terça-feira, 26 de julho de 2011

Sobrevivente (Inacio Carreira)

Lembrava de nada. Um vazio na cabeça, parecendo desmiolado, mas era falta de memória mesmo. Mau contato nas sinapses. Zinabrou, diriam os antigos. Curto circuito. O clarão... O clarão! O clarão e um estrondo ensurdecedor toldaram-lhe os sentidos. Deve ter sido isto, então. Um lampejo de consciência, tirada não sabe de onde, fez com que refletisse. Onde estão todos? Onde estava com todos? Quem seriam esses todos?


A luz é difusa, confusa... Muitas sombras formam grandes áreas que não consegue vislumbrar. Não distingue quase nada. Nada, nada, nada... Como repete esta palavra. Como definir o nada, descrever o nada, pensar o tudo em presença do nada? Longe ou perto? Raso ou fundo? Suave ou agudo? Reto ou redondo? Firme ou movediço? Só dúvidas, dúvidas...


Louco não está ou, seguindo vaga e remotíssima lembrança, acharia tudo 10. Vinte. Mil.


Parece postado contra um encosto de pedras áspero, frio. Dor nas costas, as pernas teimam em não obedecer. Nem os braços. Sente-se uma coisa grudada à pedra. Mas não. Não? E se fosse? Que coisa seria? Uma lesma, perereca, indivíduo em uma colônia de fungos, uma ameba? Viagem, viagens... Pareceria com o ser que Kafka, em A Metamorfose, deixa que percebamos como uma barata? Bem, ele não deixa nada, a maior parte das pessoas é que veem o ser como uma barata. Que pode ser real ou metafórica, dependendo do entendimento de cada um. Ao menos estaria “barateando” por aí, andando, meio que rastejando, sentindo o ambiente com as longas antenas. Menos, menos...


Não se sentia metamorfoseado, apenas dormente. Uma dormência gostosa, como ao acordar de um sono reparador e o sangue, seguindo os impulsos vegetativos, começasse a ser bombeado com mais pressão para o organismo, oxigenando o cérebro e todo o sistema. Vivificando.


Era bonito o mundo apesar da poluição que às vezes o escondia:


Tinha sol, e crianças sorrindo para ele, e mulheres com tangas escondendo quase nada,


E barcos que se faziam ao mar: faziam até músicas, compunham-se poemas,


Falava-se de amor que, embora às vezes pago, era bom...


 Era bonito o mundo: as gentes se encontravam pela rua, ao que, às vezes,


Davam o nome de “trombada” (seriam eles como elefantes?);


E se fazia comercial até para vender o óbvio.


 Era bonito o mundo e hoje, tantos sóis quase nada iluminando a Terra.


Era bonito o mundo, antes do fim...


Como um bebê principiando o explorar do ambiente, tentou mexer os dedos. Conseguiu! Quase festa, não fosse a dor. Lancinante. Lacerante. Cortante. Num esforço sobre-humano, elevou a mão esquerda para perto dos olhos, enquanto buscava aproximar o conjunto da luz. Estava no lugar. Ou melhor, o que sobrara dela estava no lugar, na ponta do braço, com as enervações ligando seus trocentos ossos (exagero, na verdade são 17, lembrou). A pele... Ai, a pele... Meu reino por um antisséptico e bandagens, ousou pensar, mesmo sabendo do surreal da situação. Com o outro braço e respectiva mão o trabalho foi o mesmo, a dor foi a mesma, a expectativa foi menor. Sabendo das condições, embora precárias, de seus membros superiores, pensou em levantar-se. Não sem antes testar a movimentação das pernas. Somente testar, porque não conseguia vislumbrar nem silhueta das mesmas... Aparentemente estão em ordem. Agora sim. Como a alavanca de Arquimedes (eita, desde sempre acontece empulhação: Arquimedes não inventou a alavanca, mas explicou o princípio envolvido no processo de alavancagem), usa a perfeita combinação de ossos, músculos e nervos para tentar levantar. Não é fácil. São ativados os músculos tibial anterior, sóleo, gastrocnêmio, quadríceps, isquiotibiais, glúteo máximo, abdominais, paravertebral lombar, trapézio e esternocleidomastóideo... Ué, de onde apareceu tanta informação? Nunca foi atento nas aulas de Ciências, Biologia e congêneres. Inconsciente coletivo, diria Jung. Inconsciente talvez, ele estava morre-não morre, a vontade de continuar deitado entorpecia os membros, embora deles precisasse para voltar à condição de primata. Como estava, grudado à pedra, faria parte dos répteis? Dos batráquios? Das assombrações?


Era bonito o mundo antes do fim. Aparecem no fundo de sua memória, borradas, enevoadas, as visões do terremoto / tsunami / vazamento nuclear que prenunciou o final dos tempos. Final dos tempos ou início de uma nova era? Pois, não fosse assim, ele não estaria agora ruminando sua desdita e ouvindo, ao longe, sons de civilização, o famoso ruído branco que deu nome ao livro de Don Delillo. Ruído branco. “Som sempre presente do tráfego da autoestrada” ou “almas ... balbuciando nas margens de um sonho”?

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Alice... Quem foi que disse? (Vana Comissoli)



Alice não era do tipo que aparece, marca presença, pelo contrário, passava despercebida, ausente estando ali o tempo todo. Treino para quando virasse fantasma, ninguém vê, nem ouve, mas está ali. As pessoas comentando, fazendo de conta que ela não escutaria. Só ela sabia que escutava numa considerável distância, uma linguagem bem pouco conhecida e sem significado.
“Como a Alice é boazinha!”, “A Alice é um doce de pessoa”. Pontualmente a velha arrematava: “E é muito prendada.” Essa era a parte mais irritante. Ficava imaginando se dissessem: “A Alice é uma boba, dá palpite até no que não sabe”. A velha diria: “É, mas muito prendada”. Sabe-se lá por que ela fazia uma associação dos infernos, prendada era prenda atada. Ela era uma prenda atada a não sabia o que. Melhor treinar para fantasma. Distanciava-se do mundo brilhante demais, barulhento demais, incompreensível demais.
Será que fantasma, espírito, ou coisa que o valha também ouviria comentários? Os espíritas diziam que sim, mas não importava, ela via fantasmas de vez em quando, assustavam, se acostumou aos poucos, agora passavam e só. Luzes, brilhos, sons.
O que diriam dela? Uma folha morta? Um cogumelo de pernas? Se fosse surda em vida, talvez fosse surda depois da morte também, pelo menos não ouviria comentários nem que era muito prendada. Quais seriam as prendas de um fantasma? Teceria teias voláteis como os pensamentos? Vestidos de gaze tecidos com o orvalho da manhã que viram sonho ao sol? Essas elucubrações não preocupavam Alice, nem as tinha, mas enchiam de dúvidas a cabeça da mãe dela.
Vieram as férias, sabia que eram férias por que entraram no carro e andaram... Andaram... Não chegava nunca e é desassossegado ficar tanto tempo sentada sem uma linha nas mãos, sem espaço. As estradas são barulhentas e desconhecidas, um medo alucinado tomava conta dela obrigando-a a gritar, espernear a ponto de sua mãe prendê-la no banco, ou ampará-la no colo até que dormisse. Chegaram, após muitos cafés e pastéis. Essa era parte boa, ninguém tirava a comida de sua mão, podia brincar com ela jogando no chão e voltar a pegá-la engolindo sofregamente. A mãe olhava para o lado e fazia de conta que não via nada. Ficava mais complicado entender razões, no momento era bom.
Teve certeza que eram férias embora não entendesse o que deixava os pais tão sorridentes se tudo era igual, pelo menos para ela, nem sabia bem o que eram férias, coisa aérea e que não se pode tocar, nem por na boca. As linhas não muito coloridas estariam ao alcance da mão e podia, como sempre, fazer longas e frouxas tranças com elas. Depois a mãe inventava usos secundários como por na cintura ou prender os cabelos. Era quando a velha espiava e dizia: A Alice é tão prendada! Não era bom vê-la revirando os olhos enquanto falava, podiam saltar e fugir chão a fora até trombarem com a porta..
Respirou fundo por que o cheiro do ar vinha volitando sal, gostava desse odor ardido embora no início machucasse um pouco. Olhou a casa abrindo primeiro um olho e depois o outro, não dava para fazer tanta coisa de uma só vez, amedrontava. A casa onde estacionaram tinha porta de sorriso e janelas tremendo, o portão grunhia, outro fantasma a enfrentar, até que se acostumasse.
Não saiu no dia seguinte, não podia e não esperavam isso dela. Tudo tem que ser aos poucos, a caixa de Pandora, se aberta abruptamente solta perigosos monstros, mas tem fadas e duendes se nos acostumarmos às frestas. Ela se acostuma aos poucos com tudo, na estrada se anda passo a passo.
Foram à praia, o mar é aquele engolidor terrível que ruge até na calmaria, o pai deu a mão e, lentamente foi aprendendo que não seria engolida de supetão. Cuidado, um pé, depois o outro e o mar se acalma, embala, refresca os tremores.
Começou a sair sozinha, as férias criaram essa qualidade, podia ir para onde quisesse e não a barravam, foi assim...
O rapazinho estava sentado navegando o mar com os olhos. Não mexia nem um dedo, por isso Alice não teve medo, ia caminhando sem pressa e tiquetaqueou vontade de compartilhar a silenciosa espera dele. Esperaria a coragem chegar como ela esperava ou estava se acostumando com o mar? Não tinha respostas por não ter perguntas. Tampouco sabia se podia sentar ao lado dele ajudando na espera, então sentou. O rapazinho não se incomodou, não disse o nome, nem perguntou nada, a velha estava longe, sem observações sobre como Alice era prendada. Provavelmente o jovem não se encantaria com isso, tornou-o mais próximo.
Ia todas as tardes sentar-se ao lado dele, na convivência calada de navegar o mar, acostumar-se com a imensidão do céu, sabiam as mesmas coisas e por isso as palavras eram confetes desnecessários. No silêncio não há medo, o sorriso do rapaz dava certeza de que ele também sabia disso. Com ele aprendeu a defender-se do sol: a mão em aba olhando as águas sem que o movimento a perturbasse.
Nunca estivera tão confortavelmente próxima de alguém, alguma parte adormecida de sua alma acordou e ela balbuciou a primeira palavra. Já ouvira tantas vezes, mas ninguém entenderia se tentasse dizê-la: mar. Todas as formas muito grandes passaram a ser mar. Ninguém compreendeu de onde saíra, mas aprenderam que era enorme. O que parecia grande diminuiu e seu mundo se ampliou com isso.
Logo aprendeu outras coisas no silêncio tão fácil de se aprender. Um estranho prazer no peito que fazia sorrir. O rapazinho sorria e ela também. Segredos foram ditos alheios de sons. O primeiro amor desabrochou na areia desenhada pelas águas em ondas suaves.
No recôndito do peito, sem que nem por que uma vez desnecessário, bateu emoção que cavalgou sentimento. Os dias se tornaram um só, sentada ao lado daquele que tomara o espaço de todos em sua vida. Quando o sol procurava casaco para a brisa da noite não se acomodar nos ombros, ela se despedia gentilmente: mar. E ia embora navegando por dentro na grande descoberta.
Chegou à casa e assustou-se com os barulhos e movimentos, mexiam em tudo, trouxeram para o meio da sala as mesmas caixas de guardar que antes tinham desguardado. No dia seguinte, entre fúria e arrastos embarcaram no carro. Andaram... Andaram. Desta vez os pastéis não aliviaram a cansativa e desnorteante prisão, de alguma forma sabia que o menino não se afastaria do mar para segui-la. Como poderia encontrá-lo depois que o caminho do mar se tornasse desconhecido?
Esperou nos dias, sonhou nas noites, mas ele não veio lhe dizer que esperava pelo encontro. Se esquece tudo, Alice também esqueceu. Novamente houve aquela quebra na calmaria conhecida e novamente, roupas e tralhas foram escondidas nas malas. Novamente veio a estrada longa, cheia de pastéis. Deu-se conta que iam ao mar, ficou quieta, esperou. Voltaria ao encontro marcado de todos os dias, nem sequer titubeou na dúvida que ele não estaria sentado a navegar o mar. Era o destino do rapaz e ninguém foge ao seu destino.
Não esperou por nada, fugiu com força da mão que a segurava, correu para a praia, seu pensamento não se esquecer do lugar e nem de como chegar. Lá estava ele sorrindo, navegando sem barco, sonhando estrelas, a mão resguardando os olhos da luz e do rocio. Tem momentos que cumprimentos se tornam vazios de sentido, sabemos que não houve ausência, apenas saudade.
Queria ficar ali, sentada ao lado do rapaz, cuidando que a água não os levasse para aquele ponto onde tudo deixa de ser visto. Teve coragem mar e passou o braço pelas costas dele que não se furtou. A decisão foi tomada sem pensar sobre ela, pensamentos não existem quando a gente quer de verdade. Como faria para permanecer também não se questionou, ficaria e era assim.
Os pais se preocuparam, foi um corre-corre e vizinhos ajudando. Caíra a noite e Alice com seu medo do escuro não aparecia. Espanto, grave preocupação. Foi Gabriel, o velho pescador que conhecia aquelas paragens desde garoto que encontrou. Como contar? Melhor no ligeirão antes das lágrimas fazerem rios na sua cara.
- Ela está lá... Fria e sorrindo, abraçada na estátua do menino do mar.

sábado, 23 de julho de 2011

“Ô Trem que nunca para” (Marcio Ochner)

Pensamento que não me deixa,
Lembrança que provoca insanidade,
Apontamento de frações indivisíveis,
intelecto desordenado,
Anda igualmente a um trem,
Que nunca para,
Nem por razão alguma...
Atropela e mata,
Maldito órgão de transporte carregado.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Acróstico Paterno (Tiago Nascimento)



meus pensamentos buscam
a minha mente imagina: você
rabisco esses miniversos e escuto
imperceptíveis sons prenunciam-te
ao acordar não podia imaginar ser hoje
cataclismaticamente nesse peculiar momento
longe de condições favoráveis (cadê o aumento?)
a chegada tua nesse ruidoso silêncio que ora ouves
recolho-me a essa instintiva condição existencial rara
amanhã; no mais tardar, serei seu pai minha Maria Clara...

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Diálogo entre Deus e o Diabo (Fernando Bastos)

Há três bilhões e meio de anos, os dois únicos habitantes do mundo estavam tão entediados, que não suportavam mais olharem-se um para o outro. Nem orgulhoso estava mais o criador, diante de sua majestosa obra, o universo. Para piorar, seu antagonista vivia lembrando-lhe das imperfeições do cosmos. Tu criticas por inveja, disse deus, remexendo-se no trono cravejado de ouro e diamante. Tu não farias nem a metade disso. O diabo respondeu, Para isso ficar mais interessante falta uma coisa. O quê? perguntou o magnânimo. Falta vida, respondeu o diabo. Vida? Tens razão, porque não pensei nisso antes. Para tu veres, como és desligado, provocou satanás.


Isso não é problema. Estais vendo aquele planetinha azul ali, tão pequeno quanto um grão de areia? Sim, respondeu satã. Olhai como abundam as águas nele, pois então, neste momento, fabricarei a primeira molécula de RNA, de modo que ela será capaz de fazer cópias de si mesma, gerando outras formas de vida. Sou um gênio, admita. Isto até eu faria, disse o demônio, que gostava de menosprezar o trabalho do parceiro. Pois não ficará só nisso, advertiu deus.


Passaram-se mais alguns bilhões de anos, e algumas criaturas começaram a sair das águas e se estabelecer em terra firme, sofrendo mutações genéticas, adquirindo novas formas, adaptando-se ao novo ambiente. Deus sorriu obliquamente, pensando, desta vez o diabo vai ter que me engolir. Que nada, as provocações continuaram. Não vejo graça nenhuma nestes seres peludos pulando de galho em galho, sem noção de existência. Deus perguntou, Que queres que eu faça? Favoreça-os com uma consciência, faça-os descerem e andarem como gente. Seja feita a tua vontade, concordou o Supremo.


Destarte, há cerca de quatro milhões de anos os primeiros hominídeos começaram a andar eretos. Eles precisam falar, senão não tem graça, exigiu o demônio, de modo que algum tempo depois deus lhes outorgou o dom da fala. Vede agora, disse deus mais orgulhoso do que nunca. São feitos a nossa imagem e semelhança. Hm, resmungou o capeta. Eles estão muito felizes, pensou o diabo crepitando em suas veias a mais sórdida inveja.


O diabo percebeu que o motivo da felicidade era o estilo de vida sem interditos, e a não existência da “má consciência”, que seria usada mais tarde pelos sacerdotes e transformaria bilhões de seres humanos em neuróticos, pois quase tudo era permitido na mais pura inocência nas hordas dos primeiros seres humanos. Toda mulher copulava com quantos homens quisesse e todo homem com quantas mulheres desejasse. As crianças eram felizes, pois tinham vários pais e varias mães que as cuidavam em tempo integral. Naqueles tempos, pensava-se que a gravidez das fêmeas fosse determinada pelos deuses; desconhecia-se a importância do líquido seminal, de sorte que homens e mulheres viviam em regime igualitário. Os humanos formavam uma grande família. A questão de propriedade não existia e tudo era compartilhado.


O diabo aproximou-se do companheiro e sugeriu: meta-lhes na cabeça o ciúme. Quê? Indagou deus. Tu és surdo? Perguntou o diabo, Eu fui claro, faça-os terem ciúme uns dos outros, de tal sorte que se sintam proprietários uns dos outros. Deus ponderou, Mas isto irá acabar com a felicidade deles. A vida deles será um inferno.


O diabo deu de ombros e sorriu maliciosamente. Venci mais uma vez.


Fernando Bastos – cartunista e escritor, autor de Teofania, homens que viam e conversavam com Deus (Design Editora, 2009)

domingo, 10 de julho de 2011

High Society (Sônia Pillon)

Nunca pensei que viria tanta gente para esse coquetel!... Canapés de camarão, salgadinhos, docinhos, vinho, espumante, cerveja... Os garçons não param de aparecer com uma bandeja na minha frente, e já desisti de seguir com a dieta hoje... Já perdi a conta de quantas vezes andei por esse salão, com uma taça na mão, percorrendo um a um os quadros dessa vernissage de arte contemporânea, que mais parece um desfile de modas e de frivolidades...

A nata da sociedade está aqui hoje, “la crème de la  crème”, diria um colunista mais esnobe...Se fosse somar o conteúdo da conta bancária desses milionários e o peso das joias das madames emplumadas, o chão com certeza desabaria!, pensei, sem conseguir conter o sorriso quando a cena me veio à mente...

Estou me sentindo um peixe fora d’água no meio desses ricaços, mas a revista me mandou para cobrir o evento, fazer o quê?... Já estou há mais de uma hora rondando aquela socialaite perto das bebidas, mas parece que ela nem me vê... Daqui a pouco ela vai ficar de pilequinho, para variar, e dar em cima de todo mundo, como sempre... Seria melhor se eu conseguisse a entrevista antes...

Ali está a dona Brígida, toda sorridente ao lado do marido, posando para o fotógrafo do concorrente... Olhando de fora, quem vai dizer que esses dois se odeiam, mas vivem em quartos separados na mesma casa?... Ah, o patrimônio!... Jogar tudo para o alto e perder dinheiro, status e poder? Nem pensar!...

A dona Abigail está na mesma situação, há anos fechando os olhos para os deslizes daquele bode velho, um pinguço de primeira! Quando ele morrer, vai nascer um pé de cana do lado da sepultura, com certeza!...

E veja só a Patrícia, tão jovem e bonita, casada com aquele empresário... Como é mesmo nome dele? Leônidas, isso! Trinta anos mais velho que ela, morre de ciúmes da mulher, que ele exibe como um troféu... Acha que está abafando!... Vivem dizendo que ela dá as suas escapadinhas à tarde, mas ninguém se atreve a falar nada. Quem tem telhado de vidro...

Aquela outra lá deixou até o marido em casa. Está com a pele bem mais esticadinha do que quando a vi na última vez. Essa é pegadora!...Quando ela sai com aquele conversível vermelho em direção a Florianópolis, dizem as más-línguas que vai caçar garotão na avenida Beira-mar... Vai ver que é por isso que ela está sempre com esse sorriso no rosto, com os olhos e a pele brilhando... O marido já não tem nem cara mais de aparecer ao lado dela. Melhor fazer que não vê, para não perder a vida boa...

Os artistas plásticos da exposição são os únicos que parecem mais naturais. Eles se esforçam em “explicar” suas obras aos patrocinadores, que fingem entender de arte...

 Já está na hora de fazer aquela entrevista pingue-pongue para a revista e decido me aproximar da socialaite, que agora se mostra menos esnobe e condescendente comigo. A minha presença aqui significa aparecer na página vip da revista, e isso é motivo mais do que suficiente para que ela me atenda bem...

Pronto, terminei a entrevista! Acho que agora está na hora de vazar daqui. E é o que estou fazendo. Mas uma cena me chama a atenção enquanto me dirijo à porta de saída, com a chegada de um jovem casal. Eles usam jeans e camisetas, bolsas  de couro atravessadas no peito e tênis. Meio ripongas. Ela é filha do dono da maior rede de lojas de calçados da cidade, e o namorado, um estudante de engenharia civil (um pé-de-chinelo, como querem os fofoqueiros, torcendo o nariz)... A plateia se vira para eles e os olha de cima a baixo, censurando silenciosamente os trajes dos dois. Apaixonados, eles entram abraçados, sorridentes e cumprimentam a todos, sem ligar para os olhares de reprovação e risinhos debochados. “Excêntricos”, dizem alguns, “felizes”, digo eu, que vou embora com a certeza de que presenciei uma das poucas cenas de alegria genuína, naquela noite...

Sônia Pillon é jornalista e escritora em Jaraguá do Sul, Santa Catarina.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Carta de divórcio (Tiago Nascimento)

Depois de deduzidos os impostos;
pagas as duas prestações;
feitas as compras do mês;
pago o aluguel do mês passado,
quem sabe ainda falte dinheiro
para encerrar a luz, a água
e o telefone.
É. Ser classe média é uma dureza...

Depois de enjoar da minha cara,
talvez. você vai embora sem que
eu possa ao menos entender
o tipo de mulher episódica que era você.
Quem sabe eu ainda consiga
juntar os cacos e recomeçar.
É. Ser abandonado é uma tristeza...

Sei lá, a gente não pensou bem,
só acho que se eu soubesse que ia ser assim
eu teria pedido o divórcio muito
antes de ontem a tarde.