nem sal
nem saco de aguentar mais uma madrugada no msn
com a cam desligada
ponto final