quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Cheiro de infância (Inacio Carreira)

Não sei se naquela época já conhecia as histórias do descobrimento e das caravelas que vieram de Portugal. Mas aquela lata, que chegava pontualmente às vésperas do Natal, ele conhecia bem. Ela o intrigava. Era promessa de risos de alegria e lágrimas de lembranças e saudades. Uma tia-avó da "terrinha" mandava, pontualmente, aquela insólita embalagem contendo cartas, panos de prato, às vezes um corte de tecido, um xale, bolachas caseiras e balas, divinas balas... Divididas entre os muitos netos, as poucas balas eram iguarias divinais. Saboreá-las era transformado num ato às vezes cerimonioso, quase sagrado: só depois da janta ou após beber um gole do copo de água que a avó depositava todo santo dia, na frente do rádio, para ser bento desde Aparecida do Norte. Daquelas balas ele sempre se lembra, mesmo agora que a variedade de guloseimas nos supermercados, padarias e lojas de conveniência oferecem, ao olfato e ao paladar, até odores e sabores que não existem na natureza. Mas tinham um cheiro e um gosto peculiares aquelas balas anuais, embrulhadas em papel manteiga por mãos que ele nunca viu, nem veria; com certeza, feitas de forma artesanal em algum tacho de cobre, num fogão à lenha, numa pequena aldeia com ruas estreitas, medievais, casas de três andares erguidas de pedra e madeira, embranquecidas àquela época pela neve que ele só conhecia por devaneios e sonhos, as pegadas e os uivos longínquos dos lobos arrepiando a alma... A memória guardou a lembrança do gostar do gosto e do olor daquelas balas natalinas, mas não o próprio gosto e cheiro. E ele tenta recordar e associa - talvez erroneamente - com cheiro/gosto de cabo de guarda-chuva (que só bem tarde da vida acreditou ser o gosto/cheiro da cola de madeira); cheiro de São Jorge na lua; de bolinhas de gude; de seixos rolados; de nuvens formando figuras; de asas de borboleta nos quadros da sala de estar daquela tia rica; de borracha de areia; de pedra sabão; de sabonete no lavabo daquela casa bonita onde não passou do hall; de hóstia de primeira comunhão... Gosto/cheiro de selo de antes, quando a cola era molhada na língua; de mão com o zinabre dos pegadores dos bondes abertos; do beijo no rosto daquela tia que a mãe falava à boca pequena ser doente, "não podia passar sem homem"; de chuva de verão misturado ao forte cheiro da terra quente, molhada; de grama sendo cortada nos quaradores que ladeavam o caminho de chegada a casa. Cheiro de saudade, de flores misturadas ao odor dos pavios queimando nos velórios... Nas balas, cujo cheiro e gosto ele não lembrará jamais, um cheiro de infância, de inocência, da alegria de um dia talvez poder conhecer aquelas gentes que faziam aquelas balas naquela terra de onde ele veio (como semente genética não transgênica) e para onde só irá, tem certeza, quando misturado à terra e aos demais elementos, contribuindo algures para formar cheiros e gostos de outras infâncias, em outros tempos, outras crianças.



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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O discípulo e os três cavaleiros (Sônia Pillon)

Determinado em encontrar o caminho da Iluminação, o jovem Silas deixou seu país de origem, o Brasil, e decidiu empreender uma longa jornada até o Tibete. Foram dois anos de privações e de economia” franciscana” para reunir os recursos necessários. Depois de muito viajar, chegou o momento de subir o topo da montanha que o levaria ao monastério. A íngreme subida começou no lombo de uma mula, e nos últimos metros, a pé. Finalmente, Silas consegue chegar à presença do Mestre. Emocionado, o jovem cai de joelhos e chora. Com a serenidade peculiar de quem domina o conhecimento das forças universais e terrenas, o Mestre fez Silas se levantar e contar do porquê de sua visita.


- Estou nesta busca desde pequeno! Já estudei todas as religiões, pratiquei algumas por um certo tempo, mas nenhuma me deu as respostas que eu procuro. Diga-me Mestre, o que preciso fazer para encontrar a Iluminação?


- Em primeiro lugar, você deve começar uma jornada rumo ao Leste, que durará 90 dias. Nesse período, você encontrará três cavaleiros, e deverá tirar a lição que cada um deles deixar para você. Somente depois de encontrar o Cavaleiro de Gelo, o Cavaleiro da Vaidade e o Cavaleiro do Orgulho é que você estará apto a encontrar o Caminho da Iluminação, que você terá de trilhar com as próprias pernas!


E lá se foi Silas... Os caminhos eram tortuosos, mas nada detinha o discípulo! Ao completar 29 dias, Silas avistou o Cavaleiro de Gelo, que não demonstrou nenhuma emoção ao ser abordado pelo viajante, que se disse com sede e fome. Com um olhar de granito, virou as costas e se foi... No segundo mês, viu o Cavaleiro da Vaidade, que chegou numa roupa vistosa, numa capa vermelha e brilhante. Ao ver o jovem em roupas rotas e empoeiradas, o olhou de cima a baixo e também o ignorou. O Cavaleiro do Orgulho, com olhar altivo e indiferente, também se negou a ajudar Silas.


Exausto e desanimado, o jovem seguiu pela tortuosa estrada. De repente, estaca ao ver o Mestre. – O senhor?! Mas...


- Diga-me, discípulo, o que você aprendeu nessa viagem?, perguntou o Mestre.


- Que a insensibilidade, a vaidade e o orgulho são incapazes de contribuir para o Bem. Mas e agora, o que o senhor tem a me dizer?


- É simples, meu jovem! Para alcançar a Iluminação, você precisa ter Fé, contribuir para o bem-estar do planeta, praticar a Solidariedade Humana, valorizar a família e os amigos, e buscar o Sucesso através da sua realização pessoal e dos outros. Só assim você alcançará a paz interior, e consequentemente, contribuirá para a paz mundial.


Depois de ouvir atentamente as palavras do Mestre, Silas foi embora pensativo. Ele sabia que já tinha ouvido tudo isso antes, mas precisou ir tão longe para acreditar!...


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Publicado na revista virtual Letras Et Cetera, em 21 de dezembro de 2010.
Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e há 14 anos radicada em Jaraguá do Sul (SC).
Leia Mais: http://nanquin.blogspot.com/2010/12/contos-de-solidao-o-discipulo-e-os-tres.html#ixzz18lj1ZCrG
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domingo, 19 de dezembro de 2010

Feliz Natal (Tiago Nascimento)

Noite alta

A estrela d'alva

Três reis mag(r)os

Alguém nascendo

Logo ali...

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Um forte abraço aos leitores e aos amigos escritores. Que o amor pregado pelo Cristo contagie a todos.

 

Vídeo Indicado pela Cristina Pretti:





sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Dona Esperança (Sônia Pillon)

Sônia Pillon


 

Sentada no piso frio da calçada de uma das principais ruas da capital, dona Esperança podia ver todos que passavam na altura da cintura. Desde os mais apressados, a caminho do trabalho ou de casa, carregando os filhos ou sacolas pela mão, até os que passavam sem a mínima pressa, arrastando os pés. Os cabelos semi-grisalhos, as rugas profundas, a obesidade e a aparência geral de desleixo não são um mero artifício para pedir esmolas. Ela realmente está ali para mostrar seus pés disformes, cheios de feridas, que de tão grandes chocam os passantes mais sensíveis.

Ao mesmo tempo que causa olhares de repulsa em alguns, ou de indiferença, em outros, é com a piedade dos passantes que ela conta para sobreviver. Para ela, que se apega àquela vida miserável com unhas e dentes, sem ao menos entender a razão, algumas poucas moedas podiam significar um café com leite, acompanhado de um sanduíche, nos dias de maior sorte, ou mesmo um pão com manteiga para aplacar a fome. Uma fome que atravessava suas entranhas e chegava até a alma. Fome de vida, de alegria, de um prazer que há muito deixou de ter!...

E pensar que já foi uma mulher bela, disputadíssima pelos ricos clientes do bordel, há décadas atrás. Chegou a ser leiloada numa grande festa privè, promovida por um manda-chuva político. Naquela época, não faltavam jóias e dinheiro, e até ganhou uma casa bem confortável, de um figurão que tinha caído de amores por ela. E chegou também a ser pedida em casamento por um farmacêutico cinquentão. Tímido, viúvo e apaixonadíssimo, ele queria fazer dela sua esposa.

- Esperança, você é a esperança da minha vida! Case comigo e seja a mãe dos meus filhos!

Mas ela ria, ria... Imagina se ela, no auge dos seus 20 anos, iria se enfiar atrás de um balcão de farmácia, quando tinha o mundo a seus pés?!... Que simplório!, pensava.

Mas o tempo foi passando, e as noitadas, as bebedeiras e as sucessivas doenças venéreas começaram a deixar suas marcas naquele corpo, até então perfeito. Aos poucos, foi perdendo tudo o que tinha, inclusive aqueles que considerava amigos. Todos fugiram como ratos num naufrágio!...

Mas foi o crack que a levou definitivamente para o fundo do poço. Já nessa época, suas pernas e pés ficaram irremediavelmente deformados, e passou a mendigar pelas ruas da capital. Dormia numa casa abandonada, com outros excluídos como ela. À noite geralmente chorava, e pensava que podia ter dado outro rumo à sua vida, não fosse a vaidade e a ambição. Tinha 40 anos, mas aparentava mais de 60...

Mas num desses dias em que ela estava em frente a uma galeria comercial, com frio e fome, e com a caixa de papelão à espera de uns parcos reais para seguir vivendo, eis que surge um homem bem vestido, calvo, que a olha no fundo dos olhos.

- Esperança! É Você mesma?!...

Nesse momento, Esperança devolve o olhar e reconhece o farmacêutico José, profundamente envergonhada.

- O senhor está enganado! O meu nome é Maria... Maria da Conceição...

- Não, não, eu jamais esqueceria esses olhos, Esperança!... Meu Deus! Venha comigo, você está precisando cuidar dessas feridas! Eu vou te levar até a minha farmácia...

Os olhos de Esperança se encheram de lágrimas, que ela não conseguiu conter. Bastante constrangida, ela aceitou ser conduzida pelo farmacêutico. Ele morava num bairro distante dali, no piso superior da farmácia. José a fez tomar banho e vestir roupas dele, que curiosamente serviram bem. Ele tinha engordado também, nos últimos anos...

Enquanto ele servia uma refeição à Esperança, que não queria acreditar no que estava acontecendo, ela foi contando sobre os excessos, as drogas... Ele ouvia tudo atentamente, comovido. No dia seguinte, ele saiu para comprar roupas novas para Esperança, bem coloridas, como ela gostava.

E nos dias que se passaram, José cumpriu o que prometeu. Os dois sabiam que ela não tinha muito tempo de vida, pois estava bastante fragilizada, mas preferiram não tocar no assunto.

Uma noite, quando Esperança ardia em febre, e José estava sentado ao pé da cama, como sempre, finalmente Esperança falou.

- Nunca pensei que existissem pessoas como você nesse mundo, José! Depois de eu ter rejeitado você, poderia ter se sentido vingado, como tantos outros...

- Não, Esperança! Você foi como um cometa, que apareceu num momento muito especial da minha vida, e fico feliz em poder estar aqui, agora, com você...

José pega as mãos de Esperança, que as aperta fortemente.

- Muito obrigada por tudo, José!... Eu nunca te disse, mas sempre me lembrei de você com saudades... Você foi o único que me tratou como gente... Se eu pudesse voltar no tempo...

Mas subitamente ela parou de falar. E o farmacêutico José, que sempre foi tão solitário, chorou por muitos minutos ao seu lado... Tinha reencontrado o seu amor e perdido de novo...




Escrito em 8 de dezembro de 2010.

Sônia Pillon é jornalista e escritora. Natural de Porto Alegre, está radicada há 14 anos em Jaraguá do Sul.