segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Vontades, anseios e satisfações (Marcelo Lamas)



Quando eu estava à procura de uma namorada fiz uma consulta informal com uma amiga que faz análises do zodíaco, segundo ela, como taurino e com uma ascendência que eu não lembro mais, a minha tendência era me relacionar com uma mulher que cuidasse muito bem de si mesma, que fosse meio patricinha, combinando isso com aquilo: “O taurino valoriza a beleza e gosta de alguém assim”, disse ela.

Refleti um pouco e percebi que ela tinha razão, sempre achei que o esmalte e os brincos deveriam ser itens de fábrica das mulheres.

Depois ela passou um panorama geral de todas as combinações possíveis. Como sou formado em ciências exatas, considerei muito importante todas aquelas informações.

Depois, conheci uma guria e na primeira abordagem, após falar do tempo – estava frio – perguntei:

- Qual teu signo?

- Leão.

Eu não lembrava dos detalhes, mas sabia que os leoninos são líderes, vaidosos, mandões, enfim, os donos da floresta. E também fiquei com a impressão de que a entendida tinha dito que leão só combinava com leão.

Depois fiz outra consulta e a astróloga disse que eu não me preocupasse, que tudo seria uma questão de negociação, eu abrindo mão da teimosia e a outra parte do reinado.

Então eu comecei a conhecer melhor a menina e percebi que ela também prezava muito pela aparência e que seus pais eram profissionais da área, inclusive.

Numa ocasião ela tocou num assunto que persegue os homens: a calvície.

Lá foi o engenheiro aqui pesquisar novamente. Má notícia pela parte paterna, o lado português: todos calvos, meu pai, meu tio, meus primos, foi só conferir a fotografia do time da família Euzébio.

Pela parte materna, o lado espanhol, bem mais cabelos. Na árvore genealógica achei até a bisavó Sabina, que não falava português, uruguaia, castelhana, seguramente tinha aquele cabelo de índio, bem preto, bem farto. Achei uma foto desbotada na casa da minha avó, que confirmou isso.

Passei a crer e a torcer para que eu tenha puxado mais o lado materno neste quesito.

Outro dia, a namorada leonina veio com um papo de que o meu cabelo estava com mais fios brancos aparentes.

Fui investigar e descobri um tal de xampu tonalizante.

Segundo a moça da loja, eu deveria comprar um tom abaixo do meu cabelo original. Como o meu cabelo é preto, ela recomendou castanho escuro.

Estou usando há um mês.

Espero que ninguém perceba.





Marcelo Lamas, escritor. Autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.

Crônica publicada na Revista Blush - Fevereiro 2011.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Ela vai viajar... (Inacio Carreira)

Para Lily Farias


Acordou com um pressentimento estranho... E se não desse certo? Vái-te, coisa ruim, afasta esse pensamento medonho... Afinal, que mal tem sair um pouco de casa? Ver o mundo? Ela, apesar dos 45 anos bem vividos (dentro de suas perspectivas de mundo), nunca saíra de sua cidade natal. Seu torrão querido e mais todos os lugares comuns com que normalmente designamos o “marco geodésico” onde fomos colocados no mundo, dados à luz, o que também são lugares comuns.


Quarenta e cinco anos... 45 anos... Os dez primeiros foram ocupados em aprender a colocar o corpo em equilíbrio, movimentá-lo, fazer dos tartamudeios um discurso inteligível, no mínimo para as gentes que com ela conviviam, que as demais não contavam; cheirar, provar, ingerir o maior número possível de coisas ao alcance das mãos, aprovando e reprovando as texturas e sabores, conforme o acúmulo de suas experiências sensoriais. Conseguiu. Com muito custo. Depois, dos 11 aos 20, mais ou menos, aprendeu a desenhar o nome, ler de “carreirinha” e fugir dos meninos e “dessa gurizada fidamãe” que queriam, a toda força, torná-la mulher. Muitos conseguiram, por vezes ela se deixava pegar, fazendo parte do jogo e tirando, sim, embora negasse ao padre, algum prazer do resultado. Graçasadeus nunca ficou prenhe, isto ninguém podia lhe jogar na cara. Não era como umas e outras que, a partir dos 12, 13 anos, colecionavam filhos, um de cada cor, conforme o grupo de turistas ou caminhoneiros que passavam pela sua pequena Miraflor. Elas, as moças miraflorenhas (somente depois dos 40 soube que as chamavam assim) eram bonitas, fruto da miscigenação (até hoje ela não sabe o significado desta palavra) entre noruegueses, chineses e mamelucos. Não, não vou explicar como se juntaram gentes tão diferentes nesse pedaço de mundo, daria um livro desse tamanho, nem te conto... Essa beleza exótica, que misturava pele alva, cabelos lisos e olhos claros, na maioria das vezes, era estonteante. Quantas promessas, a quanta proposta ela fez ouvidos moucos, pensando no seu “pedacinho de chão”, como dizia, fazendo graça e deixando os convidadeiros com mais vontade de fazer propostas, de levar “recuerdos de Miraflor”. Mas ela não! Tanto que, quase aos 21, juntou pertences, esperanças e “uns arrepios que começavam no alto da espinha e iam até onde nem te conto” com um tal Jão, que veio de algum lugar, filho de quem com ninguém sabe. Apesar das credenciais pouco atrativas, Jão era diferente. Viera de outros lugares, andara por outros mundos, tinha um quê de sedutor que fazia com que ela se esquecesse de tudo, até que havia coisas a serem descobertas, coisas a serem nominadas, saberes a serem sabidos. Ela ficou sendo, a partir de então e durante 25 anos seguintes, a mulher do Jão. E seus dias resumiam-se a arranhar a terra para depositar sementes, arranhar a terra para expulsar ervas daninhas, arranhar a terra para buscar, das entranhas, as raízes que alimentavam a ela e aos seus. Mas, em primeiro lugar, ao Jão. Até que ele (com quem também não procriou, talvez culpa dela, talvez dele, que nunca se soube tivesse deixado mulher cheia) um dia não voltou. Veio o feitor dizer de sua queda, de sua desdita, de seu sumiço na terra que ela tanto arranhava, e que feriria tanto na busca de seu Jão até que o sangue regasse as raízes, suas unhas transformadas em goivas, seus olhos transmudados em cascatas, seu pensamento somente lá. Na terra de Jão. Sacudiu a cabeça, mandando os pensamentos para outro canto, e fez-se bonita, tanto quanto podia, tanto quanto ele a elogiava. Meias ¾, rasteirinha (pode ser longe, fica cansativo ir de saltinho), a saia de pregas que a vizinha, quando engordou, doou para ela, a camiseta do time do coração de Jão e o boné da empresa. Sim, o boné da empresa é que a identificaria no ponto de ônibus, onde depois de uma viagem de mais de 30 minutos, quando descesse, um ex-colega de seu defunto preferido a esperaria, para levar ao campo santo. A terra do Jão. Para onde ela ia agora, visitar o lugar onde depositaram os despojos, chorar sua saudade, levar – talvez – uma de suas raízes para plantar bem onde ele estava, e que as raízes encontrassem seu homem e dele se nutrissem. Ela voltaria no próximo ano, e no outro, e até quando tivesse vida, para nutrir-se indiretamente da seiva daquele que a fizera tão feliz.


Quarenta e cinco anos sem sair do lugar onde nascera. Esperava retornar breve, o mais breve possível, talvez naquela mesma noite, que ficar no mundo tanto tempo não é fácil, não.


Inacio Carreira
associação beneficente novo amanhã / comunidade terapêutica
www.novoamanha.org.br

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Violão (Marcio Ochner)

Dois dedos,
Três,
Notas...
Deslizes entre acordes,
Se dividem em criações de bemóis...
Braço, mãos,

Cordas esgueiram sons,
Produzem movimentos...

Corridas aéreas, sonoras viagens cerebrais...
Do corpo,
Stack:


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O homem sem braço (Sônia Pillon)

Enquanto capinava vigorosamente e retirava as ervas daninhas que insistiam em nascer no pátio, com o único braço de que dispunha, o direito, João ficou lembrando do tempo em que podia tudo, sem restrições.

A alta estatura e o porte atlético sempre garantiram o seu sucesso com as mulheres. Ele completava os atributos físicos com um largo sorriso e constante bom humor.

Foi aos 28 anos que conheceu Valdete, moça bonita, tímida e de boa família, e se apaixonou. Não demorou muito e eles começaram a fazer planos para o futuro. Em menos de um ano se casaram, e o primeiro filho, Leandro, nasceu sete meses depois.

João era respeitado na fábrica. Sua força física e dedicação ao trabalho o faziam um dos melhores operários do setor de auto-peças. Era um dos que mais produzia na seção onde trabalhava, e para ele não tinha tempo ruim. Tudo isso até o dia em que prendeu o braço esquerdo na máquina e quase perdeu a vida. A partir daí, tudo mudou. Foi aposentado por invalidez e teve de aceitar esse trabalho, de auxiliar de serviços gerais na associação, com direito a moradia.



Desde o acidente, seu sorriso desapareceu dos lábios. Passou a ser introvertido e desconfiado de tudo e de todos. Mas o que mais o revoltava era o olhar de piedade das pessoas, que o atingia como uma flecha certeira no peito. Nessas horas, levantava a cabeça, virava o rosto para o outro lado e fazia um esforço supremo para não chorar.

Mas o que mais o incomodava eram as crianças, que cochichavam e riam entre si quando o viam passar, aguçadas pela curiosidade e pelo espanto. Se sentia uma atração de circo.

Mesmo assim, procurava seguir com a vida. Valdete teve mais um filho, dessa vez uma linda menina, Lara, o que confirmava que ele continuava sendo um homem vigoroso, que não negava fogo. Mas ele não acreditava mais em si mesmo. Sua auto-estima tinha caído a zero.

Certa vez uma das adolescentes da vizinhança o viu com a mulher e os filhos, e chegou a comentar com uma amiga:

- Olha só, faltando um braço, mas continua fazendo filhos... Sinal de que para outras coisas ele ainda está inteiro, disse, e as duas sorriram, maliciosas. João continuava um homem bonito e atraente, mas não se dava conta disso. Tanto que naquele momento, o riso das duas pareceu apenas um deboche cruel pela sua condição de deficiente físico. E ele as odiou profundamente!... Seus olhos chisparam, e foi só aí que as duas garotas se deram conta do que tinha acontecido.

Em vão tentaram se desculpar cumprimentando-o outras vezes, com seriedade e respeito. A partir daquele dia, toda vez que via as garotas, ele as virava a cara, demonstrando um profundo ressentimento.

Passou a se isolar mais ainda das pessoas. Evitava ao máximo sair de casa, e em família, passou a ser um pai e marido frio. Começou a evitar a mulher na intimidade. Valdete realmente amava o marido, fazia de tudo para agradá-lo, mas ele via em sua dedicação apenas uma manifestação de piedade, nada mais.

Até que um dia o inevitável aconteceu. João pegou suas coisas e foi embora, sem se despedir de ninguém. Valdete ainda ficou mais uns meses na casa, mas depois também se mudou do bairro, triste e cabisbaixa Dizem que voltou para a casa dos pais com os dois filhos.

Quanto a João, ninguém sabe, ninguém viu...Uns dizem que ele foi ser jardineiro em outra cidade, outros que tinha sido internado numa clínica para tratar de depressão. Mas a verdade é que nunca mais se soube do paradeiro de João por aquelas bandas. Nem se tinha morrido, ou se ainda estava vivo.

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre e há 14 anos radicada em Jaraguá do Sul. Texto publicado na revista eletrônica literária Letras et Cetera, em 19 de fevereiro de 2011.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Bilhete-Soneto (Tiago Nascimento)

Ninguém pediu que ela fosse embora
Mas na gaveta as contas se acumulavam
E não podia pedir um aumento de novo
Por que quem sempre paga o pato é o povo?

Ela sonhava vencer no jovem planeta
Fazia amor, sexo, oral, anal e punheta.
Não achou alegria nem em drinques de plutônio
Mas nisso creu com todos os seus neurônios

Depois, uns dizem que ela partiu pra lua
(talvez a bordo da espaçonave trinta)
Contudo ninguém sabe dizer ao certo ainda


E aqui no solo do pequeno planeta azulado
Deixou o quarto com cheiro de mofo e tinta
E na cômoda este bilhete-soneto que ora finda


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Tiago Nascimento

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Mielinização (Tiago Nascimento)

Saber saber saber.
Os processos de mielinização estão quase se encerrando.
Meus anos passam lentamente, mas parece que fazem várias eras que não vejo o meu amor.
Preciso do seu carinho, do seu beijo, do seu leite.
Vem.
Preciso aprender a te reconhecer nos rostos diferentes que pouco a pouco vem me visitar.
Não precisa ter 50 anos pra começar a esquecer.

As brigas melhores que participei, eu perdi...

E dizem: Necessário se faz
saber ser o que você é.
Mas quem sou eu?

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Sede (Fred Paiva)



Me lembro quando instalaram o bebedouro elétrico na escola. Me lembro bem. Sim, um bebedouro elétrico, desses de aço inox que gelam a água. Colocaram perto das torneiras no canto do pátio coberto. Fiquei estupefato que a escola pudesse bancar um daqueles. Eu e outros tantos. Mas eu era muito pequenininho para fazer qualquer avaliação econômica, tão pequenininho que nem alcançava o negocinho que sai água. Nem eu, nem outros tantos. E por isso construíram um patamar de concreto que serviria de degrau aos mais baixotes. Formavam-se filas para usá-lo. Ninguém mais dava bola pras torneiras ultrapassadas, ninguém mais queria tomar água na conchinha da mão. Coitadas, serviram um bom tempo, mas nesses tempos do politicamente-correto, quem vai deixar as crianças tomando água da torneira? “É só pra lavar a mão”, taxava a inspetora. Minha mãe ainda silabava. “Não pode encostar a boca no negocinho que sai água porque dá boqueira”. Deus meu, o que é boqueira? Um tipo de fungo? Até hoje tenho medo de pegar isso. Credo! Mas meu maior medo mesmo era pegar boqueira e ficarem me zoando, falando que peguei sapinho beijando por aí! Beijar? Mas nunca, morria de vergonha disso. Queria era brincar, só. Já me bastava. Pra que essas melecações de novela? Nem gostava de novela! Só da Tieta. Mas as outras não. Muito chatas. Isso tudo faz tempo. (suspiro). Acordei com vontade de beber água no bebedouro da escola.



Fred Paiva é engenheiro, ator e escreve de vez em quando.