quinta-feira, 26 de dezembro de 2013
Ingratidão (Inacio Carreira)
Apontado como sem perspectiva pois não tinha ganância, não era avaro, buscava auto justificar-se com a lembrança dos versículos “Por que vocês se preocupam com roupas? Vejam como crescem os lírios do campo. Eles não trabalham nem tecem. Contudo, eu digo que nem Salomão, em todo o seu esplendor, vestiu-se como um deles” (Mateus 6, 28:29).
Buscava ser probo em ‘pensamentos, palavras e obras’, embora soubesse das dificuldades de andar no bom caminho, periodicamente analisando suas reações ante as oferendas que até ele chegavam, sopesando o certo e o errado nas atitudes, nas resoluções, nas respostas. Se o fiel da balança estivesse contra ele, ia até a pessoa que acreditava ter prejudicado e expunha seus sentimentos, buscando desculpar-se por algo que, às vezes, nem havia feito, ou não tivera a intenção de fazer.
Cultivava essa natural preocupação com o todo, que dirá consigo? Não, não era hipocondríaco, não vivia em academias, não buscava a última medicação para o que quer que fosse. Mas mantinha a alimentação saudável, dentro dos princípios do nutricionismo, segundo as informações que chegam a qualquer mortal por revistas, jornais, rádios, televisão. Sem contar a internet, com sites específicos sobre o assunto. Aproveitava as frutas da ocasião para refeições frugais, que completava com os necessários carboidratos e proteínas. Para este último item contrariava seus amigos veganos, a eles pedindo desculpas por não conseguir radicalizar nesse item.
O bem e o mal. Claro e escuro. Alto e baixo. Prazer e tristeza. Ocupação e preocupação. Dicotomias. Não. Não nasceu com esse conhecimento. Foi o mesmo sendo construído através de estudos de filosofia, incursões na psicologia, nos livros sagrados de diferentes povos, nas mitologias, nos demais conhecimentos místicos, na Teogonia, de Hesíodo, com Rabindranath Thakur (Tagore), com Bhagwan Shree Rajneesh (Osho), no dia a dia com familiares, amigos, leituras diversas. Periodicamente vinha-lhe à mente o discutível aforismo repetido por amigos: 'O diabo não é esperto porque é diabo, é esperto porque é velho'.
Saindo de consulta médica, lembrava a passagem shakespeariana: “Oh, se esta carne sólida, tão sólida, se desfizesse, fundindo-se em orvalho! Ou se ao menos o Eterno não tivesse condenado o suicídio!” (Hamlet: Ato I, Cena II).
Pensou nas palavras do médico e reviveu seus sintomas: perda de apetite e, consequentemente, de peso, fraqueza, diarreia, tontura... Mas, por quê? Câncer? Ou melhor, para ser menos agressivo (o médico pedira que fosse com acompanhante, fora só), carcinoma. Mas precisava investigar, bastante e rápido, com exames, em parceria com o relato inicial, que o doutor chamou de anamnese: exames de laboratório (sangue, fezes, urina), além de tomografia computadorizada do abdômen; ultrassonografia abdominal; ressonância nuclear de vias biliares e da região do pâncreas e, também, a biópsia do tecido. Afeta mais os homens e, na sua idade, o índice de sucesso na cirurgia é irrelevante. A localização do pâncreas na cavidade mais profunda do abdômen, atrás de outros órgãos, dificulta a detecção precoce. Normalmente desenvolve-se, o tumor, sem sintomas, sendo difícil diagnosticá-lo na fase inicial e, quando detectado, já pode estar em estágio muito avançado. Como descobriu ser o seu caso.
Estão entre os fatores de risco o uso de derivados do tabaco: fumantes possuem três vezes mais chances de desenvolver a doença do que os não fumantes. Balançava a cabeça, como a dizer não ser seu caso. Outro fator (de risco, claro) é o consumo excessivo de gordura, de carnes e de bebidas alcoólicas. Como também a exposição a compostos químicos, solventes e petróleo, durante longo tempo. Um grupo de risco, com maior chance de desenvolver a doença, é composto pelos que sofrem de pancreatite crônica ou de diabetes melitus, os que foram submetidos a cirurgias de úlcera no estômago ou duodeno ou sofreram retirada da vesícula biliar. Só dizia presente ao último item, retirada da vesícula biliar.
Procurou e leu, na internet, tudo (ou quase) que estivesse relacionado ao pâncreas e tumores nessa glândula. Era muita coisa, muita cientificidade, muita pamonha para a sua festa junina (comparação idiota, repreendeu-se, estavam em novembro...). Castigo divino? Mas, por quê?
Andava com a cabeça cheia. Querendo arrumar justificativa para seu corpo, tão bem tratado, tão elogiado, tão abençoado cada vez que fazia uma coisa boa (vai com deus, diziam. Deus te proteja, desejavam. Deus aumente tuas dádivas e tua bondade, oravam os mais amigos).
Não, não queria recompensa, o que fizera fora sempre de coração aberto. Muita gente não entendeu seus cuidados, muitos lhe viraram a cara, acreditando que ele almejava algum cargo eletivo, alguma medalha, outra recompensa qualquer. Não. Já do berço ouvia a voz da avó: ‘Faz o bem sem olhar a quem’, embora o escorpião tenha picado a rã que ia leva-la à outra margem, aprendeu mais tarde nos livros.
Agora sabia, o inimigo estava dentro dele. Ele era a rã que carregava o escorpião para a outra margem, mas sabia que não chegariam. Sim, esta seria a metáfora final de sua vida. Ele a rã, o câncer sendo o escorpião. O rio? A rua, uma qualquer, que nessa época todas são perigosas, daqui ao fim dos tempos todas serão perigosas, cada vez mais. Era só concentrar-se enquanto anfíbio e atravessar a avenida-rio, esperando a picada fatal. Que veio na forma de um caminhão, apressados que sempre estão.
No rosto um sorriso intrigante: ao longo da vida, com suas idas e vindas, favores e agradecimentos, tours de force e promoção de mil ajudas, sofrera muita ingratidão. Superara a todas. Mas não pôde, humano que era, superar a ingratidão do próprio corpo. Ninguém entendeu...
quinta-feira, 19 de dezembro de 2013
E se... Uma história de amor (Vana Comissoli)
Para meus muito amados Philippe e Fernanda: tudo dará certo.
Aeroportos sempre me dão a sensação de entrar num formigueiro que começa a pegar fogo e teria que enfrentar este sufoco nas quatro nas próximas horas. Não suporto este bulício de gente que sabe para onde vai enquanto eu sei o local, mas não muito bem o objetivo.
Gosto mesmo é das chegadas. Os beijos dos apaixonados – jovens na relação -; os selinhos bobos que os casais antigos trocam como se fossem irmãos, mas ainda assim cheios de carinho permanente; a festa das crianças sendo recebidas ou sua total alienação nos abraços apertados que sufocavam dados por avós ou tios cuja existência conheciam por nomes planos em fotografias com cenários obscuros. Até mesmo a remota distancia dos homens de negócios esperados por pessoas absolutamente desconhecidas com cartazes nas mãos onde estaria seu nome ou mais impessoal ainda: nome de suas empresas. Felizmente os poucos astros da TV e futebol que encontrei, ninguém os estava assediando ou tendo delírios paranoicos com sua presença, por mais que arrastassem seu séquito de serviçais prontos a atenderem os desejos do amo num simples estalar de dedos. Fui poupada.
O que faço aqui? – me pergunto não mais podendo fugir da indagação que me corrói. Estarei fugindo, ou tentando escapar? Pela primeira vez atravessar o oceano, ser uma estrangeira, caminhar em terra alheia. Para uma sulista de meu país ir aos territórios cisplatinos não é exatamente uma viagem portentosa, éramos quase crias deles e fronteira uma linha invisível que não conseguia realmente nos separar, quase nem nos distinguia. Mais difícil era ir ao norte, muito mais distante e oneroso.
Eu o conhecera há escassos três meses e enquanto esteve no Brasil vivemos uma relação entre delicada e tórrida que derrubou todas minhas imensas barreiras, poderosas fronteiras onde meus guardas não permitiam travessia sem passaporte e muitas vezes revisado.
- O que? Estás louca! O sujeito é europeu e vais atrás? – Essa é minha mãe apavorada com o que considerava uma atitude impensada e infantil. Arriscadíssima. – Não sabes nada deste homem, nem sequer se existe de verdade! E se for um serial killer? E se for sequestrador? E se...
Deixei minha mãe falando sozinha. Eu tinha 39 anos e três casamentos ou pseudo casamentos de merda. De merda mesmo: o primeiro diabo carreguei nas costas, outro empurrei com a barriga e o último se borrou de medo de assumir compromisso se escafedendo na primeira esquina que encontrou. Depois disso tinha resolvido que ninguém mais dormiria na minha cama, só motel e cueca no encosto da cadeira. Chega! Bati a porta e joguei fora a chave por 2 anos, 7 meses e 21 dias.
- Que tremenda viagem! Vai fundo que pode não aparecer outra. E se ele for de fé, ficas por lá? – era minha irmã mais moca.
- Quem me dera uma paixão como esta, aventureira e em outra língua. Adoro francês. – era minha melhor amiga revirando os olhos e pondo Piaf no som. – E se...
- Loucura! Estás doente da cabeça! – minha mãe de novo, de novo e de novo.
Muita gente buzinando no ouvido só dá estrago, comecei a me indagar, o que não tinha feito nenhuma vez até a brotação dos E se... Fui flecha certeira até começarem.
Michel... Seria mesmo Michel seu nome? E se fosse uma alcunha? E se fosse casado? E se... E se... E se...
Agora era tarde para perguntar, a passagem para aquela terra distante e estranha ardia na minha bolsa. Existiria de verdade o tal país ou só em contos de fadas, em postais impessoais?
Tinha tempo, claro que cheguei adiantadíssima para o embarque. E se eu perdesse o avião? E se o “teto” fechasse? Teto... Essa coisa nebulosa bem diferente do que se tem casa para dar segurança e refúgio. Eu estava disposta a sovar durante cerca de doze horas num avião, na classe econômica onde os bancos são para tortura. E se tivesse trombose?
E se esquecesse da língua alienígena? Meu país é de proporções continentais, mas com pequenas nuances regionais perfeitamente identificáveis, podemos nos entender tranquilamente. Este povo europeu vivem em países quase do tamanho de minha cidade e outros até menores, falam trezentas línguas bifurcadas, sei lá em quantos dialetos arcaicos onde não se entende bulhufas.
Nos últimos três meses depois da partida de Michel eu frequentara um curso intensivo daquela língua que me embaralhava o pensamento embora tenha soado tão sedutora e “caliente” ao meu ouvido nos três meses antes desses três meses. Tudo três? Dou-me conta disso e aumenta a quantidade de suor em minhas mãos. Bom ou mau augúrio este monte de três? Não é número par, não dá casal. Devia ter trazido meu livro de numerologia. Esqueci, quase me esqueci de por calcinha na mala só pensando na fartura de roupas novas com as quais pretendia seduzir Michel. De íntimo só camisola. Lembrei a tempo das calcinhas e me desabalei a comprar as mais sexys que consegui encontrar às quase 10 da noite no shopping fechando. Muita sorte a vendedora ter ficado fissurada na minha história de paixão com a qual sonhava, é óbvio. Baixou as prateleiras todas, só não saí com a loja nas costas por que tinha medo de me perder do outro lado do mundo e não poder pagar hotel. Se... Qualquer coisa desse errado.
Estes três meses tão iguais e diferentes que faziam viés, trevas e luz antes deste aeroporto azul me pareceram a realização de sonhos muitas vezes sonhados em noites brancas. Eles eram reais mesmo pela Internet me trazendo as conversas ternas, saudosas e tórridas. Mas e se?... Se na terra distante ele fosse frio como a neve que lá caía e eu nunca tinha visto?
E se...
Olhei o relógio e fui para o portão de embarque. O céu não estava lá estas coisas e rezei. Na minha terra podia me por de joelhos diante de tudo que era santo, orixá e anjos, o Brasil tem destas maravilhas, mas lá... E se lá todos fossem ateus? Aqui até quem dizia que era tinha seu patuá escondido, seu “vai com Deus”. Coisas nossas, mas lá...
Chovia torrencialmente em São Paulo e o tal de “teto” sumira, tínhamos que esperar até que desse as caras novamente. E se a chuva voasse com o avião? Com certeza não seria um bom augúrio, era recado dos deuses: vais dar com os burros n’água. Não podia me preocupar com isso agora, também poderia ser uma limpeza na minha vida, precisava pensar positivamente e me concentrar para não ficar andando de um lado para outro, além de segurar as mãos que queriam ficar se esfregando sem parar.
Afinal embarcamos. Quando a comissária de bordo nos recebeu já foi na língua mãe dela, ou seja me deu um frio danado na barriga, eu entrara em outro mundo. E se não conseguisse entender nada? Entendi e pude escolher minha janta, mas louca de medo, estava tão nervosa. E se eu vomitasse? Procurei não pensar que minha próxima conexão seria em Paris. Ai meu Deus! E se perdesse as malas? Paris... Sonho de todo brasileiro e meu em especial por décadas, mesmo que seguisse viagem era Paris, La France. U lá lá!
Dormi um pouco, abri os olhos, dormi de novo toda torta. Esses bancos da classe econômica são mesmo de lascar. Resolvi dar uma espiadinha pela janela que nos obrigavam a manter fechada, mas nunca fui muito disciplina mesmo, não gosto de ordens irreversíveis. Eram 2 da madrugada. Espiei. Ai, socorro, eu atravessei o mundo! Duas da manhã e o sol está nascendo. Uma emoção colossal me assaltou e chorei, bem que queria sair gritando e falando de minha felicidade e surpresa por ter atravessado o mundo, sonho que já abandonara, se realizando. Meu Michel... Se nada der certo já me deste esta sensação louquíssima de felicidade imensa. Chorei mais um pouco, segurei por que estava prestes a começar a fungar e a vontade era de soluçar atirada no chão. Quase não dormi mais, não podia acreditar, estava sobre o Atlântico e isso é inenarrável. Milhões de borboletas, grilos, libélulas (adoro libélulas) na barriga e todos em movimento.
Aterrissamos e me senti o papa, cheia de necessidade de beijar o chão. Não dava tempo, corri para a alfândega louca de medo do extravio de malas, de não localizar o embarque e me perder neste imenso aeroporto francês. Quando pensava “francês” quase desmaiava, era mesmo eu ali, toda sorriso e engasgo.
Outro avião. Já estava me cansando deles, mas agora seria rápido. Na Europa tudo é logo ali, pelo menos era o que me diziam não sendo bem verdade, mas meu destino final era mesmo logo ali, não precisava pensar na França e na Alemanha que tem mais cara de país pelo tamanho. Pelo menos de minha ideia de país. Que longos e tortuosos limites! E se... E se... Todos “se” que ouvira e outros que criara. Nem sei se me lembrava direito da cara de Michel ou se o que via era resultado de sonho, de memória antiga que não se apagara. Nunca lembrava direito do rosto de meu pai que morreu quando ainda era menina.
E se Michel esquecesse o horário de minha chegada?
E se lá fosse um trânsito dos infernos como São Paulo e se atrasasse?
E se ele tivesse desistido desta brasileira de tantas raízes que não tinha mais nenhuma? E se...
Tinha o suplício de esperar as bagagens ainda. Não sei o que fazem para sempre ser tão lento, é por que não é no deles que arde. Uma vontade danada de gritar que estava ali para me casar e era brasileira sem entender nada de nada desses erres todos que falavam, cheios de us pelo meio, cheio de biquinhos que encantariam a qualquer um, mas agora não. Ia carregada, ficaria três (de novo o 3?) meses, a experiência que faríamos para uma vinda definitiva.
Agora o tremor das mãos, da fala, se instalou forte, estava com tudo ajeitado no carrinho de bagagem e pronta para atravessar a última fronteira que me poria diante de Michel: a porta automática da sala de desembarque. E se ele não me quisesse mais?
E se...
Lá estava ele, lindo como nunca, aquele sorriso arrasador. Que se danem todos que disseram que não era isso tudo. Os braços abertos que se fecharam em torno de mim enquanto seu beijo morno punha lágrimas em nossos olhos.
E se... Se desse certo?...
Vana Comissoli
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Jesus, sob dois olhares (Fernando Bastos)
Os dois nasceram no mesmo dia, 25 de dezembro, mas tomaram rumos diferentes na vida; a mãe, adepta do crack e da vida fácil, não sabia quem era o pai, largou-os num orfanato e sumiu. O que nasceu antes entrou num lar cristão, foi batizado e ganhou o nome de Salvador. Aos seis anos lia a Bíblia, rezava o terço. O outro, recebeu as simpatias de um casal estrangeiro e o nome Darwin, com o tempo saberia que o homem que o recolheu das mãos da madre e a quem chamaria pai trabalhava em meio a tubos de ensaio, microscópios, pipetas e livros de biologia molecular; a mulher dele, uma respeitada professora de mitologias, dava aulas e escrevia livros sobre civilizações antigas.
Os gêmeos cresceram amados, cada um em seu canto; Salvador fez catequese, ajudou o padre na missa, respirou a fumaça perfumada de olíbano que saía em forma de arabescos do turíbulo que sacolejava nas pequeninas mãos no momento da consagração, comeu hóstia na sacristia, formou-se em contabilidade, namorou, leu e releu os Evangelhos, casou, encheu a casa de santos e crucifixos, um sinal da cruz cada vez que passava por um deles, teve filhos católicos como ele e como seus pais adotivos, o que era de se esperar. Tivesse sido criado num kibutz, seria judeu; estudado numa madrassa, islâmico, e por aí vai. Darwin aos dez anos interessava-se por dinossauros, genética, neurociência, deuses gregos. Adulto, foi dar aulas de filosofia, apaixonou-se por uma aluna, casaram, tiveram um filho.
Poucos dias para completarem 33 anos, os gêmeos se veem pela primeira vez, desde que foram separados com poucos meses de vida. Seria o primeiro Natal juntos, e de quebra, comemorariam juntos seus aniversários. O que morava fora, veio ao Brasil com mulher e filho especialmente para reencontrar o irmão. Os dois deixaram as famílias em casa e saíram bem cedinho para andar pela praia, queriam exclusividade do momento. Caminharam abraçados, chutaram a água gelada que vinha lamber a areia, riram e choraram a dor dos anos longe um do outro.
Então, Salvador disse: irmão, gostaria que fosse comigo hoje à igreja, quero lhe mostrar o presépio; eu ajudei a montá-lo. Podemos aproveitar e confessar; não vai ter muita fila. Darwin sorriu e perguntou: confessar pra quê, Salvador? Ora, espantou-se o outro, todo mundo confessa seus pecados, assim Deus nos perdoa e temos as portas do céu abertas. O filósofo questionou mais uma vez: e se eu não me confessar, o que Deus fará comigo? Infelizmente você irá para o inferno, respondeu o beato, e seria muito triste para mim separar-me pela eternidade do único irmão que tenho e tanto amo. Darwin, você não é cristão, não teme a Deus?
Por que devo temer a Deus, Ele não é bom e misericordioso? Não creio nesse negócio de inferno, assegurou o que viera de longe. E explicou: é um mito inventado há muito tempo pelos sacerdotes mesopotâmicos, uma boa sacada pra manter o povo quieto e obediente. Todas as culturas que vieram depois emularam esse conceito, criando seus próprios infernos: egípcios, gregos, romanos...o cristianismo apenas o pintou com cores mais fortes. O zoroastrismo pelo menos dava oportunidade ao condenado se purificar numa espécie de purgatório de onde poderia sair a fim de se juntar aos outros no céu. O cristianismo não; fez vocês acreditarem que o inferno, além de ser um lugar real, onde haverá choro e ranger de dentes, é eterno, assim como o sofrimento dos infelizes que o conhecerem. Ora, um deus assim, que lava as mãos ao lhe da o livre arbítrio para amá-lo ou rejeitá-lo, mas se escolher a opção errada, aquela que ele não quer, o trancará num lugar de infinito suplício, se assemelha ao marido ciumento que diz à esposa que ela é livre para sair, mas se o trocar por outro, a encherá de pancadas até o fim de sua vida. Salvador, você é inteligente, piedoso, mas devia ler sobre mitologias pré-cristãs, para separar o mito da realidade. Desolado, e já prevendo o irmão sendo lançado às chamas do inferno, o católico perguntou: por acaso não crê em Jesus, acha Ele uma invenção como andam falando por aí?
Ele não é um mito, disse o outro, pois temos evidências do Jesus histórico. Mas sua biografia, ah essa meu irmão, essa ganhou retoques no Concílio de Niceia, organizado por Constantino. Jesus não podia ficar abaixo dos deuses romanos, tinha que superá-los. O galileu foi um professor da moral, como o foram Sócrates, Confúcio e Buda. Teve muitos acertos dignos de aplauso, mas cometeu alguns deslizes.
Darwin estava indo longe demais ao criticar o próprio Deus; o que teria aprendido naquela família secular a ponto de se tornar tão cego diante da única Verdade? Agarrando-se à piedade cristã, Salvador tentou trazê-lo de volta à Luz e convertê-lo: Jesus é perfeito, nunca encontrei uma falha em tudo que pregou...O filósofo escolheu as melhores palavras, pois não queria magoar o irmão, mas sabia que às vezes, para remover as chagas do obscurantismo, é necessário empregar remédio amargo. Parou de andar e convidou Salvador para sentar sobre uma pedra no final da enseada. O sol já despontava no horizonte, os barcos dos pescadores voltavam com suas redes cheias da valiosa mercadoria que logo seria vendida. Os primeiros compradores assomavam ao local onde os homens do mar desembarcariam. Rememorando um trecho bíblico, Darwin disse: Jesus falou à multidão que o seguia, se é mesmo que falou ou se colocaram em sua boca mais tarde, que ninguém vai ao Pai, isto é, chega ao céu, senão por ele. Nunca me conformei com essa frase, Salvador, pois demonstra acima de tudo arrogância, pois ignora que o mundo é habitado por judeus, hindus, muçulmanos, taoístas, agnósticos, ateus, que têm suas próprias crenças, dúvidas ou descrenças. Seguindo essa obtusa ótica cristã, os mais de cinco bilhões de seres humanos de hoje já estão condenados. Sem falar em todos que nos antecederam e morreram sem abraçar a fé cristã. O que é incrível e assustador, é que a teologia cristã ensina que um estuprador e assassino de dez crianças merece o céu, caso se arrependa, confirme a fé em Cristo e se confesse no último minuto de vida. Mas um judeu honesto, bom pai de família, vai para o inferno. Isto é, segundo essa visão desvirtuada, a crença é mais importante que o ser-no-mundo. Salvador, você consegue compreender a magnitude dos problemas que essa crença tem causado à humanidade? Não importa o quão honesto for o indivíduo, se não crer nessa Igreja que se julga a detentora da verdade, tem o passaporte carimbado para o fogo da Geena. Desculpa, mas isso é bem humano, demasiadamente humano.
Os gêmeos ficaram em silêncio por longos minutos, observando os barcos que atracavam à praia. Os peixes pulavam dentro das embarcações, reluzentes ao sol, impregnando o ar com seu característico cheiro, braços nus e bronzeados os colocavam em enormes cestos, pesavam-nos em balanças enferrujadas e os embrulhavam em jornais velhos, sob vigilância atenta dos compradores e das aves negras que voavam em círculos esperando alguma sobra para o almoço. Ali, naquela pedra, dois homens assistiam a tudo, mas suas mentes estavam distantes, remoendo o debate daquele início de manhã. Num acordo tácito, pois embora todo o tempo afastados um do outro, parecia que falavam telepaticamente, não teceram mais conjecturas metafísicas naquele dia. Levantaram-se e foram escolher algumas sardinhas e corvinas para o almoço.
O irmão católico não perdeu a fé, Jesus ainda é seu ídolo, mas não acha mais necessidade em se confessar. Desde que aprendeu sobre como as religiões exercem poder sobre a vida das pessoas, para o bem e para o mal, dispensou os intermediários entre ele e Deus. Agora, a conversa é direta com o Criador; se faz bem a ele, não serei eu quem irá julgá-lo.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
Gatos e humanos (Sônia Pillon)
Existem muitos mitos relacionados aos felinos. Por conta de ideias trazidas no inconsciente coletivo, que remontam à Idade Média, a chamada “Idade das Trevas”, os gatos passaram a ser associados às bruxas e seus feitiços, apontados como criaturas maléficas e traiçoeiras.
E por mais que séculos tenham se passado e já estejamos em pleno século 21, ainda é comum ver pessoas declararem que que não suportam sua presença e até que odeiam os bichanos. Nos casos mais extremos, torturam e matam. Há os que nem sequer os dão o direito de viver, os condenando à morte por afogamento, tão logo são paridos...
Os intolerantes alegam que eles soltam pelos, que arranham e destroem móveis, roupas, utensílios... Outros justificam o não gostar porque eles seriam egoístas e se apegariam mais às casas e ao conforto que desfrutam, do que aos próprios donos...
As estórias infantis, os quadrinhos e os desenhos sempre foram pródigos em apresentar personagens sádicos, como “Tom” (Tom & Jerry), “Garfield”, preguiçoso e egocêntrico, “Manda-chuva”, que comandava uma gangue de gatos de rua, e o arteiro “Gato Félix”...
Mas, para os que conhecem de perto esses animais lindos e de pelagem brilhante, sabem que eles podem não ser espalhafatosos em suas demonstrações de afeto, como os cães, mas nem por isso são menos afetuosos. Um gato que é acolhido, alimentado, bem cuidado e tratado com carinho por seu dono (a) sabe, sim, retribuir a atenção de forma profunda e leal. Mas, se for tratado com hostilidade, agirá em defesa própria, seguindo a lei da sobrevivência...
É certo que eles se “adonam” da casa, se esparramam por todo o canto, são altivos e têm personalidade. Na verdade, em alguns casos, eles parecem agir como se fossem os donos e “permitissem” que os humanos ocupassem o espaço... Mas, pensando bem, para os que amam gatos e respeitam sua personalidade, essas características importam muito pouco, pelo bem que a sua presença faz na vida de seu dono (a).
Fatores como beleza, faixa etária ou recursos financeiros do dono não são levados em consideração por eles, que amam incondicionalmente os que entendem seu jeito de ser.
Os gatos eram venerados no Antigo Egito, e muitos acreditam que eles são profundamente sensitivos e sensíveis, atuando como “filtros” das energias negativas no habitat que dividem com os humanos. Nos casos mais extremos, há os que afirmam que eles podem até adoecer seriamente por serem tão protetores.
Por todos esses fatores, mesmo que você não morra de amores por gatos, pelos menos os respeite. Eles têm o direito de serem tratados com dignidade, até porque maltratar animais é crime e um ato que não se pode tolerar em seres que se dizem “humanos”.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Vivo para você (Elianete Vieira)
Observo tudo e todos à minha volta.
Sonhos, correria, vozes, silencio, dia, noite, vento, chuva, sooolllllll
Várias duas pernas passam e nem me olham.
Se não fosse a chuva me alimentar e o sol me fortificar, não resistiria uns poucos dias.
Pequenos tentam me tocar, mas tenho medo, espeto seus dedinhos xeretas.
Outros me tocam com carinho, sabem me acariciar e não se machucam. Alguns se aproximam para me sentir.
Para estes, libero meu aroma e meu mais belo sorriso.
Alegro seu jardim e sua vida.
Volte sempre.