sábado, 29 de janeiro de 2011

Conto para esquecer (Inacio Carreira)

Para Yasunari Kawabata e
Gabriel Garcia Márquez,
de felizes memórias


Pensando bem, no final das contas o fato de ter visto tanta coisa neste mundo de meu deus fez com que ele como se não houvesse captado nada do entorno e permanecesse agora, nesse fim de viagem, quase virgem. Seu cérebro, tal qual nascituro. Vazio.


Mas de uma coisa ele não esquecia: a particularidade anatômica, íntima, de uma mulher. Toda vez que a via – e viam-se pouco, embora morando na mesma e pequena cidade – vinha à sua memória, gasta pelos anos [ele sentindo algo semelhante a pudor, vergonha?, procurando desviar os olhos do olhar da dona. Que talvez nem o conhecesse, ou nem o reconhecesse, apesar de bem mais nova e, com toda certeza, não sofrendo dos lapsos que o atingem]. Mas, se os olhos não se cruzam, ele não pode impedir que seu próprio olhar, entre matreiro e dissimulado, dirija-se ao ponto X.


Não que tivesse intimidades com ela, não. Intimidades: mesmo com a memória gasta, vêm à mesma sensações, texturas, sabores. Mas em massa, genericamente. A não ser por duas outras lembranças, de namorantes, sobre particularidades capilares íntimas (uma pela falta, outra pelo excesso), que não podem jamais cair no olvido. Ambas fogosas, até onde lembra, o relacionamento com elas era diferente. Com a, digamos assim, careca, ele era mais o alvo da paixão, servindo acertadamente aos jogos de cama que, grosso modo, seriam comparáveis às pugnas de Olímpia. Nada de joguinhos estaduais, campeonatos abertos, melhor de três: não! Olimpíadas é a palavra que melhor aponta para aqueles jogos comandados por Eros, onde o pomo de Vênus fazia-se caça e caçador e, ao final, as medalhas eram distribuídas entre os contendores, não havendo vencidos: como sói acontecer nas boas pelejas motivadas pelos instintos que, quanto mais baixos, melhor o jogo, onde a regra é não tê-las.

Mas essa particularidade referente à pilosidade, quanto à falta ou excesso, não é nada perto daquela primeira, que afinal perdeu-a (a particularidade, diga-se bem) por desdenhar, por não querer mostrar-se ao parceiro, ou parceiros, que isso era lá problema daquela senhora... fosse ele um dos escolhidos em sua versão original e teria dito que não, não fizesse aquela mutilação, mais é menos quando se trata de intimidades.

Se nós, homens, e cada vez mais no caso dele, apesar dos aditivos, temos que saber conviver com a máquina que, eventualmente, falha; com o motor que vez em quando nem no tranco pega, porque uma jovem tem que submeter-se aos ditames da moda íntima? Existe essa expressão? Acredito que sim, com o privado mais e mais tornado público, com cenas [iguais às especialidades dos ocupantes dos lupanares romanos] expostas nas paredes, posters pré-vesuvianos, mostrando suas preferências, hoje à vista nas bancas de revista, videolocadoras e, santa invasão da inocência, até nos chamados mercadinhos, partilhando conosco na escolha de repolhos, batatas, iogurtes...

Outra aventura ressalta, aflora à sua consciência agora que nisso pensa – são profundos os arquivos da mente -, pois não conseguia outra dona abrir-se ao ato, compartilhar do jogo. Mesquinharia, egoísmo, talvez, o não querer doar-se ao parceiro. Não conseguir relaxar a guarda e acolher, em seu castelo, tão nobre cavaleiro, de cuja armadura ela apreciava o toque, mas não baixava a proteção, não descia a ponte levadiça, não franqueava seus países baixos.

Porém estão todas no passado, e foi rico seu passado. Pena que já não tem pena, por esquecido estar. Com breves lampejos de lucidez, as lembranças ficaram no Grande Nada oposto ao Big Bang gerador de matéria: todas, menos a da mulher de particularidade anatômica que, se revelada fosse, seria digna de figurar no Guiness Book. As outras particularidades? Bah, esqueçam, diria.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Pequena andante (Marcio Ochner)

infiltrações..
calhas...
inundado estado...
Úmido...

Sons desprovidos de cantigas,
pernas andantes na noite... nua,
com a boca em luto, olhos que correm na linha farpada
ponho-me a olhos fechados, morte... poesia...
perfeito cego...
que compõe sem nome...

foge...

Marcio E. Ochner é designer, fotógrafo, poeta...
http://marciochner.blogspot.com/

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O lago (Sônia Pillon)

2a versão


A cabeça de Norton lateja tanto que parece que vai estourar. Suas mãos tremem e seu olhar está perdido no infinito. Mil imagens aparecem e desaparecem em sua mente. O coração parece que vai saltar pela boca, de tanto que ele correu aquela noite. A camisa está ensopada de suor, e as idéias estão desconexas.
A noite escura é aliada da sua fuga, e o parque parece ser o lugar ideal para colocar a cabeça no lugar. Naquele momento, o lago de águas serenas apareceu como um bálsamo.
Foi então que Norton decidiu sentar à beira do lago para entender o que aconteceu. Como tinha sido capaz de tanta insanidade? Como pode perder o controle de si mesmo? Lágrimas copiosas começam a cair. Sacudido pelos soluços, o jovem  esconde o rosto entre as mãos e fala baixinho, como a sussurar para si mesmo: E agora?!...
A noite pareceu interminável para ele, até que a luz do dia iniciou timidamente o lento desvendar da escuridão. tornando as formas mais nítidas, e o lago ainda mais azul.
O parque pouco a pouco descortina seus habitantes, de mendigos e andarilhos,  que parecem se assustar com a chegada dos raios solares. Alguns ainda dormem, sucumbidos pelo sono, ou pela cachaça da noite anterior. Outros se esforçam para levantar, e, ainda trôpegos,  procuram com dificuldade coordenar as pernas.
Nenhum dos excluídos parece se importar com a presença de Norton, que permanece sentado em frente ao lago, olhando para o nada. As profundas olheiras denunciam uma noite em claro, que nem por isso ajudaram a clarear suas ideias...
Ainda lembra do olhar incrédulo da mulher quando ele disparou quatro tiros à queima-roupa no seu peito, dos gritos de dor e desespero, do pedido em vão de socorro. Mas o sítio era um lugar isolado, não tinha como alguém ouvir alguma coisa. Ele pensara em tudo!...
- O que é que eu fiz?! O que é que eu fiz?!, se perguntava, enquanto soluçava e suas mãos pareciam querer arrancar os próprios cabelos, completamente transtornado.
Depois de pouco mais de uma hora, num pulo, Norton se levanta e olha o lago como se fosse pela primeira vez. Consegue ver os peixes no fundo, as plantas aquáticas, e aquele azul profundo, que parecia hipnotizá-lo.
Foi quando ele começou lentamente a entrar na água, sem se importar que estava afundando mais e mais, até desaparecer por completo.


________________________________________

Sônia Pillon é jornalista e escritora. Nascida em Porto Alegre (RS), está há 14 anos radicada em Jaraguá do Sul (SC). Publicado na revista virtual Letras Et Cetera, em 21 de dezembro de 2010. A primeira versão deste conto, no formato "microconto", foi produzida em fevereiro de 2008.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Iluminado (Fernando Bastos)

Com certas pessoas, não vale a pena contestar
são rochas que nunca cedem, nunca relevam
não se colocam no lugar do outro,
não transigem posto que sempre elas estão certas

Com essas pessoas, melhor ignorar
evitar confronto e passar por elas feito passarinho
gasta-se muita energia no afã
de mostrar-lhes o outro lado da moeda
e elas são ouvidos moucos às ponderações

Melhor dispensar seu esforço
para estradas que lhe são caras
porque não é saudável nem a você nem ao outro
começar uma discussão quando não é necessária

Relações amorosas racham igual a bambu verde
amigos deixam de se falar
filhos e irmãos mudam de casa
por conta de falarem mais do que deveriam

Disse Machado em um conto
“a discussão é a forma polida do
instinto batalhador, que jaz no homem,
como uma herança bestial”
e mais: “discutir leva ao dissentimento”

Concordo em parte com o personagem do conto
penso que diante de certas rochas
devemos guardar nossa opinião
como a pérola que repousa na concha
Jesus alertou “não jogai pérolas aos porcos”
mas até ele não se calou quando foi preciso

Para evitar úlceras e insônia
faça-se ouvir somente quando for caso de vida ou morte
para escapar da areia movediça
quando for para tirar o pai da forca
quando calar é o mesmo que ficar sem ar

Quando essa hora chegar
não omita opinião com raiva
seja leve como a pena,
não se enerve se o outro lado não concordar
se conseguir fazer isso, me ensina
você é um Iluminado
e está acima do ser humano comum

Fernando Bastos
www.fernandobastosescritor.blogspot.com

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Crime passional em dois atos (Sônia Pillon)

Ato I

O sangue estava empoçado em volta dos corpos do casal. Quinze facadas se sucederam e calaram o choro, os gritos e a infelicidade da mulher. Uma faca de ponta afiada estava no meio dos corpos. O último ato: a faca ensanguentada depois da auto-degola do marido.
Ato II

Almas separadas, corpos unidos. A morte chegou e levou a dor.



______________________________________________
Sônia Pillon é jornalista e escritora. Nascida em Porto Alegre (RS), está há 14 anos radicada em Jaraguá do Sul (SC). Publicado na revista virtual Letras Et Cetera, em 21 de dezembro de 2010. Produzido originalmente em fevereiro de 2008.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

ruídos (Tiago Nascimento)

Caminhou rapidamente em direção ao inferno astral. Depois verificou o GPS do seu IPOD e corrigiu a rota: sudoeste. Seguiu feliz assoviando um tango de Carlos Gardel. Pensou na ironia da vida e sorriu. Não estava pronto pro céu.


Luzes na cidade ao seu redor. Pessoas concentradas em si mesmas. Vitrines repletas de felicidades instantâneas. Cães vadios no pátio de lugar nenhum. Algazarra, fogos, folia, paixões, tangos e desilusões. O calendário avançou; o que mudou?


Sorriu enquanto abria o portão. Bom dia minha flor. Boa noite manjericão. Tropeçou na mesinha de centro. Derrubou uma revista no chão. Pensou na brevidade da vida. Lembrou da sua separação. Deitou com os sapatos ainda e dormiu. Feliz dois mil e...




Tiago Nascimento é professor. jesuscristohumano@gmail.com