sexta-feira, 26 de julho de 2013

Indecisão (Inacio Carreira)

Não. Não estava contente com sua vida: era secretária, telefonista e recepcionista naquela pequena empresa onde a dona – uma divorciada frustrada com suas vidas, a amorosa e a profissional – procurava tirar o máximo de cada um. Ela, por estar próximo da Dona, sofria mais: era saco de pancada, boneco vodu, pau pra toda obra... Chegando em casa, à noite, a solidão tomava conta de si. Se no trabalho falava com todo mundo, obrigação das funções, no prédio não conhecia nem o vizinho do lado, nem o de baixo. Por sorte morava no último andar, o que evitava ter um vizinho “de cima”. Em cima dela só Deus. O que, dependendo do ângulo pelo qual se veja a situação, era uma pena.


Embora não fosse vaidosa, era bonita. De uma beleza singela, de uma boniteza quase comum, sem o ser. Por não ter filhos, por não ter casado (era o que pensava) conseguia manter sua silhueta elegante, o que fazia ressaltar com roupas que modelavam suas formas. Sem apertar, que esse negócio de provocar para ser chamada de gostosa, no meio da rua, não era do seu feitio. Um galanteio era bom, mas grosseria! Uma conhecida, há muito, repetia embevecida as frases endereçadas a ela, pelos rapazes, quando passava na Calle Florida, em Buenos Aires: Você é a rosa que falta no meu jardim; Se minha mãe te conhece me obriga a casar contigo; O sol não saiu hoje com vergonha de sua beleza... Galanteios, coisa que pensava esquecidos. Será que ainda era assim? Aqui, não, tem certeza.


Não conhecia nem o porteiro do prédio, pois quando chegava ele ainda não estava no serviço. E sair, que é bom, quem a convidava? Sozinha? Ir onde? Ainda se ela fosse médica, os clientes (ou pacientes?) a procurariam para falar de suas quizilas... Fora de hora, dentro do horário, a qualquer momento estaria disponível para atender sua clientela. Ao menos é o que pensava, lembrando que sua médica, na real, sumia do mapa logo após o término da consulta: teve necessidade de conversar, estava passando mal, mas qual o quê... Contato? Lembra da complicação para escrever para o Fantasma que Anda? Os pigmeus pegavam a correspondência na caixa postal e a colocavam num determinado ponto da Caverna da Caveira. Eita, quanta abobrinha...


Advogada também gostaria de ser. Os seriados que acompanhava, na TV, mostravam o lufa-lufa de um escritório envolvido com escândalos, processos, gente que entra, telefonemas intermináveis noite afora, tribunais... Damages era sua série preferida, pena que terminou. Nela, a grande artista Glenn Close brilha da primeira à última cena no papel de Patty Hewes, advogada em Nova York. Sim, seria bajulada, jantaria em restaurantes da moda aonde iria pilotando o carro do ano, tão bem vestida como a Papisa da Inglaterra, ou mais, teria lugar especial, mesa especial, companhia especial. Tudo do bom e do melhor para ela, a Rainha dos Tribunais!


Ser ativista. Será que isso é profissão? Participar de movimentos, passeatas, insuflar greves. Berras slogans. Jogar pedras (não na Geni)... Exibir seu corpitcho na Marcha das Vadias. Teria coragem para fazer topless? Se fosse para as ruas era para o que desse e viesse, achava que tiraria, sim, a parte superior da roupa. Adeus, sutiã, Viva Betty Friedan... Se os homens ficam com o tórax nu na praia, no campo, até nos jogos de futebol, porque esse preconceito com elas? Se eles ficam excitados vendo peitos femininos (Édipo explica), que culpa tinham as mulheres?


Bah (vão pensar que eu sou gaúcha, isso que dá atender gente de tudo que é parte do Brasil) ... E jornalista? Talvez editora de moda, como aquela do filme O Diabo veste Prada, que diaba que era aquela mulher... Meryl Streep não merecia um papel desses... Mas que estilo! Que finesse! Eu não seria tão ruim assim, tão cheia de picuinhas, pra que espezinhar os outros como eu, que sou diminuída, sempre, cada vez que a Dona dirige a palavra à minha pessoa? Olha, já estou pensando como jornalista. Será? Viajar no avião do Papa, acompanhar aquela multidão. Conhecer médicos, advogados, cantores, artistas de novelas, tudo, tudo...


Conhecer cantores. Conhecer cantoras. Êpa! Aquela notícia caiu como uma bomba, deixando de olhos abertos e bocas escancaradas os moralistas de plantão. Ela não. Já vira tanta coisa na vida. Também, pra ficar sozinha como eu, ouvindo desaforos, sonhando com os impossíveis, até que topava entrar numa dessa. Será que aquele “Mercury” já era prenúncio de alguma coisa? Escolher logo o sobrenome do Fred, ícone pop capaz de deixar de pelos em pé os homofóbicos de plantão... Sério. Quer saber? Tenho preconceito não. De todas as possibilidades acima, resolvi: Quero ser Malu Mercury!


Inacio Carreira

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Amizade (Patrícia Grah)



Olho ao meu redor e o que vejo são nada menos que fragmentos do meu passado.

Amigos... Ah, os amigos! Que momentos incríveis passamos juntos à eles!

Uma pelúcia recebida como presente de aniversário há alguns anos conta uma história, assim como aquele livro, já amarelando e datando outro momento, conta outra. O porta retrato, recebido por outro, marca um momento único que é relembrado com certa frequência por estar sempre à vista. Um CD conta outra história, um enfeite lembra outra e junto à isto, é inevitável sentir uma certa nostalgia, que se mistura à saudade, que se junta às lembranças de um tempo que não volta mais: dos choros, dos risos, das festas, das discussões, das brincadeiras, dos abraços... Pois mesmo que o tempo passe e a amizade perdure, ela jamais prosseguirá igual. Haverão sempre altos e baixos e sua importância poderá ser ponderada por terceiros.

Por hora, sofremos por nossos amigos, compramos brigas até mesmo supérfluas por eles, e por via, nos decepcionamos por não sermos correspondidos da mesma forma. Mas a questão é que a amizade é um amor imensurável e cada um o sente em uma feição única!

Sofro pelos meus, sinto  coração doer ao vê-los sofrer. Prefiro a honestidade em primeiro lugar, porque a verdade sempre prevalecerá.

Mas uma coisa é certa: se a amizade for verdadeira, ninguém e nem o tempo irão apaga-la! Afinal, como dizia Mário Quintana: “A amizade é um amor que nunca morre!”



Que assim seja!

sábado, 20 de julho de 2013

Cisne Negro (Vana Comissoli)

Eu chorava escandalosamente e as asas se abriram em todo seu apogeu, não me incomodei em atrapalhar o cara ao meu lado, encolhido no seu não espalhafato. A emoção era gigantesca, talvez exagerada, mas o que a beleza não faz com a gente?


Acordei com minha mãe me chamando daquele jeito meio ridículo, amaciando a sinuosidade de meu nome, não entendo por que ela faz isso se foi ela mesma que me deu esse nome assim torcido e ambíguo.


- Ama  ryllis!


Grafava no tom de voz as duas primeiras sílabas e escondia o resto quase num sussurrar. Só faltava arrancar as cobertas e me tapar os pés.


Eu me deito e puxo o edredom até que cubra a cabeça, depois suo e acho bom a mornidadão molhada que escorrega em mim fazendo com que seja fácil transitar pelos túneis noturnos que toda noite encontro. Toneladas de terra que não me sufocam e permitem que eu nunca veja a luz solar que me torra os miolos e expõem minhas coisas mais secretas, tão secretas que nem eu mesma sei o que são. Não teve análise, psicanálise levantando véus para mim.


Depois ia para a aula e tirava sempre dez aplaudido por todos e eu sabendo que não sabia nada daqueles números todos e fingia que sim acertando problemas de álgebra e logaritmos e todos nomes sem significado enquanto as palavras se atropelavam sem ir a lugar algum por que não entendia de alma das palavras e nem os fantasmas que moram nelas, mas sabia compô-las com esmero. Futura escritora, era a certeza da plateia que minha mãe reunia. De coisas mortas pensava eu olhando o papel cheio das cobrinhas desenhadas por minha letra. A reunião , eu sabia, não era tanto pelas minhas conquistas, mas para mostrar como ela fizera uma filha tão inteligente.


Fui sabendo mais coisas enquanto continuava a dormir soterrada pelo edredom e ouvindo todas as manhãs o chamado ridículo com o qual comecei a implicar sem perceber e que afinal eu gostava tanto por que soava como amor, mas amor era uma coisa plástica que se resumia a letras as quais eu não entendia nada.


Uma vez me disseram que eu devia ter muita raiva, nem sei quem disse esta idiotice já que era tão gentil e sorrir era meu forte, adorava dar presentes e resolvi visitar doentes num hospital levando flores das quais nunca soube o nome. Nem conhecia os tais doentinhos e não gostava do cheiro de formol que tinham. Não ligava por que eu também não entendia nada de doenças e nunca respirara formol na minha vida. Era apenas mais um ato para encantar mamão e motiva-la a muitos outros chá com bolinhos e amigas.


Eu tropeçava todos os dias e caía de formas que ninguém nunca caía e era a rainha do joelho ralado e isso doía e eu sabia muito bem. A dor faz parte da vida, me diziam e sem entender achava que sim afinal vida e esta coisa que acontece todos os dias quando eu saio dos túneis mornos e suaves de meus sonhos. Bem pouco suaves já que tinha pesadelos à beça o que era muito desesperador, o sentimento deles era real para mim..  Eu não contava para ninguém sobre isso, seria feio demais dizer que uma alma tão gentil tinha pesadelos de monstros e de sonhos esquisitos que atormentavam minhas noites com um aconchego indevido.


- Ama ryllis!


A cortina foi aberta e a luz do sol entrou secando minha pele deliciosamente suada. Minha mãe não tinha cara já que estava contra a luz e eu só enxergava o negro silhuetado em que se transformara. Nem sei o me deu naquela hora, mas sei que deu e bem vi o rabo fino saindo lá da outra ponta do edredom e não parecia nem um pouco uma minhoca com aqueles guizos se sacudindo num barulhinho estranho que logo escondi me tapando toda e respondendo suavemente que já ia, já ia...


Afinal para onde ia eu sem entender nada deste jeito e louca de medo de ter um guizo de cascavel, tão suave e gentil menina de camisola rosa deitada nos lençóis macios e floridos como dia de primavera eterna que era minha vida doce, doce como mel. Não sei bem como me lembrei da doçura enjoativa do mel e não daquele jeito de lamber os beiços que as pessoas usam para o mel. Senti a picada da abelha escondida no mel, afinal elas são ou não são as donas dele e nós roubamos em aviso nenhum?


Era uma abelha das grandes toda listada de amarelo e preto e tinha uns olhos redondos iguais aos olhos de minha mãe. Sentou-se na poltrona de meu quarto me mandando escovar os dentes direito e não deixar os cabelos emaranhados coisa feia para uma menina. Depois foi voando e zunindo atrás de mim enquanto eu corria e corria para fazer a tempo aquele monte de coisas que mandava e ainda assim não me atrasar para a aula pois fica muito feio uma menina assim delicada se atrasar.


A abelha ficou dizendo tchau Amaryllis e foi pela primeira vez que percebi como meu nome sibilava combinando com aquele rabo de cobra que nem vou falar muito alto para não ser de verdade, embora eu achasse tão bonito seu cascalhar. O nome sibilava sim e fiquei ouvindo aquele sssss a aula inteira, achando lindo, lindo e olhando para os lados para ver se ninguém via como eu estava achando bonito e gostando muito mais do que das letras abertas do início dele.


Pela primeira vez a professora me perguntou o que estava acontecendo pois estava distraída e falou alguma coisa de passarinho verde e eu nem sabia que existia passarinho verde. Assim distraída eu percebi que as letras tinham sim um humor e diziam coisas fantásticas falando ao meu ouvido o tempo , saltando do quadro numa bela dança que tanto podia ser flamenga como mudava o rumo para um rock batido e até um tango dramático e mortal.


Foi um deus nos acuda, chamaram a diretora e a moça que fingia de enfermeira também pondo a mão na minha testa por que eu estava dançando com as letras e as equações pularam do meu caderno e os números dançaram um samba canção para me fazer entender de uma vez por todas como 1 mais 1 era mesmo dois, ou nem sempre e outras coisas que até então eram grego para mim.


Levaram-me para casa e a abelha lá estava chorando e arrancando os pelos do corpo desesperada e eu ria, ria por que nunca tinha visto abelha arrancar pelos e era para lá de gozado. O ferrão da danada apareceu e vi que tinha um veneno terrível que instilava nas minhas veias me chamando de filhinha e fazia um rombo enorme no meu braço. Lembrei-me que abelha africana é mesmo das brabas e a gente precisa matar sem dó. Era a abelha ou eu! Dei o bote sem me preocupar com o rabo que deixou de se esconder balançando no ar toda a vez que aparecia uma abelha para picar o meu caminho.


Foi nesta noite que minha mãe pela primeira vez disse meu nome por inteiro, com todo seus esses e is seguido de um boa noite sem ficar me enchendo o saco me forçando a rezar umas rezas que eu não sabia bulhufas sobre seu significado e muito menos acreditava.


Foi bom rezar baixinho, entendendo tudo sem estar com a cabeça enfiada nos travesseiro e atirando o edredom no chão, uma vez que fazia trinta graus todos os dias deste verão sufocante. A luz de cabeceira ficou apagada também pela primeira vez e não senti medo nenhum, até levantei calmamente e fechei a porta que nem sabia se fechar, mas aprendeu ligeirinho.


Estiquei-me na cama de um jeito gostoso, as pernas se alongando até mais não poder, tinha pensado que estavam enguiçadas e não soubessem se esticar. Tive um orgulho imenso daquele guizo que aparecia lá embaixo e sacudi bem para ouvir seu som bonito e sabendo muito bem que sempre que eu precisasse ele estaria ali para me salvar de ser picada por uma abelha africana das malvadas mesmo.                                                                        Vana Comissoli

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O ritual (Fernando Bastos)

Os pais de Masoud, juntamente com parentes e amigos, chegaram ao Brasil alguns meses depois da revolução iraniana de 79, que trouxe os aiatolás ao poder no país. Embora seus pais acreditassem em Alá e no profeta, procuravam, na medida do possível, ter um estilo de vida semelhante ao povo do ocidente.  As festas ocasionais em que recebiam um grupo seleto de amigos eram celebradas com vodka e cerveja. A música vinha de fitas k-7 compradas de um vendedor clandestino; o repertório ia de Bee Gees a Iron Maiden, tocados bem baixo para que a polícia religiosa não ouvisse.


Já em solo brasileiro, Masoud foi para a faculdade cursar engenharia e lá conheceu seu melhor amigo, Lúcio, um porra-louca, como se dizia à época. O amigo brasileiro de Masoud era um ex-seminarista, deixara o curso de teologia na metade após verificar as incongruências das religiões, e baldeou para algo mais terreno: a filosofia. Apesar do ateísmo de Lúcio, o jovem iraniano nunca o discriminou, embora sempre que podia, tentava trazê-lo para sua fé.


Nas vezes em que vinha com esse tipo de conversa, Lúcio dizia, Cara, respeito tua crença, mas comigo não funciona. Não consigo acreditar em algo que não se pode ver e nem provar que exista. E ouvia como resposta, Irmão, um dia Alá, louvado seja o Seu nome!, irá transpor o muro de pedra diante de seu coração, e se revelará em toda Sua glória.


Masoud e Lúcio estão num bar, bebendo cerveja e relembrando os tempos de faculdade. Havia dez anos que não se viam. Lúcio pergunta, Como está a vida de casado? Ótima, irmão, responde Masoud. Nahid também é iraniana. E crente, Inshalá!


Filhos?


Temos uma filha. Yasmim faz oito anos amanhã. É nossa princesinha, linda como uma flor do campo. Será a melhor festa de aniversário que ela já teve. Sabe, irmão...elas ficam um pouco assustadas quando sabem que chegou a hora da visita de uma midgaan. Então, prometi que se ela cooperar, teria a melhor festa de sua vida. Claro, não contamos como é que a coisa funciona, mas é melhor ela saber só na hora.


Lúcio olha espantado para homem de barba a sua frente. Parece não acreditar no que está ouvindo. Irmão, disse penosamente, você vai circuncidar sua filha? Sim, por que não?, confirma o iraniano. É nossa tradição, e é uma recomendação do profeta, que a paz esteja com ele!


Masoud, você leu o Corão? Li, é um dever de todo crente. Lúcio o olha gravemente e pergunta, Por acaso lá está escrito que os pais devem circuncidar as filhas? Não, mas há os hadits...Lúcio o interrompe tentando manter a calma, Masoud, você sabe quantos hadits existem? Bem, são muitos, não sei dizer quantos, mas Deus os enviou ao profeta...


Você está enganado, irmão, assegura Lúcio. E explica, buscando na memória o que lera a respeito do Islã:  Al-Bukhari, um respeitado historiador disse haver 7.275 hadits genuínos, mas 600 mil eram falsos, inventados. Contudo, para Fatima Mernissi, escritora marroquina, mesmo aqueles “originais” não são totalmente confiáveis. Por exemplo, um hadit compara a mulher aos cães e jumentos, pois os três atrapalham as orações. Para Fátima, o autor desse hadit, Abu Hurayra, sofria de sérios problemas de ordem sexual, e era inimigo feroz de Aisha, a mais amada das esposas de Maomé. Uma vez, Aisha teria dito a Abu que seu marido rezava junto de suas esposas e nunca falou que elas o atrapalhavam. E quanto à circuncisão, há dois únicos hadits que o mencionam, mas já comprovados como falsos pelos eruditos islâmicos.


O iraniano retruca, O que você entende de nossa cultura, irmão? Ainda o amo, meu amigo, como se fosse da minha família, mas o que você diz é inaceitável. Masoud, meu irmão, disse o outro, segurando-o pelos ombros, como se quisesse despertá-lo. A circuncisão é uma prática antiga, já existia há cinco mil anos no Egito. Alguns estudiosos acreditam que se tratava de um ritual de iniciação; outros, um método profilático contra doenças provocadas pela areia do deserto. Com o tempo, líderes religiosos mantiveram o costume, pois perceberam que podiam frear o desejo feminino e evitar que as mulheres se tornassem prostitutas.


Todavia, a crença de que a cirurgia vai diminuir ou eliminar o prazer sexual da mulher é fruto da ignorância, Masoud, não quero lhe insultar, uso o termo ignorância no sentido de desconhecimento, pois muito mais importante que um detalhe anatômico para obtenção do prazer na mulher, são os fatores psicológicos e hormonais. Tecnicamente, a mulher mesmo circuncidada, poderá ter prazer na relação, mas devido aos traumas da operação e a educação recebida desde pequena ela acreditará que estará cometendo pecado se por acaso sentir satisfação no ato. Assim, ao casar, sua vida sexual se resumirá em dar prazer ao marido e gerar o maior número de filhos possíveis. Você conhece as consequências para as meninas circuncidadas? Muitas delas podem sofrer dores que vão durar meses ou anos; infecções que às vezes levam à infertilidade, sem falar...Sem falar o quê?, pergunta o iraniano, interrompendo o próximo gole e depositando o copo de cerveja à mesa.


Yasmim está em seu quarto, deitada sobre um tapete. Amanhã é seu aniversário, quando ganhará muitos presentes. Mas hoje é o Grande Dia, quando lhe será arrancada a carne do pecado e se tornará pura. Ela não sente medo, apenas está curiosa. Seus olhinhos giram lépidos observando a mãe e as tias ao redor, que lhe sorriem; sorriso de um pacto de segredo. A menina ainda não sabe. Só saberá quando a midgaan chegar. E a mulher responsável pela ablação não tarda. Foi recebida à porta de entrada pela empregada da família e conduzida ao quarto, onde o cordeiro foi preparado para o sacrifício, e seu sangue infantil alegrará a Deus, assim pensam as mulheres que se espremem em torno da inocente vítima.


Primeiro, a midgaan faz um sinal com o olhar, e duas tias abrem as pernas magricelas de Yasmim, que arregala os olhos. Agora sim, há medo em seu olhar. Num gesto de autodefesa, a menina tenta segurar o braço da mãe,  talvez implorando um colo, ou que a leve dali, coisa boa sabe que não é. Mas a mãe recua, afastando o braço de Yasmim, tentando segurar uma lágrima.


Em seguida, a mulher do ritual se ajoelha e começa a procurar a carne que será extirpada; assim que encontra o clitóris, passa a espremê-lo como se estivesse ordenhando uma vaca. A midgaan já perdeu as contas de quantas meninas mutilou. Sente-se honrada, por estar cumprindo ordens divinas e, naturalmente, feliz por levar alguns trocados para casa. Yasmim será apenas mais uma. Ela trouxe a tesoura, que irá cortar os pequenos lábios vaginais e o clitóris. Nesse momento vai ouvir Yasmim gritar desesperadamente, de modo que já alertou as mulheres para segurarem os braços e pernas da criança com toda forca que puderem. Vai sair muito sangue, por isso ela trouxe uma grande toalha felpuda. Assim que a operação terminar, irá suturar os grande lábios com uma agulha comprida, mas deixará um pequeno orifício do tamanho da cabeça de um palito de fósforo para permitir a passagem da urina e do ciclo, quando ele vier. Fim da operação, a arrancadora de clitóris irá cortar o fio excedente com os dentes, e irá embora, satisfeita por mais uma missão cumprida.


Masoud está assustado. Vai para o ponto de ônibus e, quando entra, senta próximo à porta. Sua frio. Reza freneticamente, balançando o corpo para frente e para trás, Alá, louvado seja!, é um Deus piedoso e benevolente, jamais permitiria causar dor a um crente, quanto mais a uma inocente menina. Preciso chegar rápido para salvar minha princesinha. Oh, Grande Alá, permita que eu chegue a  tempo de evitar. Ao descer do ônibus, vê uma aglomeração do lado de fora de sua casa. Um veículo do Samu, enfermeiros, uma maca coberta com uma capa cor cinza. Não quer acreditar, procura entre as mulheres que pranteiam, os rostos de sua mulher e de sua filha amada. Encontra a esposa, recostada na parede da casa, parada como uma estátua, os olhos olhando para o vazio. Masoud deixa escorregar da mão o presente que havia comprado de manhã, uma boneca que fala entre outras coisas, “Papai, eu amo você.”

terça-feira, 16 de julho de 2013

O milionário e o Mendigo (Sônia Pillon)

Anderson fixou os olhos nos lençóis brancos de seda, preguiçosamente. A claridade da janela e o movimento suave das cortinas de voil cor de marfim deixavam os raios solares invadirem o seu luxuoso quarto. Sendo o filho do banqueiro e único herdeiro, se sentia à vontade para esticar um pouco mais o sono, em plena manhã de domingo.


A certeza de que era um milionário o fazia sentir poderoso, acima dos demais. Enquanto o mundo enfrentava uma grave crise econômica, especialmente na Europa, ele estava ali, seguro em sua mansão, rodeado de criados e cercado de mimos. Enquanto muitos contavam as moedas para sobreviver, ele não precisava se preocupar. Mesmo com as taxas menores, por causa da concorrência com outras instituições bancárias, seu pai Nestor, aquela velha raposa, sabia como garantir os lucros.


Ao pensar nos negócios do pai, Anderson resolveu pular da cama e se dirigiu ao armário. Escolheu um terno italiano e um sapato de pelica que combinavam perfeitamente com a camisa e a gravata. Precisava estar bem alinhado para a recepção de 50 talheres no Royal Hotel. A high society, alguns emergentes espalhafatosos e a imprensa estarão lá, à sua espera.  - Não posso decepcioná-los, disse para si mesmo, em frente ao espelho.


Enquanto dava os últimos retoques no nó da fina gravata, sorria por dentro. Tinha 28 anos, um corpo bem distribuído em 1,92 de altura, e tinha plena consciência de que era um dos solteiros mais cobiçados do país. Se olhou mais uma vez de alto a baixo em todos os ângulos e finalmente se sentiu pronto para brilhar, mais uma vez. Se reconhecia um homem vaidoso e gostava de sentir que despertava a admiração e a inveja das pessoas.


Pegou a chave da Ferrari vermelha e se dirigiu à garagem da mansão. Ao virar a chave da ignição, ouviu uma forte buzina e a voz de um homem, que gritava em direção a ele.
– Sai daí, ‘seu’ vagabundo!
– O que??? Como se atreve? O senhor sabe com quem está falando?!, retruca Anderson, indignado.


De repente, o cenário muda completamente. Anderson abre os olhos e vê um homem de terno e gravata saindo de uma Ferrari vermelha, avançando em sua direção. Para seu desespero, agora Anderson volta a se ver como realmente é: envolto em roupas rasgadas, deitado em um colchão velho, cabelos desgrenhados, sujo e descalço. Envergonhado, se apressa em se levantar, de cabeça baixa, enquanto lágrimas tomam conta de seu rosto. Desde que perdeu tudo na jogo, naquele maldito cassino de Las Vegas, essa era a sua rotina diária. A barriga roncava e doía de fome.


Decidiu se juntar aos outros mendigos da rua, excluídos sociais como ele, mas solidários na miséria.
– Pelo menos eles dividem o pão e a cachaça, pensou. O maior temor de Anderson era ser queimado vivo, como o Galdino, aquele índio pataxó, assassinado covardemente por jovens de classe média, em Brasília...

sábado, 6 de julho de 2013

Motivos para escrever (Marcelo Lamas)

Estou completando 18 anos neste “ofício de juntar palavras”, como disse Drummond. Começou cedo minha admiração pelos impressos. Não havia o Google, achei importante manter uma fonte de informações e comecei a colecionar jornais. Consegui convencer minha mãe a gastar o salário integral de um mês de trabalho para comprar minha primeira máquina de escrever – um instrumento no qual você batia na tecla e a impressão saia automaticamente: “Marcelo, tu vais usar esta máquina? Só vale a pena comprar se tu fores usar bastante”. Usei e muito.
Ainda adolescente iniciei escrevendo para as seções de opinião, no RS. Quando mudei para Jaraguá do Sul tive dificuldade para publicar minhas ideias. Fiz uma pesquisa e quase não apareciam opiniões femininas. Pensei em escrever usando um pseudônimo de mulher. Depois, decidi que tinha que ter um “cargo”. Então, fundei uma “entidade”, que nem estatuto tinha, era o presidente. Hoje entendo que os espaços eram mais restritos e que os jornais não eram diários.
Um dia uma menina de onze anos sugeriu que escrevesse as histórias engraçadas que contava. Procurei aprimoramento, fiz cursos e oficinas para escritores e passei a dedicar-me às crônicas. Participei de antologias e publiquei um livro solo. Ainda está viva no meu DNA a obrigação social da época das opiniões. Fico imaginando ter um calçadão exclusivamente para pedestres – como o nome sugere – e deixar todos os semáforos “piscando” depois das 23h. É muito estranho ficar parado esperando um assalto às 2h da madrugada.
Por outro lado sou um contador de histórias por causa da Susana, era o babá da minha irmã. Quero ressaltar que só escrevo porque existem os leitores, senão guardava meus manuscritos num armário.
Meus amigos confidentes concordam comigo quando digo que as melhores histórias – ou trechos – são aquelas que não posso escrever. Não faltam transgressões, vindas de muitas direções, querendo descer pela ponta da minha caneta. Sigo a doutrina de Mario Quintana: “Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão”.



quarta-feira, 3 de julho de 2013

Voar, sonhar e vencer (Elianete Vieira)

Voar, voar

Subir, subir

Alcançar as nuvens

Emparelhar com pássaros

Observar tudo encolhendo

Mirar o sol oculto na cidade

Outro angulo de visão

Sensação de liberdade

Em meio à imensidão.

 

Azul e branco formam as mais diversas formas na mente imaginativa.

Um momento temporário.

Subindo, subindo, até o meio do trajeto de 40min

Logo, descendo, descendo... Chega-se ao chão.

Tudo na vida pode ser assim: Planejamos, sonhamos, voamos e se não for bem estruturado, planejado, podermos cair, cair, cair.

Costuma-se dizer "voe mas com os pés no chão".

Não tenha medo de sonhar e voar, isso faz parte do viver, crescer e ser alguém um dia.

Não permita que seus pés criem raízes. Eles precisam circular e conhecer novos lugares, novas pessoas, novas experiências.

Idealize seus próximos 5, 10, 20 anos, o que estará fazendo e quem será no futuro. 

Olhe para trás, para o que já fez para alcançar seus sonhos, identifique seuserros e acertos.

Comemore cada momento, seja feliz todo o tempo, sorria!

A viagem está apenas começando. Mais um sonho será realizado.

- Senhores passageiros, dentro de alguns minutos pousaremos no Aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro.

 

Elianete Vieira

 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Labirinto do Tempo (Robert Brotzke)

Vejo o tempo passar depressa, num descompassado ritmo diante dos meus olhos. Por momentos despercebidos, poderia até não identificar quem eu era, até que meus pensamentos voltassem lúcidos neste novo instante. Mil e uma alternativas estiveram na minha frente, inúmeras escolhas passaram pelas minhas mãos, e tudo o que eu precisei fazer em todas elas, foi segurar ou largar a chave que abriria a porta desconhecida, ou apertar ou soltar a mão da pessoa que chegou na minha vida.

Tudo esteve necessariamente dependente das minhas decisões, mas poucas foram as vezes que eu as tomei com total lucidez sobre os prós e os contras que elas traziam consigo. Na grande totalidade, sequer dei importância ao que precisava ser decidido, com tanta urgência daqueles que precisavam saber qual era a minha escolha; eu me utilizava apenas do que era mais viável e prático pra mim no momento, incorporando inconscientemente uma dose elevadíssima de egoísmo.

Porém, tinha que pensar em mim mesmo, nas consequências que os caminhos me trariam. Será isso a explicação da frase da música dos Titãs: "O acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído"??

 

Os ponteiros do relógio não se cansam de trabalhar, mostrando a ilusória noção exata de cada segundo que vivemos. O que pode ser mais demorado: um segundo de cochilo, ou um segundo olhando no fundo dos olhos da pessoa que faz nosso coração acelerar? Não deveriam valer os mesmos 100 milésimos cada um deles? Um segundo pode ser esquecido já no segundo seguinte, e outro segundo pode ser lembrado durante décadas.

 

Pela contagem padronizada que temos do tempo, vinte e sete anos já me passaram, onde cada instante teve um significado relevante para mim (até mesmo um cochilo pode ter sido decisivo, para que eu não sofresse nenhum acidente, ou adoecesse pela fraqueza do corpo), e muitos outros instantes ainda estarão ao meu alcance, necessitando de decisões instantâneas em cada um deles. Há um tempo atrás, isso me causava temor, por talvez não ter feito as escolhas certas, mas isso já não me perturba mais, pois vivemos diariamente em uma espécie de labirinto de perspectivas, onde mesmo tomando a decisão errada, seguindo por um caminho que não deveríamos passar, iremos mais cedo ou mais tarde nos deparar com um muro intransponível, que nos obrigará a retornar e voltar ao ponto de origem. Por mais que haja teimosia em querer provar para nós mesmos que estamos certos, perceberemos que não existe outra escolha. 

Normalmente quando caminhamos por um caminho desconhecido, prestamos atenção a cada detalhe, valorizando a totalidade de cada segundo, porém quando repetimos o caminho (ou a atitude), já sabemos até onde podemos chegar, e isto já não passa a ter tanta importância. Assim, ao longo dos nossos dias de vida, teremos a lembrança das coisas novas que fizemos, dos momentos inesquecíveis da viagem que sonhamos, das surpresas que a vida nos trouxe, das palavras amigas de alguém que nos mostrou a saída do fundo do poço, dos instantes mágicos que passamos ao lado da pessoa que nos fez sentir amor... mas esquecemos um segundo, uma hora, um dia ou até mesmo um ano que não agregou nada do que já sabíamos. Todos os segundos possuem o mesmo tempo, o que os eterniza é a importância que damos a cada um deles, e acredite: um simples cochilo ou suspiro, perdido no meio de um dia comum, pode mudar completamente o segundo seguinte.

 

Robert Brotzke