quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Existem Momentos ... (Patrícia Grah)

Existem momentos na vida em que você passa a não mais se identificar com aquilo que fazia parte da sua realidade. Você abandona velhos hábitos, joga fora velhas coisas, liberta-se de vícios, hobbyes e amizades, por achar que aquilo não faz mais parte de quem você se tornou.


Você liga a televisão e nenhum programa te agrada, olha para os livros que você leu e nenhum te diz nada, conversa com as pessoas e nenhuma te diz nada que agregue, olha para si mesmo e vê que não sabe mais quem está vendo. Passa a ser criterioso em quem entra na sua vida – e quem deve sair. Então você percebe, enfim, que o problema não está no mundo, não está nas pessoas, e sim em você mesmo, que percebe que não há pecado nenhum em desistir de quem se era para tornar-se quem se quer ser, a menos que neste percurso alguém saia prejudicado.


Mas sempre fica o aprendizado, e não adianta e martirizar com a culpa do sofrimento alheio, porque ninguém será feliz no seu lugar! Jogar tudo pro alto nunca foi problema, na maioria da vezes é a melhor solução.


Abster-se dos julgamentos, compreender que você não precisa sorrir pra todo mundo e nem aceitar tudo que lhe é imposto faz parte da solução. Às vezes é necessário esvaziar-se de tudo, para então preencher com o que realmente vale à pena.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Estava escrito (Fernando Bastos)

Em uma escola havia quatro livros, quatro salas de aula, quatro professores, cada um responsável por uma sala somente. Todos tinham um desejo em comum: levar sua pedagogia às quatro classes, de modo que a escola adotasse um único livro, o seu.
A disputa entre eles para ver quem era o mais popular entre os alunos recrudescia dia após dia. A animosidade entre os Mestres influenciou o comportamento dos estudantes, que passaram a brigar entre si, sala contra sala, em defesa de seus respectivos preceptores, bem como pela escolha de qual seria o melhor livro para orientá-los.
O diretor, percebendo que os ânimos não se acalmariam, decidiu contratar um novo professor, com a missão de trazer paz àquele estabelecimento. No dia de sua chegada, todos se reuniram no pátio, aguardando o pronunciamento. Ele se dirigiu à tribuna, puxou o microfone, apresentou-se e disse:
Meus caros, vejo que todos vocês têm bons mestres, cujo desejo comum é conduzi-los no caminho da Verdade. Mas onde está a Verdade? São quatro livros, que divergem entre si; então, a princípio, apenas um tem a resposta. Ou talvez, nenhum deles...
Um burburinho tomou conta da plateia, e o diretor temeu por mais confusão. O orador fez um sinal para que pudesse continuar e o silêncio voltou, sob uma atmosfera de desconfiança e medo.
- Li-os um por um e descobri que todos os livros contêm auríficos ensinamentos sobre o amor, caridade, perdão, compaixão, que, se observados, podem conduzi-los à senda da paz e da felicidade. Mas, tristemente, achei doutrinas que contradizem as primeiras. Veremos quais são elas:
O livro um, chamado assim por pertencer ao professor mais antigo, contém registros que estabelecem a pena de morte para adúlteros, homossexuais, astrólogos, pessoas que consultam os espíritos e moças que perdem a virgindade antes de casar; dá conselhos de como castigar um escravo, permite ao pai vender a própria filha e matar filhos rebeldes. Pode-se imaginar que, com tais regras, podemos formar bons alunos e adultos sadios no futuro?
O livro dois informa que aqueles que não seguem seu Mestre, serão encerrados numa cadeia sempiterna, onde haverá choro e castigos terríveis. Dirigindo-se ao professor, disse:
- Conversando com seus alunos hoje de manhã, notei que eles seguem o senhor mais por medo do castigo do que por convicção, e alunos que são instados a crer, sem poder questionar, não podem crescer psicologicamente. Coagir alguém a acreditar em algo, sob ameaças, não é uma conduta ética.
O livro três separa as pessoas em castas, sendo a última, a mais prejudicada. O integrante desta casta não pode aspirar ascensão na sociedade, de modo que lhe está reservado os serviços mais abjetos, que os das demais castas desprezam. Não pode chegar perto dos superiores, pois sua sombra os conspurcaria. Ora, a ciência demonstra que todos os seres humanos, dadas as condições necessárias desde o nascimento, têm as mesmas chances de progredir. A separação de castas é terrível, pois discrimina pessoas baseada na falsa premissa de que alguns nascem inferiores.
O livro quatro é especialmente favorável aos homens, mas repreensivo às mulheres. O homem tem direito a quatro esposas, pode bater nelas, e elas devem se cobrir inteiramente, somente o rosto pode ficar livre dos tecidos. Vim a saber do motivo: é uma proteção às mulheres, já que os homens são historicamente lascivos, e violentam mulheres pela simples visão de um tornozelo descoberto. Talvez em vez de punir as mulheres com tanto tecido, que lhes impede o prazer do toque do sol diretamente na pele e torna difícil sentir a brisa do vento esvoaçar seus cabelos e eriçar-lhes os pelos dos braços, deveriam punir os homens que não conseguem domar a libido, assemelhando-se a animais irracionais.
Meus queridos, os quatro livros são importantes, mas parte de sua doutrina está lhes fazendo mal por destruir relacionamentos, humilhar pessoas e promover a discórdia. Observei que esses livros são profundamente misóginos e machistas. Será porque foram escritos por homens?
Fui contratado para devolver a paz a esta escola. Confesso-lhes que também não sei qual o caminho da Verdade, mas tenho uma pergunta que pode ajudá-los:
Se está comprovado que a doutrina de ódio, segregação e preconceitos está lhes fazendo mal, não seria melhor abandoná-la, e abraçar somente aquela que incentiva o amor, a bondade e o respeito aos outros?
Sei que é difícil ser seguida por todos, mas se a maioria aceitá-la e guiar-se por ela, as chances de paz estarão bem mais próximas.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Quem Matou O Senador? ( Sônia Pillon)


Cena 1 –
Um homem morto de meia idade, cabelos grisalhos, de paletó e gravata na cor cinza, está deitado de bruços no alto da escadaria do Senado. Ele está com o corpo encharcado pelo sereno e envolto em uma poça de sangue. A área está isolada pelos policiais, que fazem anotações, recolhem evidências e registram em fotos a cena do crime.
Por fora da área isolada, repórteres de televisão, rádio e jornal, fotógrafos e cinegrafistas de todo o país e correspondentes estrangeiros fazem a cobertura e especulam o que levou ao assassinato.
“O senador Demóstenes Robalho foi encontrado morto na manhã de hoje, no alto da escadaria do Senado, com o corpo encharcado e envolto em uma poça de sangue. Nesse momento, policiais buscam pistas para o autor do crime. Por enquanto, se sabe apenas que ele foi morto com um tiro no peito. A Polícia trabalha com as hipóteses de crime passional, político, ou queima de arquivo.
Nos últimos meses, Robalho estava sendo investigado por supostas ligações com o tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Também existiam rumores de que estaria se separando da mulher, supostamente por ter uma relação extra-conjugal com a secretária do gabinete.”
“Alô, ouvintes da Rádio Planaltina do Norte! Estamos aqui na porta do Senado Federal, onde ainda se encontra o corpo do senador Demóstenes Robalho, encontrado morto por volta das 6h de hoje, com um tiro certeiro no coração. A Polícia investiga as possíveis causas e a autoria do crime. Nos últimos meses ele foi acusado de corrupto e haviam rumores de que o senador estaria mantendo um caso com a secretária do gabinete. Só o que se sabe, por enquanto, é que não foi um assalto, porque a carteira e os documentos de Robalho estavam intactos.”


Cena 2
(O senador aparece em cena sendo arrastado por um homem alto e forte, encapuzado e que usa luvas. Ele joga o morto no chão e retira rapidamente o lençol. O carrasco olha para os lados e pega o celular).
Carrasco - Alô! O serviço tá feito, “doutor”! Esse aí não incomoda mais! Não, não, ninguém ouviu nada, não, “doutor”! Não tinha ninguém por perto... Tudo susse... Certo, certo, já tô vazando daqui!


Cena 3
(Em um bar, na penumbra, o senador conversa sorrateiramente com um homem que usa chapéu “panamá”, camisa de estampa florida, óculos escuros, pulseiras, anelão de ouro, e fuma um charuto. Os dois estão tomando uma cerveja).
Senador - A situação não está nada fácil! O povo está pressionando! Estou lutando para que a votação seja secreta. O senhor sabe que somos parceiros, uma mão lava a outra...
(O homem de chapéu pega uma maleta e entrega ao senador).
Homem do chapéu - Pode abrir e conferir, tá tudo aí... Não me decepcione! Gastei um dinheirão na última campanha e espero que não tenha sido em vão... Você me conhece e sabe que fico nervoso com quem me trai!
Senador - Não se preocupe, conte comigo sempre! (Sorri, pega e abre a maleta, confere as notas, depois a fecha, a segurando com as duas mãos).
Homem do chapéu - Mas hoje eu vim também fazer um outro pedido... Preciso que dê um emprego para a Valdinete...
Senador - Infelizmente, essa vaga já é ocupada pela Irene... O senhor sabe, aquela mulher é a minha perdição...
Homem de chapéu - Você tá me dizendo que não vai atender um pedido meu?! Coloca só na folha de pagamento e pronto!
Senador – Vou tentar, mas não sei se posso fazer isso, a imprensa está no meu pé... E o pior é que também andaram falando que a Irene é minha amante! Publicaram uma foto nossa jantando naquele restaurante da lagoa, e a minha mulher ficou furiosa... Neguei tudo, é claro, mas ela parece desconfiada...
Homem de chapéu – A sua mulher é problema seu, não tenho nada a ver com isso! Ok, você é que sabe! O aviso foi dado. Depois não diga que eu não avisei!...
(O homem de chapéu se levanta abruptamente, faz um sinal apontando o dedo para o rosto do senador, vira as costas e vai embora. O senador arregala os olhos e olha em direção ao homem de chapéu).


Cena 4
(Em uma mesa com toalha rendada, uma taça, uma garrafa de vinho, prato e talheres cruzados está o senador, comendo uma sobremesa, quando o celular toca).
Senador – Alô, boa noite! Estou terminando o jantar no restaurante chinês. O que? Pois é, infelizmente não consegui encaixar a sua menina no meu gabinete... Até tentei, mas... Sinto muito!...
Hã? Sim, eu entendo, mas a votação foi aberta, como é que eu poderia votar contra?!... O senhor entende, né?... Mais uma vez me desculpe, não foi dessa vez...
Ah, esse documento está no meu gabinete, posso providenciar amanhã para o senhor... Mas... Ah!... Sei... Bom, nesse caso, eu vou voltar agora mesmo para o meu gabinete, antes da sua viagem... Sim, sim, estou indo lá! Não, não, não vou comentar com ninguém... Até daqui a pouco!


Sônia Pillon

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Memórias de Areia (Thiago Daniel)

Corria o cão

Sem raça

E pela areia deixava as pegadas

As ondas

Absorviam mais aquela memória

O vento

Carregava



Sábio mar

Apanhador desaberes

Minúsculos conhecimentos

Dos minúsculos grãos esvoaçantes

O vento só leva

Não guarda

“Se querem, busquem” – ele sopra

E põe-se a correr



O mar fica ali

Tempo gordo,

Hora cansado

O vento some

Vezes cortante

Outrora

Apressado



Ela fica com os dois

Aprendeu com seus antigos

Nunca desprezar os deuses do cognitio

Num mergulho apanha o alimento

E às vezes

Vai com o vento



Quando volta

As pegadas

Não mais existem

Extraviadas pelo mar ou pelo vento

Não importa

Lá de cima, realmente não importa

Só espera as próximas pegadas

É tão lindo ser gaivota

sábado, 4 de janeiro de 2014

Renascimento (Elianete Vieira)

A vida se renova.
Nada como um dia após o outro.
O futuro a Deus pertence.
Frases batidas, mas sempre atuais.

O velhinho se despede
Em meio à emoção
Lembrando tudo o que passou
Momentos felizes, outros não.

O futuro vem chegando
Nascendo na escuridão.
Trazendo sonhos, desejos,
Amor, saúde e realização.

Quem viveu o velhinho
Agora festeja o nascer do bebezinho.
Comida, bebida, saudações e carinho.
Fogos iluminam o novo ano que chegou de mansinho.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Ingratidão (Inacio Carreira)

Se havia alguém mais bondoso nesta terra de nosso senhor jesus cristinho, mais amável com as plantas, os bichos, as águas, as gentes; de fala mais mansa para os seres e as coisas; de pensamento mais puro às jovens que passavam de saia curta ou calça agarradinha; com presteza em auxiliar o próximo, fosse uma senhora com receio de atravessar a rua, nesses tempos tão conturbados de trânsito desrespeitoso com todos, fosse uma jovem grávida saída do mercado com sacolas, com sobrecarga além da que naturalmente levava ao ventre, fosse uma criança que inadvertida e inocentemente estivesse à margem do perigo, num local com águas não tão rasas, um muro, uma situação de violência explícita, fosse um animal pequeno que estivesse na iminência de se envolver em disputa com outro maior, ele estava sempre de prontidão para elogiar, amparar, carregar, proteger, defender...

Apontado como sem perspectiva pois não tinha ganância, não era avaro, buscava auto justificar-se com a lembrança dos versículos “Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles” (Mateus 6, 28:29).

Buscava ser probo em ‘pensamentos, palavras e obras’, embora soubesse das dificuldades de andar no bom caminho, periodicamente analisando suas reações ante as oferendas que até ele chegavam, sopesando o certo e o errado nas atitudes, nas resoluções, nas respostas. Se o fiel da balança estivesse contra ele, ia até a pessoa que acreditava ter prejudicado e expunha seus sentimentos, buscando desculpar-se por algo que, às vezes, nem havia feito, ou não tivera a intenção de fazer.

Cultivava essa natural preocupação com o todo, que dirá consigo? Não, não era hipocondríaco, não vivia em academias, não buscava a última medicação para o que quer que fosse. Mas mantinha a alimentação saudável, dentro dos princípios do nutricionismo, segundo as informações que chegam a qualquer mortal por revistas, jornais, rádios, televisão. Sem contar a internet, com sites específicos sobre o assunto. Aproveitava as frutas da ocasião para refeições frugais, que completava com os necessários carboidratos e proteínas. Para este último item contrariava seus amigos veganos, a eles pedindo desculpas por não conseguir radicalizar nesse item.

O bem e o mal. Claro e escuro. Alto e baixo. Prazer e tristeza. Ocupação e preocupação. Dicotomias. Não. Não nasceu com esse conhecimento. Foi o mesmo sendo construído através de estudos de filosofia, incursões na psicologia, nos livros sagrados de diferentes povos, nas mitologias, nos demais conhecimentos místicos, na Teogonia, de Hesíodo, com Rabindranath Thakur (Tagore), com Bhagwan Shree Rajneesh (Osho), no dia a dia com familiares, amigos, leituras diversas. Periodicamente vinha-lhe à mente o discutível aforismo repetido por amigos: 'O diabo não é esperto porque é diabo, é esperto porque é velho'.

Saindo de consulta médica, lembrava a passagem shakespeariana: “Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se desfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não tivesse condenado o suicídio!” (Hamlet: Ato I, Cena II).

Pensou nas palavras do médico e reviveu seus sintomas: perda de apetite e, consequentemente, de peso, fraqueza, diarreia, tontura... Mas, por quê? Câncer? Ou melhor, para ser menos agressivo (o médico pedira que fosse com acompanhante, fora só), carcinoma. Mas precisava investigar, bastante e rápido, com exames, em parceria com o relato inicial, que o doutor chamou de anamnese: exames de laboratório (sangue, fezes, urina), além de tomografia computadorizada do abdômen; ultrassonografia abdominal; ressonância nuclear de vias biliares e da região do pâncreas e, também, a biópsia do tecido. Afeta mais os homens e, na sua idade, o índice de sucesso na cirurgia é irrelevante. A localização do pâncreas na cavidade mais profunda do abdômen, atrás de outros órgãos, dificulta a detecção precoce. Normalmente desenvolve-se, o tumor, sem sintomas, sendo difícil diagnosticá-lo na fase inicial e, quando detectado, já pode estar em estágio muito avançado. Como descobriu ser o seu caso.

Estão entre os fatores de risco o uso de derivados do tabaco: fumantes possuem três vezes mais chances de desenvolver a doença do que os não fumantes. Balançava a cabeça, como a dizer não ser seu caso. Outro fator (de risco, claro) é o consumo excessivo de gordura, de carnes e de bebidas alcoólicas. Como também a exposição a compostos químicos, solventes e petróleo, durante longo tempo. Um grupo de risco, com maior chance de desenvolver a doença, é composto pelos que sofrem de pancreatite crônica ou de diabetes melitus, os que foram submetidos a cirurgias de úlcera no estômago ou duodeno ou sofreram retirada da vesícula biliar. Só dizia presente ao último item, retirada da vesícula biliar.

Procurou e leu, na internet, tudo (ou quase) que estivesse relacionado ao pâncreas e tumores nessa glândula. Era muita coisa, muita cientificidade, muita pamonha para a sua festa junina (comparação idiota, repreendeu-se, estavam em novembro...). Castigo divino? Mas, por quê?

Andava com a cabeça cheia. Querendo arrumar justificativa para seu corpo, tão bem tratado, tão elogiado, tão abençoado cada vez que fazia uma coisa boa (vai com deus, diziam. Deus te proteja, desejavam. Deus aumente tuas dádivas e tua bondade, oravam os mais amigos).

Não, não queria recompensa, o que fizera fora sempre de coração aberto. Muita gente não entendeu seus cuidados, muitos lhe viraram a cara, acreditando que ele almejava algum cargo eletivo, alguma medalha, outra recompensa qualquer. Não. Já do berço ouvia a voz da avó: ‘Faz o bem sem olhar a quem’, embora o escorpião tenha picado a rã que ia leva-la à outra margem, aprendeu mais tarde nos livros.

Agora sabia, o inimigo estava dentro dele. Ele era a rã que carregava o escorpião para a outra margem, mas sabia que não chegariam. Sim, esta seria a metáfora final de sua vida. Ele a rã, o câncer sendo o escorpião. O rio? A rua, uma qualquer, que nessa época todas são perigosas, daqui ao fim dos tempos todas serão perigosas, cada vez mais. Era só concentrar-se enquanto anfíbio e atravessar a avenida-rio, esperando a picada fatal. Que veio na forma de um caminhão, apressados que sempre estão.

No rosto um sorriso intrigante: ao longo da vida, com suas idas e vindas, favores e agradecimentos, tours de force e promoção de mil ajudas, sofrera muita ingratidão. Superara a todas. Mas não pôde, humano que era, superar a ingratidão do próprio corpo. Ninguém entendeu...

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

E se... Uma história de amor (Vana Comissoli)

vana12


Para meus muito amados Philippe e Fernanda: tudo dará certo.


Aeroportos sempre me dão a sensação de entrar num formigueiro que começa a pegar fogo e teria que enfrentar este sufoco nas quatro nas próximas horas. Não suporto este bulício de gente que sabe para onde vai enquanto eu sei o local, mas não muito bem o objetivo.
Gosto mesmo é das chegadas. Os beijos dos apaixonados – jovens na relação -; os selinhos bobos que os casais antigos trocam como se fossem irmãos, mas ainda assim cheios de carinho permanente; a festa das crianças sendo recebidas ou sua total alienação nos abraços apertados que sufocavam dados por avós ou tios cuja existência conheciam por nomes planos em fotografias com cenários obscuros. Até mesmo a remota distancia dos homens de negócios esperados por pessoas absolutamente desconhecidas com cartazes nas mãos onde estaria seu nome ou mais impessoal ainda: nome de suas empresas. Felizmente os poucos astros da TV e futebol que encontrei, ninguém os estava assediando ou tendo delírios paranoicos com sua presença, por mais que arrastassem seu séquito de serviçais prontos a atenderem os desejos do amo num simples estalar de dedos. Fui poupada.
O que faço aqui? – me pergunto não mais podendo fugir da indagação que me corrói. Estarei fugindo, ou tentando escapar? Pela primeira vez atravessar o oceano, ser uma estrangeira, caminhar em terra alheia. Para uma sulista de meu país ir aos territórios cisplatinos não é exatamente uma viagem portentosa, éramos quase crias deles e fronteira uma linha invisível que não conseguia realmente nos separar, quase nem nos distinguia. Mais difícil era ir ao norte, muito mais distante e oneroso.
Eu o conhecera há escassos três meses e enquanto esteve no Brasil vivemos uma relação entre delicada e tórrida que derrubou todas minhas imensas barreiras, poderosas fronteiras onde meus guardas não permitiam travessia sem passaporte e muitas vezes revisado.
- O que? Estás louca! O sujeito é europeu e vais atrás? – Essa é minha mãe apavorada com o que considerava uma atitude impensada e infantil. Arriscadíssima. – Não sabes nada deste homem, nem sequer se existe de verdade! E se for um serial killer? E se for sequestrador? E se...
Deixei minha mãe falando sozinha. Eu tinha 39 anos e três casamentos ou pseudo casamentos de merda. De merda mesmo: o primeiro diabo carreguei nas costas, outro empurrei com a barriga e o último se borrou de medo de assumir compromisso se escafedendo na primeira esquina que encontrou. Depois disso tinha resolvido que ninguém mais dormiria na minha cama, só motel e cueca no encosto da cadeira. Chega! Bati a porta e joguei fora a chave por 2 anos, 7 meses e 21 dias.
- Que tremenda viagem! Vai fundo que pode não aparecer outra. E se ele for de fé, ficas por lá? – era minha irmã mais moca.
- Quem me dera uma paixão como esta, aventureira e em outra língua. Adoro francês. – era minha melhor amiga revirando os olhos e pondo Piaf no som. – E se...
- Loucura! Estás doente da cabeça! – minha mãe de novo, de novo e de novo.
Muita gente buzinando no ouvido só dá estrago, comecei a me indagar, o que não tinha feito nenhuma vez até a brotação dos E se... Fui flecha certeira até começarem.
Michel... Seria mesmo Michel seu nome? E se fosse uma alcunha? E se fosse casado? E se... E se... E se...
Agora era tarde para perguntar, a passagem para aquela terra distante e estranha ardia na minha bolsa. Existiria de verdade o tal país ou só em contos de fadas, em postais impessoais?
Tinha tempo, claro que cheguei adiantadíssima para o embarque. E se eu perdesse o avião? E se o “teto” fechasse? Teto... Essa coisa nebulosa bem diferente do que se tem casa para dar segurança e refúgio. Eu estava disposta a sovar durante cerca de doze horas num avião, na classe econômica onde os bancos são para tortura. E se tivesse trombose?
E se esquecesse da língua alienígena? Meu país é de proporções continentais, mas com pequenas nuances regionais perfeitamente identificáveis, podemos nos entender tranquilamente. Este povo europeu vivem em países quase do tamanho de minha cidade e outros até menores, falam trezentas línguas bifurcadas, sei lá em quantos dialetos arcaicos onde não se entende bulhufas.
Nos últimos três meses depois da partida de Michel eu frequentara um curso intensivo daquela língua que me embaralhava o pensamento embora tenha soado tão sedutora e “caliente” ao meu ouvido nos três meses antes desses três meses. Tudo três? Dou-me conta disso e aumenta a quantidade de suor em minhas mãos. Bom ou mau augúrio este monte de três? Não é número par, não dá casal. Devia ter trazido meu livro de numerologia. Esqueci, quase me esqueci de por calcinha na mala só pensando na fartura de roupas novas com as quais pretendia seduzir Michel. De íntimo só camisola. Lembrei a tempo das calcinhas e me desabalei a comprar as mais sexys que consegui encontrar às quase 10 da noite no shopping fechando. Muita sorte a vendedora ter ficado fissurada na minha história de paixão com a qual sonhava, é óbvio. Baixou as prateleiras todas, só não saí com a loja nas costas por que tinha medo de me perder do outro lado do mundo e não poder pagar hotel. Se... Qualquer coisa desse errado.
Estes três meses tão iguais e diferentes que faziam viés, trevas e luz antes deste aeroporto azul me pareceram a realização de sonhos muitas vezes sonhados em noites brancas. Eles eram reais mesmo pela Internet me trazendo as conversas ternas, saudosas e tórridas. Mas e se?... Se na terra distante ele fosse frio como a neve que lá caía e eu nunca tinha visto?
E se...
Olhei o relógio e fui para o portão de embarque. O céu não estava lá estas coisas e rezei. Na minha terra podia me por de joelhos diante de tudo que era santo, orixá e anjos, o Brasil tem destas maravilhas, mas lá... E se lá todos fossem ateus? Aqui até quem dizia que era tinha seu patuá escondido, seu “vai com Deus”. Coisas nossas, mas lá...
Chovia torrencialmente em São Paulo e o tal de “teto” sumira, tínhamos que esperar até que desse as caras novamente. E se a chuva voasse com o avião? Com certeza não seria um bom augúrio, era recado dos deuses: vais dar com os burros n’água. Não podia me preocupar com isso agora, também poderia ser uma limpeza na minha vida, precisava pensar positivamente e me concentrar para não ficar andando de um lado para outro, além de segurar as mãos que queriam ficar se esfregando sem parar.
Afinal embarcamos. Quando a comissária de bordo nos recebeu já foi na língua mãe dela, ou seja me deu um frio danado na barriga, eu entrara em outro mundo. E se não conseguisse entender nada? Entendi e pude escolher minha janta, mas louca de medo, estava tão nervosa. E se eu vomitasse? Procurei não pensar que minha próxima conexão seria em Paris. Ai meu Deus! E se perdesse as malas? Paris... Sonho de todo brasileiro e meu em especial por décadas, mesmo que seguisse viagem era Paris, La France. U lá lá!
Dormi um pouco, abri os olhos, dormi de novo toda torta. Esses bancos da classe econômica são mesmo de lascar. Resolvi dar uma espiadinha pela janela que nos obrigavam a manter fechada, mas nunca fui muito disciplina mesmo, não gosto de ordens irreversíveis. Eram 2 da madrugada. Espiei. Ai, socorro, eu atravessei o mundo! Duas da manhã e o sol está nascendo. Uma emoção colossal me assaltou e chorei, bem que queria sair gritando e falando de minha felicidade e surpresa por ter atravessado o mundo, sonho que já abandonara, se realizando. Meu Michel... Se nada der certo já me deste esta sensação louquíssima de felicidade imensa. Chorei mais um pouco, segurei por que estava prestes a começar a fungar e a vontade era de soluçar atirada no chão. Quase não dormi mais, não podia acreditar, estava sobre o Atlântico e isso é inenarrável. Milhões de borboletas, grilos, libélulas (adoro libélulas) na barriga e todos em movimento.
Aterrissamos e me senti o papa, cheia de necessidade de beijar o chão. Não dava tempo, corri para a alfândega louca de medo do extravio de malas, de não localizar o embarque e me perder neste imenso aeroporto francês. Quando pensava “francês” quase desmaiava, era mesmo eu ali, toda sorriso e engasgo.
Outro avião. Já estava me cansando deles, mas agora seria rápido. Na Europa tudo é logo ali, pelo menos era o que me diziam não sendo bem verdade, mas meu destino final era mesmo logo ali, não precisava pensar na França e na Alemanha que tem mais cara de país pelo tamanho. Pelo menos de minha ideia de país. Que longos e tortuosos limites! E se... E se... Todos “se” que ouvira e outros que criara. Nem sei se me lembrava direito da cara de Michel ou se o que via era resultado de sonho, de memória antiga que não se apagara. Nunca lembrava direito do rosto de meu pai que morreu quando ainda era menina.
E se Michel esquecesse o horário de minha chegada?
E se lá fosse um trânsito dos infernos como São Paulo e se atrasasse?
E se ele tivesse desistido desta brasileira de tantas raízes que não tinha mais nenhuma? E se...
Tinha o suplício de esperar as bagagens ainda. Não sei o que fazem para sempre ser tão lento, é por que não é no deles que arde. Uma vontade danada de gritar que estava ali para me casar e era brasileira sem entender nada de nada desses erres todos que falavam, cheios de us pelo meio, cheio de biquinhos que encantariam a qualquer um, mas agora não. Ia carregada, ficaria três (de novo o 3?) meses, a experiência que faríamos para uma vinda definitiva.
Agora o tremor das mãos, da fala, se instalou forte, estava com tudo ajeitado no carrinho de bagagem e pronta para atravessar a última fronteira que me poria diante de Michel: a porta automática da sala de desembarque. E se ele não me quisesse mais?
E se...
Lá estava ele, lindo como nunca, aquele sorriso arrasador. Que se danem todos que disseram que não era isso tudo. Os braços abertos que se fecharam em torno de mim enquanto seu beijo morno punha lágrimas em nossos olhos.
E se... Se desse certo?...


Vana Comissoli