quarta-feira, 25 de abril de 2012

De tanta pena que dá (Vana Comissoli)

         Puxou a cadeira e sentou-se. As pernas largadas, os pés plantados no chão, o corpo escorregando pelo assento, em dissonância.

Não pediu, mas o garçom colocou à sua frente uísque com gelo e uma garrafa de água mineral. Não levantou os olhos, mas sabia que Ronaldo, o dono da boate, estaria controlando a quantidade de bebida no copo. O trato era muita água, pouco álcool. Mulher com bafo não está com nada, a casa é de bem, recebe homens de nível.

Josias, o garçom, voltou ao balcão, encostando-se e dispôs-se a observá-la: a pele de cor brasileira com olheiras lembrando lagos roxo sob os olhos não combinam com o vestido verde brilhante que lhe deixa metade das coxas à mostra.

Do jeito que está sentada, se fizer a volta, pegando-a pela frente, Josias enxergará o entre-pernas. Diz um colega que ela não usa calcinhas e não se importa em mostrar tudo. É sacana a Marise, faz isso, mas não dá para qualquer um, só pagando. Para eles, colegas de trabalho, não dá nem pagando. Por que mostra então?

A bolsinha de alça comprida foi aberta e um maço de cigarros longos e finos apareceu. É uma bolsa dourada, de malha metálica, cabe o cigarro, o isqueiro e a chave solta. Algumas camisinhas apertam-se no fundo.

As sandálias, também douradas, revelam as unhas dos artelhos coloridas de vermelho escuro. Tem uma correntinha em volta do tornozelo. Josias fixa os olhos na corrente reconhecendo que o enfeite é um tesão. Será que gosta de masoquismo, essa daí? Sorri, antecipando em sonhos o que jamais terá coragem de fazer.

Os cabelos crespos estão presos por um pente espanholado numa volta caprichosa e a orelha exposta tem uma argola de falso ouro. É um mulherão e que bunda tem! Josias coça os bagos disfarçadamente, graças a Deus não chegou nenhum cliente para as mesas que serve.

Marise acende o cigarro.

“Porra de noite, não estou nem um pouco a fim. Ronaldo desgraçado, não dá folga e vem com história de descontar falta. Ainda esfrego uma sífilis na cara dele de tanto usar a coisa.”

Sopra a fumaça para o alto, como viu no filme “Gilda”. Era um filme muito velho que assistira por acaso na TV, num vício de ligá-la mal entrasse no apartamento. Gostavam de passar esses filmes nas madrugadas,os insones assistiam qualquer coisa que assemelhasse companhia.

Rita Hayworth cantava languidamente e apaixonava todos os homens da casa noturna, quando ela se dispunha a desligar o aparelho. Ligou-se na cena e foi até o fim, Gilda era uma figura e tanto, caía como luva no tipo físico dela.

No dia seguinte comprou pentes e passadores para prender um lado do cabelo, cortou-os pouco abaixo dos ombros. Pouco a pouco, na medida da lembrança, copiou os vestidos da personagem,sabia que não eram muito modernos, mas a sensualidade da figura seduzia. Seu trabalho também não era muito moderno.

Levanta a mão e faz um sinal para que Josias se aproxime. Deixa a voz soar alta quando pede outra dose, hoje pagará, está de folga, resolve neste instante.

O garçom relanceou os olhos para o patrão, fazer o quê? A diaba ainda passa a língua nos lábios vermelhos. Ronaldo afasta-se de seu posto e vem em direção a eles, o pescoço impulsionando a cabeça para frente como um aríete.

− O que está acontecendo aqui? Motim?

− Não Ro, − a voz de Marise é ondulante, os olhos se rasgam numa demorada vistoria da abertura da calça do homem − estou nas regras. Hoje sou cliente.

Ninguém resiste à Gilda.

Ronaldo passa a mão nos cabelos, relanceia os olhos pela casa vazia nessa terça-feira de bosta e volta para seu lugar grunhindo :

− Está bem, melhor dinheiro de puta que dinheiro nenhum.

Josias enche o copo deixando o “choro” da bebida alongar. Marise sorri e passa, de leve, a unha pelas costas da mão dele,a garrafa dá uma pequena tremida e alguns pingos de uísque molham a mesa.

− Desculpe. Já limpo. −A voz do garçom é hesitante.

Marise sorri como uma lambida, sem revelar a constatação: Josias é um bolha. Bonzinho bobão. Faz uma semana que começou a trabalhar na casa, tem um ar perdido e um titubear ocupa a boca. A camisa levemente encardida escorrega as mangas para fora do paletó escovado,de cinco em cinco minutos, ajeita a gravata borboleta teimosa em voar de lado no seu colarinho. Um perfeito panaca.

A música resvala nas cadeiras vazias,um e outro cliente entra. Poucos casais escondem-se nas mesas de canto. Duas moças chegam juntas e sentam-se separadas.

Marise fecha a cara quando um sujeito grande fixa nela olhos de convite. Já estipulou o feriado,nem sabe como Ronaldo concordou tão fácil. Toma três doses seguidas, até um torpor amortecer os lábios.“Agora vai devagar”, completa o copo com água mineral.

Josias acompanha os gestos da mulher, de todas é a preferida, transpira certa ausência que dá vontade de preencher, parece obrigada a estar ali. Vê quando se levanta um pouco vacilante e dirige-se ao banheiro carregando a bolsinha dourada,vai retocar o batom com certeza. Pena estar nos dias, não adianta ficar na frente da cadeira, estará de calcinha hoje. Melhor olhar assim, de revés, pode vigiar seus movimentos e enxergar a bunda fugindo da cadeira.

A porta do banheiro fecha-se atrás dela. Respira fundo. Fixa o espelho que toma conta de toda a parede em cima da pia. Já foi casa fina até sair de moda.

Retoca o batom, empoa o rosto e espirra perfume adocicado embaixo do cabelo. Têm guardadas, numa das gavetas do armário embaixo da pia, essas ferramentas. As moças do lugar são proprietárias de gavetas. Ronaldo faz questão da aparência: mercadoria empoeirada e desleixada não vende bem.

Levanta o vestido, senta no vaso. Ri satisfeita. O barulho da urina cachoeirando.

Abre novamente a gaveta e tira um pequeno embrulho de papel branco, observa com ar entendido o pó que contém. A pedra da pia serve. Enfileira e aspira tapando uma das narinas,fecha os olhos, volta a sorrir. A vida é boa. Talvez saia dali e encontre um cara gostoso de levar para cama. Trepar é o melhor da vida.

− Demora no banheiro. Será que passa mal? − Josias preocupa-se, ela parecia tão solitária,essas mulheres são infelizes. Quem pode ser feliz nessa vida? Desgraçada falta de dinheiro, a gente vende a alma por causa dele. Elas também.

Afinal Marise sai. Um sorriso parado, doído de se ver perturba o rosto.

Os pensamentos correm dentro de Josias. − Tirar a moça daqui... Quem sabe um dia? Garanto que gostaria. – Um nojo, toma conta dele, o mesmo que sentia quando pequeno e a mãe o levava para beijar o Senhor morto na sexta-feira da paixão.

Ronaldo observa Marise voltando para mesa.

“A filha da puta já se chapou. Qualquer dia terei que carregar a vaca para um hospital. Hoje não me meto,está de folga. Ai que tente fazer em dia de trabalho, ponho porta a fora.”

Gosta da Marise, é chamativa, bonitona mesmo,não é novinha, não tem chiliques,faz das suas sem escândalo. Entrou na profissão com consciência, não choraminga fingindo que é obrigada.  Nunca se deitou com ele,não faz mal, é até melhor. As outras, enquanto não conseguem não sossegam, depois enchem o saco imaginando que são patroas só porque deram o rabo.

Já é bem tarde. Marise vê Josias olhando para ela. Podia levá-lo para casa, brincar um pouquinho,chama-o com o dedo. Antes se apruma na cadeira, deixando, no entanto, os ombros caírem e os olhos se fecharem num traço melancólico.

Ele se aproxima. Ela está tão triste. Vida desgraçada!

− Josias, preciso ir, não me sinto bem. Será que podes me acompanhar?

O pedido pega-o de surpresa. Ele, o privilegiado? O peito enche-se de expectativa.Passou a mão nos cabelos que caíam sobre a testa, alisou a boca, pena ter raspado o bigode.

− Será uma honra, saio em meia hora. Podes contar comigo.

− Logo vi, Jô, logo vi. - A mão dela é macia, acarinha a dele.

Ronaldo sacode a cabeça. Marise é danada, quem olha para ela agora morre de pena,mas ele sabe: vai brincar com o rapaz. Faz um sinal safado para ela que responde num olhar de volteio.

O apartamento é um conjugado exíguo, mas está limpo. Um sofá cama embaixo da janela, onde a cortina listada de azul e laranja balança à brisa da madrugada. Uma pequena mesa,um vaso de flores artificiais centra-se nela. A cozinha é a pia com fogão de duas bocas em cima. Sobre ele um armário de portas de vidro guarda louças de desenhos azuis: dois ou três pratos, duas xícaras, alguns copos, uma garrafa de uísque. Fora isso apenas a porta do banheiro.

Uma prateleira com os mais variados enfeites. Um surpreendente quadro a óleo: o nu de uma negra de seios avantajados e boca à Di Cavalcanti.

Josias senta-se. Veste camiseta de propaganda e calça de brim que deixou a cor nas muitas lavadas que sofreu.

− Toma café, Jô?

Ele adora essa mania dela de abreviar os nomes,gostava de vê-la chamar o patrão de Ro, nunca pensou que pudesse merecer essa consideração.

− Café seria bom. - Responde indireto.

Ela desencava uma cafeteira elétrica e logo o cheiro do café passando mistura-se ao perfume doce que impregna tudo

- Tu és caprichosa, tua casa cheira bem.

- Limpo toda semana e depois ponho perfume num tubo de desodorante e borrifo.

- É do jeito que eu imaginava.

Marise sacode os ombros faceira,se fosse diferente ele também gostaria. Ela sabe disso. Estão sentados lado a lado, ele se apaixona aos poucos, ou já chegou apaixonado? O leve cheiro de suor saindo dela dá vontade de pegá-la no colo,mergulhar a cabeça nos seus cabelos. Tinha razão o Roberto Carlos em cantar os caracóis de seus cabelos.Cantarola.

Marise revira os olhos colocando as mãos no coração e sacudindo o corpo no compasso. Daqui a pouco ele atacará de bolero, aposto comigo um brilho da pesada,pensa começando a impacientar-se. O que mais incomoda é ter perdido a vontade de trepar,o desgraçado parece que vai quebrar-se. Como é branco, chega a dar aflição. Do fundo das lembranças, a figura de um cãozinho sarnento, volta.

“Pobrezinho do Lelé, está doente, ficar vivo é só para sofrer”. Ouviu durante alguns dias, depois o Lelé sumiu. De noite, um resto de conversa, entre as tias:

−...é de tanta pena que dá. Pobre Lelé.

-Sabe, Marise, entendo que precises fazer essa vida. A sobrevivência está barra,pra mulher é ainda mais difícil. Vou te salvar dessa miséria,não é por pena, gosto de ti de verdade.

Era só o que me faltava, ela pensa enquanto espanta a figura do cachorro.Com olhos baixos, puxa a barra da saia em direção aos joelhos,joga longe as sandálias douradas. Os brincos já estão abandonados sobre a mesinha.

− O doido é salvador dos pobres e oprimidos. − Dá uma fungada e esfrega os olhos, desacomoda-se, o sofá apequenou-se.

Josias ajoelha-se na frente da mulher.  Pega suas mãos.

-Por favor, não chores, não aguento te ver sofrer.

Por um instante, ela o vê. A testa lisa, desprevenida, os olhos redondos de cachorrinho, as mãos que tremem e suam segurando as suas. Suam como o focinho do Lelé quando lambia as mãos dela,o acariciava escondido porque sarna pega em gente. Fragilidade também pega?

- É verdade, Jô, dá pena mesmo. -Um suspiro acompanha a afirmativa.

Josias sorri, ela se entrega,qualquer um pode ver. É a noite mais importante de sua vida.

- Amanhã avisamos o Ronaldo que não irás mais.

Marise não acredita no que está ouvindo. Será que não percebe o brinquedo? Será que ainda existe brinquedo? Este estupor que sente no peito é de mentira também?

Envolve a cabeça do rapaz,ele deita em seu peito. A mulher sente-lhe o latejar das têmporas. Josias a beija no colo, um beijo de lábios fechados,em seguida levanta os olhos brilhantes de umidade.

Que posso fazer, pensa Marise, enchendo-se de quase remorso. Deito-me com ele? Faço qualquer coisa para fechar esses olhos,dói na gente uma criatura assim desprevenida.

−Minha querida, te comprarei vestido de noiva e teremos lua-de-mel.

Marise pega seu rosto entre as mãos e beija-lhe a boca, a língua desbravadora abrindo os dentes a mão encaminha-se para o sexo que encontra murcho.

- Não é hora ainda, amor. Vamos casar, saberei te respeitar.

A voz de Josias é como um acalanto e fere. Ela se levanta, procura com avidez o pó branco libertador, arruma uma carreira sobre o tampo da mesa. Lá fora começa a amanhecer. A gosma cinzenta da manhã custa a penetrar o breu da noite.Aspira a cocaína. Mais uma dose que o momento exige.

- Que estás fazendo, querida?

-Me drogo, Jô. Não sabias?

- Não te culpes, é a vida miserável. Disso também te libertarei.

- Tu não existes, Jô. - Marise se lembra de filmes da madrugada, espichados e melosos.

- Existo prá ti.

- Vem até a janela, olha o dia, a cidade, junto comigo. − Abre a cortina e debruça-se no parapeito ajoelhada sobre o sofá. Ele a segue, coloca o braço sobre seus ombros.

- Que vês lá embaixo, Jô? - A voz dela está ansiosa,deseja que responda que vê uma cidade prestes a despertar enquanto quer dormir, o sol machuca os olhos e a luz cansa.

-Vejo nosso futuro onde viveremos felizes. - A voz cintila.

- Isso não é possível. As pessoas são cruéis,tudo é cruel. Somos puros demais para elas. Melhor que casar,Jô, que é uma situação que se acaba, é morrer juntos. É o casamento eterno. - Tropeça um pouco nas palavras, arrastando o ridículo da situação.

- Não fales assim! Juntos mudaremos tudo. - Josias abraça-a com sofreguidão, tapa-lhe os olhos numa tentativa de fazê-la enxergar o que ele vê.

- Por favor, meu querido, - ela beija-lhe os lábios - tu disseste que me amas. Farias qualquer coisa por mim?

Josias sacode afirmativamente a cabeça, acarinhando o rosto onde a maquiagem já derreteu e pequenas rugas aparecem acusativas. O cabelo de Gilda revela-se fosco e desbotado.

- Vamos morrer juntos. Eu te suplico.

Ele estremece. Estou ouvindo direito? Ela realmente está dando sua vida para mim?

-Tu e eu?

Marise sacode a cabeça numa afirmação. Fica em pé no sofá, ele a segue.

- Espera, quero morrer bonita.

Vai para o banheiro e refaz a maquiagem. Ele espia enquanto pentea o cabelo com as mãos, estica a camiseta. Ela pede licença, fecha a porta.

Ergue os olhos para um velho crucifixo escondido atrás da porta,coisa de se ver em hora de aflição. O homem pregado nele desperta uma pena danada. Será que foi de pena que fizeram esta ferida nas costelas? Devia estar sofrendo muito, o pobrezinho. Cheira de novo. Sai revigorada.

Voltam ao sofá de mãos dadas, ficam em pé no assento, beijam-se e olham a rua. O sol é uma bola vermelha. Prenúncio. As nuvens amortecendo a cor refletida no topo dos prédios, reverberando tons nos cabelos de Marise. A madrugada cedeu espaço para a glória.

Ela sobe no peitoril da janela. Ele também.

- Larga minha mão, Jô. Quero que nossas mãos se encontrem em pleno vôo e precisamos rezar para que nossas almas não se percam.

- Eu preferiria que fôssemos de mãos dadas.

O tom é levemente choroso.

- Estarei contigo. Não tenhas medo porque eu não tenho. Vai!

Os braços de Marise são de aço e o corpo magro dele não demora a desequilibrar-se. Ela consegue ver os olhos de surpresa e aceitação antes que o corpo dê uma volta sobre si mesmo e inicie a queda vertiginosa, as mãos agarrando-se no ar, na luz já amarelando.

Marise desce da janela, acompanha o balé desordenado de Josias. Por fim fecha os vidros e corre as cortinas. Prepara outra carreira de pó.

− Tanta pena que dá!

Aspira.

Vana Comissoli

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Notícias Bizarras (Sônia Pillon)

Todos os dias nos deparamos com fatos inusitados. Basta acessar qualquer site de notícias ou outros meios de comunicação que lá estão as notícias mais bizarras. Ontem mesmo, num desses links recheados de notas espantosas, dava para saber que na Inglaterra, um cão pastor alemão bateu o recorde de latido mais alto, com um volume de 108 decibéis!... 
Na Austrália, larvas de peixes de duas cabeças “apareceram” em um rio do estado de Queensland, uma aberração da natureza possivelmente resultante da contaminação por substâncias químicas. A deformação genética, deplorável, é um dos tantos reflexos da ação nefasta do ser humano sobre a natureza, mas parece que para muitos ainda é motivo de riso... 
No momento em que as nações mais poderosas do planeta se reúnem exaustivamente em busca de soluções eficazes, situações como essa devem servir de alerta. Chega de falácia! A hora de agir é agora, sem mais delongas, principalmente entre os países de primeiro mundo, os principais responsáveis pela degeneração do planeta e o consequente aquecimento global... Na década de 90 tínhamos prazos, mas os avanços até aqui se mostraram inexpressivos, e as mudanças de hábitos, tímidas...
Outra novidade “espantosa” é a de uma vaca, flagrada caída na piscina de um britânico, nos arredores de Londres. O animal não teria resistido à curiosidade e resolveu dar um mergulho para experimentar... Antes se dizia que a vaca ia para o brejo, agora temos que cuidar para não atraí-las às piscinas...
Mas o que mais me chamou a atenção foi a história do australiano de 62 anos, professor de história aposentado, que decidiu doar para um museu a sua pele tatuada quando partir dessa para melhor... No seu entender, as 62 tatuagens coloridas que tem espalhadas pelo corpo são uma verdadeira “obra de arte”. Alguém aí contesta?... Afinal, quem é que pode com as excentricidades humanas? Seriam tentativas desesperadas das pessoas em deixarem de viver “no piloto automático”, sem perspectivas e força de vontade suficiente para chutarem o balde e serem o instrumento de mudança das próprias vidas?!... Será que arregaçar as mangas e partir para a ação não seria mais proveitoso, nesses casos? Fica aí a reflexão...

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC), Brasil.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Epitáfio (Marcelo Lamas)

O meu relacionamento com a “morte” começou cedo demais. Quando a minha mãe teve as dores do parto, foi um tio da funerária que nos levou pro hospital. Porém, só quando eu já tinha passado dos trinta, alguém do meu círculo mais íntimo veio a falecer, a minha avó. Meus pais tomaram o cuidado de marcar o enterro para um horário bem adiante, de modo que houvesse tempo de pessoas como eu, que estava a 900 km, pudessem chegar. Mas houve estranheza por parte dos presentes na cerimônia, pois eu não apareci.

Eu tinha um contrato apalavrado com a velha, que me liberou do compromisso, pois, logo que começaram a morrer os amigos e parentes contemporâneos, ela passou a tocar no assunto: qualquer hora chegaria a vez dela; da turma do colégio só tinha sobrado ela; e dos fundadores do clube de futebol, ela era a única com vida.

Foi numa visita aqui em SC que conversamos sobre o caso. Perguntei se ela fazia questão que eu estivesse na cerimônia, argumentei que o importante era estar por perto quando a pessoa estivesse viva e que eu, modéstia à parte, nunca me furtara de acompanhá-la nas viagens a trabalho, pois ela vendia roupas à domicílio em lugares remotos. Também fui o seu par em eventos sociais, que não eram poucos. Perdi a conta das vezes que fui o motorista para levá-la para tomar café com as amigas ou que fui buscar as mesmas amigas para tomar café com ela. A minha irmã me substituiu nesta tarefa quando mudei de cidade. E desde sempre, a avó Alice contou com o primo Wellington, este sim, guerreiro, que era o seu acompanhante oficial em eventos fúnebres, conhecesse ele o defunto ou não.

Com bom humor costumeiro, minha avó dizia que levantaria do caixão para me defender, caso alguém cobrasse a minha presença na sua hora final. A propósito, toda vez que eu lhe mostrava alguma novidade ela dizia: “Morrendo e aprendendo”. Até hoje não sei se ela havia entendido mal o provérbio ou se era um trocadilho proposital, por causa das suas nove décadas.

Numa palestra, o biógrafo Ruy Castro comentou que no dia seguinte da morte do Tom Jobim, uma editora americana entrou em contato para contratá-lo. Ele negou o serviço, pois, segundo ele, logo depois de morto qualquer um vira perfeito por um tempo e o biografado ideal é aquele que morreu há pelo menos dez anos, o que seria tempo suficiente para aparecerem todas as histórias que ainda não eram públicas, boas e ruins.

Quando eu morrer não quero velório. Não quero que amigos, parentes, conhecidos e inimigos cruzem histórias e que possíveis verdades e segredos sejam revelados a poucos metros de mim, sem que eu possa inventar uma desculpa.

Só peço que a poesia de Mario Quintana seja escrita e identificada na lápide: "Essa vida é uma estranha hospedaria, De onde se parte quase sempre às tontas, Pois nunca as nossas malas estão prontas, E a nossa conta nunca está em dia..."

Por Marcelo Lamas, escritor e autor de “Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora”.
marcelolamas@globo.com





quarta-feira, 11 de abril de 2012

O tubinho preto (Fernando Bastos)



- Não adianta negar – disse Antônio, com a voz embargada – O professor Benetti me contou, todos viram.

Corria o ano de 1981, Clarice era sua primeira namorada, e Antônio, então com vinte anos, já experimentava o sabor da traição. Algo tão comum na vida dos casais, em todos os tempos, mas que sempre deixa um rastro de dor, revolta e por quês. Junto do choro, veio o pedido de desculpas - Eu errei, juro que isso não vai mais acontecer. Foi a bebida...

Na cabeça dele, ela era a pior das putas. Nem bem completara quinze anos e já o traía. Logo ele, que lhe era tão fiel. Mas ela sucumbira à “luxuriae”, um dos sete pecados capitais. O outro tinha CB 400 – raríssima naquela época -, caminhonete moderna, apartamentos e até uma chácara com piscina, em que ela se banhava nua, ao lado do amante, enquanto o trouxa trabalhava duro, guardando grana para um dia levá-la ao altar.  

Mentira tem pernas curtas e logo descobriu tudo. A festa de Amigo Secreto não fora apenas confraternização de fim de ano. Sua namorada fora flagrada na cama com aquele filho de uma meretriz, os dois copulando freneticamente como dois discípulos de Dionísio. Todos viram, e, mesmo assim, ninguém lhe disse nada por três semanas a fio. Passavam por ele nos corredores do colégio, onde ela fazia o primeiro e ele o terceiro ano do segundo grau, com risos dissimulados. Talvez ele repetisse de ano voluntariamente, só para não perdê-la de vista. Quando ele perguntou como tinha sido a festa, ela se esquivava com respostas evasivas.

Um professor de Antônio, que esteve na tal festa, mais tarde lhe revelou, durante o intervalo de uma aula, que a dupla de adúlteros trepava feito um sátiro e uma bacante. Antônio não entendeu nada à época, mas ficou pensando como seria um sátiro comendo uma bacante. Deviam fazer coisas mais indecorosas do que ele fazia com sua doce garota. E repetia, quase sentindo prazer naquelas palavras: “ba-can-te...Ela é uma bacante”, e as imagens que inventava à noite, antes de dormir, da namorada dando para o amante, estranhamente lhe excitavam, de sorte que a ereção não tardava, e o gozo melava  a cueca, que não tirava devido ao cansaço.

Antônio engolia suas mentiras junto com as lágrimas. Sabia que não fora nem uma nem duas vezes. Aquela prostituta precoce se aninhava nos braços de outro homem, pelo menos o dobro da idade dela. Ainda por cima, era seu chefe, o dono da empresa onde trabalhava.

- Não adianta mentir, Clarice. Já sei de tudo.

A garota passou a semana toda pedindo perdão, enchendo-lhe a boca com seus seios juvenis e ouvidos com o canto das sereias, esfarrapadas desculpas, foi um ato impensado, e botava a culpa na bebida.

- Alguém colocou droga naquele copo.

Como era cínica! Agora se fazia de vítima. Todo pecador quando vê seu ato descoberto, finge arrependimento. Mas viveria em eterno delito, caso conseguisse manter sua funesta ação oculta dos olhos alheios. Nesse momento, não há uma viva alma que não esteja envolvida em algum pecado, que descoberto, lhe poria uma corda no pescoço, porém, mesmo assim, segue adiante crente que nunca será apanhada. E, por causa da força hercúlea em manter o crime incógnito, a dita alma viverá em constante tensão, de sorte que o envenenamento do corpo será questão de tempo.

Entretanto, ele a amava e a perdoou. Clarice o encheu de beijos e até fez um felatio antes de se deixar penetrar. Sua “eterna menina” fez juras de amor e prometera que seria somente dele, até que a morte os separasse. Antônio limpou as partes, vestiu-se, e combinou de ir buscá-la sábado, às 4 horas, para o casamento de um amigo dele.

Chegou às três. E foi logo entrando, eufórico. Queria mostrar o presente que comprara para ela ir ao casamento: um tubinho preto, justo e sexy, que realçaria as curvas daquele corpo adolescente. Naquela noite, todos o invejariam.

Disse “oi” à Cleonice, irmã da namorada, que via TV na sala e foi para o quarto dela. A moça ainda gritou:

- Não entre lá, Antônio, ela acabou de sair do banho e...

Ele voltou quieto e cabisbaixo. O presente, deixou escorregar no colo da cunhada.

- Use, é pra você.

 Fernando Bastos, cartunista e escritor.

 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

A voz que se calou (Sônia Pillon)

A sexta-feira amanheceu coberta de angústia na cidade que não pode parar. Era celebração da Paixão de Cristo, data sagrada para os cristãos. Os mais fervorosos fizeram penitências, jejuns e abstinências. Também aproveitaram para confessar suas falhas humanas e se redimir, quem sabe até de si mesmos...
Mas não foi só por isso que a cidade acordou com dor. Uma voz tão conhecida e admirada estava prestes a se silenciar. Como um pássaro ferido, cansado de se debater, aquela locutora de voz e carisma inigualáveis estava finalmente depondo suas armas, depois de cinco anos de luta contra uma doença feroz e traiçoeira. “Ela cansou”, confidenciou um colega de emissora e amigo de longa data, incorformado.
À tarde, a notícia de que a estrela de voz sexy e afetuosa não estava mais entre nós se espalhou como pólvora. Ninguém queria acreditar! “Uma mulher tão jovem! Como isso foi acontecer?!”, questionavam, perplexos. Logo vinha à mente a alegria contagiante que ela emanava pelas ondas do rádio, que conquistou tantos fãs!
Mas não somente no trabalho ela era assim. Nos eventos sociais, como apresentadora ou mestre de cerimônias, ou mesmo nos encontros da imprensa, ela sempre “chegava chegando”, simpática e elegante, elevando o astral do ambiente e se tornando o centro das atenções. Sempre com um sorriso de otimismo, ela exalava vitalidade. Verdadeira, era do tipo que se jogava de corpo e alma em tudo o que fazia, com genuína paixão.
Lembro dela em diversos momentos nos últimos anos, com as alterações físicas provocadas pelo tratamento, as perucas que costumava usar, e até tirar, com total despojamento e naturalidade, quando se sentia incomodada pelo calor provocado no couro cabeludo...
Na última vez que a vi, há cerca de um mês (nunca vou esquecer!), ela estava assistindo uma solenidade empresarial, sorridente, os olhos brilhantes, olhando para todos com ar de felicidade, como se dissesse: “Olhem, estou aqui novamente, feliz e repleta de esperança!”. E hoje agradeço a iniciativa de ter ido cumprimentá-la pelo que, naquele momento, acreditava ter sido a sua vitória contra doença...
Mas pouco tempo depois, seu corpo frágil não resistiria a mais um revés. Como toda guerreira que se preze, mais uma vez ela lutou e lutou, até que o Universo a chamou e a tirou de nós...
Sim! A sexta-feira amanheceu coberta de angústia na cidade que não pode parar! A partida dela está doendo em todos nós, que a conhecemos e a admiramos no período em que esteve aqui. Como o Cometa Halley, você passou pela Vida e deixou um rastro luminoso. Você, Fabiana Machado, ficará para sempre na nossa lembrança e nos nossos corações!

• Tributo à radialista e locutora Fabiana Machado, que morreu aos 37 anos em 6 de abril de 2012, vítima de câncer, em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, Brasil.

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC), Brasil.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Diferenças (Tiago Nascimento)

Não sei por que eu sempre confundo histórias reais com sonhos azuis.
Nada mais antagônico.
Nada mais antagônico? Existe algo assim.
Eu.

Se te digo: amor, pode não durar doze minutos.
Se te convido pra sair, melhor confirmar logo.
Se te prometo lavar a louça, melhor não acreditar.

Se lhe digo amor, beije-me logo, antes que a paixão acabe, antes que a roleta gire, antes que a roda gigante pare, antes que seu pai volte, antes que o filme acabe, antes que outro EU venha em meu lugar.
Posso não durar até amanhã. Aproveite agora!

Se eu confundo estórias azuis com sonhos reais, você me corrige.
Se lhe venho sorridente, é motivo pra você achar que mudei.
Pode ser, não sei, é provável que não, mas há uma grande chance de ser sim.
Não sei o porquê, mas sei que é assim.
Não crer nas bruxas, elas mentem.
As fadas também.

09/09/2010

domingo, 1 de abril de 2012

O ciclone e a reconstrução (Sônia Pillon)

O ciclone chegou de repente e derrubou tudo o que encontrou pela frente! Com sua fúria incontrolável, tombou árvores, fez ruir prédios altos e pequenos e levou o desespero e o medo, à medida que se alastrava pela pacata cidade litorânea. Na pequena aldeia de pescadores, os frágeis casebres de madeira foram ao chão como papel. Rajadas de ventos, implacáveis, não deixaram nada de pé, e o panorama geral era de desolação e dor. Em muitas casas, não houve tempo para escapar, e os mortos e feridos não paravam de crescer. As crianças e os idosos foram as maiores vítimas, reféns do mau destino. Pais e mães corriam em busca de abrigo. Uns procuravam salvar os filhos, enquanto outros choravam suas perdas.
Assim como as demais, nada sobrou da modesta casa de madeira de Maria, desde o telhado até o piso de cimento. As telhas de cerâmica agora não passavam de caquinhos, esmigalhados em mil pedaços. O madeirame, os caibros e as vigas que antes sustentavam aquela morada, estavam inacreditavelmente esparramados. Dividiam espaço com as tábuas que já foram paredes, um dia... Os móveis, eletrodomésticos, as roupas... Os sonhos, as lembranças, tudo havia desaparecido de uma hora para outra!... "Tanto trabalho, tanta luta para tudo acabar assim!", lamentava Maria, que não conseguia estancar as lágrimas.
Por muito tempo ela ficou ali, caída, com as mãos escondendo o rosto, imóvel, o coração apertado e as idéias desconexas. A noite chegou, e estava na hora de sair dali. Decidiu ir para onde todos estavam indo: ao ginásio de esportes da cidade onde tinham improvisando o alojamento coletivo. O local estava completamente lotado. Mas em meio à tanta dor também havia espaço para a solidariedade. Muitos chegavam trazendo colchões, cobertores, roupas, alimentos e brinquedos para a criançada.
Enquanto se acomodava no seu canto e tentava colocar a cabeça em ordem, Maria lembrava do passado, de tudo o que viveu naquela casa, agora reduzida a um monte de escombros.. Um flash back passou em sua frente, e por longas horas Maria projetou o filme da própria vida, até que o sono a sucumbiu.
Manhã do dia seguinte chegou, e para surpresa de todos, o sol se abriu em raios calorosos, circundado por um céu de lindo azul. O mar se mostrava calmo, em contraste com a tragédia do dia anterior. A beleza exuberante do balneário tinha conseguido um milagre até então impensável: trouxe a Esperança, e também suas irmãs gêmeas, a Coragem e a Força, que os faria seguir em frente e reconstruir suas casas e suas vidas. Ao seu lado, um ancião de olhos bondosos se consolava ao ver a neta correndo pelo alojamento, alheia aos problemas de "gente grande". Naquele momento, Maria teve a certeza de que o processo de reconstrução é possível para todos, desde que se utilize o tijolo da fé ancorado pelo cimento da determinação.


Crônica publicada no livro Crônicas de Maria e outras tantas - Um olhar sobre Jaraguá do Sul/ Sônia Pillon, Jaraguá do Sul, Design Editora, 2009, p. 82, ISBN 978-85-60332-48-9.

Sônia Pillon é jornalista e escritora, nascida em Porto Alegre (RS) e desde 1996 radicada em Jaraguá do Sul (SC), Brasil.