quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Pergunto (Tiago Nascimento)

Cada soldado morto é mais que um número.

É um pai que se vai sem da filha se despedir;

É um marido que vai sem um último beijo de amor;

É um irmão, um filho querido, talvez caçula, talvez único, arrimo da família talvez...

Um Cristo crucificado antes, bem antes dos 33.

E tem motivo?

Eu me pergunto o porquê e não encontro explicação.

Os números que vejo na TV não são somente números. São pessoas. São corpos. São rostos.

Que gostavam de Caetano & Gil. Que detestavam Spielberg. Que falavam mal do Lobão.

Que expressavam amor por alguma garota de alguma zona sul.

São pessoas. Rostos. Corpos. Números. Mortos. Números mortos.

E qual o motivo?

Eu me questiono, mas não vejo nenhuma razão.

Busco mais a pergunta do que propriamente a resposta...

Aliás, me satisfaço bem mais com a pergunta do que com a resposta.

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Tiago Nascimento é professor.            jesuscristohumano@gmail.com


 

 

 

 

 




 

domingo, 17 de outubro de 2010

Carta sem título (Ítalo Puccini)

J.,

Estranho foi você ter perguntado pela minha mãe, assim, de repente. Se tanto demorei para lhe escrever foi porque perdi minha mãe. Esses sustos que nos pegam assim, pelo calcanhar, de costas, despreparados. Era uma tosse. Depois uma dor na nuca. Uma febre que não passava. E o sorriso sem graça agora é meu. Depois de dias de internação. De diagnósticos confusos. Quando me contaram o que era, não me restou nada a fazer se não ficar assim catatônica. É tradicional, não é? Pelo menos é o que dizem. Da gente ficar assim fora do ar ao receber a notícia, precisar de amparo, contatar os parentes. Aí vieram, os parentes. Lá de longe. Porque eu sou bem sozinha. Agora ainda mais. Éramos só eu e minha mãe. Há bastante tempo. Há vinte e dois anos, desde que meu pai foi embora. Dizem que até já casou e tem uma filha. Mas não apareceu no velório de minha mãe, não. Mora longe, acho.

Durante esses dias todos eu ficava vendo sua carta ali, na mesinha da sala. Entre três sofás e uma televisão preta e branca. Debaixo de uma bíblia. A bíblia que minha mãe lia sempre, todo dia. Ela assistia ao terço das seis da manhã e ao das seis da tarde. E sempre depois de assistir ao terço ela fazia o sinal da cruz e beijava a bíblia. Nunca reparei se era sempre a mesma página. Agora eu joguei fora aquela bíblia. Você acredita em Deus, J.? Mas eu ficava assim, respondendo a sua carta por pensamento, sabe? Pensando assim mesmo, ora, se ele, ou ela, afinal, me achou ao acaso, se de repente eu recebi uma correspondência de alguém que eu não faço ideia de quem seja, por que esse alguém não entenderia o que estou pensando agora e, ainda mais, por que esse alguém não receberia minha resposta, então, por pensamento, principalmente entendendo que no momento eu estaria impossibilitada de escrever? Sim, eu sou do tipo, J., que abre cartas de desconhecidos. Na verdade, a sua carta foi meu sopro de vida durante esses dois últimos meses. Eu não ligava mais para muita coisa, não. Mas eu pensava diariamente numa carta que eu tinha para responder. Só que na verdade eu gostaria de prolongar essa resposta quase que infinitamente, sabe? Por medo. Você me entende, J.? Por medo. Assim. Vai que eu respondo a você, e você não mais me escreve?

Não repara não na minha escrita, muito menos na minha letra. Essa escrita fragmentada, essa letra tremida. Esses recortes de mim. É que eu ainda não consigo dar conta de tudo, não. Tem uma pilha de contas atrasadas aqui na mesinha do abajur da sala, ao lado do braço de um dos sofás. Tem coisa há mais de mês aqui. Minha mãe ficou internada por trinta e nove dias. Eu contei. Eu vinha em casa, tomava um banho, descansava uma ou duas horinhas só na cama e voltava para o hospital. Eu sou professora. Pedi licença na prefeitura assim que o médico me disse que o caso da minha mãe era sério e que poderia ser irreversível. Engraçado são os médicos, não é, não? Eles sabem exatamente o que vai acontecer, ou o que já aconteceu, mas sabem como ninguém dar uma informação que não diz nem sim nem não. E aí deixam a gente assim, desnorteada, com cara de assustada, mas precisando mostrar uma segurança que não existe. Foi assim que cheguei na escola e falei que precisava de trinta dias de licença para cuidar da minha mãe. E quando me perguntaram o que ela tinha eu fiquei muda. Eu travei. E caí num choro. Na frente da diretora da escola. Que precisou chamar uma outra professora para me trazer um copo com água e açúcar para me acalmar e para que eu pudesse dizer aquilo que eu não sabia.

Foi então que eu percebi que numa carta eu posso verbalizar direitinho o que eu não sei. Acho que isso é o mais marcante numa troca de cartas, você não acha? Essa incongruência. Nós escrevemos para contar daquilo que é nosso, daquilo que nos acontece, daquilo que acreditamos que é nossa vida, mas na verdade a gente acaba descrevendo aquilo que não sabemos, aquilo que não é nosso mas nós pensamos que é. A gente se escancara para um outro, mas pouco percebe que a gente se escancara também é para nós mesmos numa escrita de carta, seja para quem conhecemos, seja para um desconhecido, como você é para mim, J.

E foi isso o que me levou a enfrentar esse meu medo de lhe escrever. O medo de que não me respondesse mais. E eu sei que ao escrever isto eu empurro a você uma certa pressão, uma necessidade-de-resposta-para-que-ela-não-se-suicide. Mas eu digo que não é para tanto assim. Eu sei o que é viver sozinha, sabia? Sei, sim. Sei muito bem. É algo inerente a mim. O estar só. Portanto, não se obrigue a me responder, não. Passo, a partir desse momento, a não esperar carta nenhuma em meu apartamento. Será melhor assim, creio.

P.S.: Mesmo assim, eu gostaria, sim, de saber da mãe que caiu nesse mundo para você, J. Só isso.

Com afeto,

Cê.

domingo, 10 de outubro de 2010

O choro do inocente (Sônia Pillon)

O parto foi muito difícil. Joana sentiu contrações horríveis, e a dilatação alcançou seu ponto máximo. O médico do SUS insistiu para que seu parto fosse normal. Ela sempre quis ser mãe, todo mundo sabia disso! Olhava os três filhos da vizinha e pensava que seu dia iria chegar. Só não esperava que aquele "cachorro" do marido fosse se engraçar com a secretária, justamente quando mais precisava dele, no oitavo mês de gravidez!...


E agora ela estava ali, completamente sozinha, na sala de parto... Parecia um pesadelo, mas era a mais pura realidade!
Involuntariamente, enquanto aguardava pelo obstetra de plantão, há uma hora atrás, lágrimas escorreram pelo seu rosto, que ela cobriu com as mãos. Finalmente chegou o médico, visivelmente contrariado por ter interrompido seu almoço de domingo com os amigos... Ele nem se sensibilizou com os olhos inchados da parturiente, nem com o desencanto de seu olhar. Quanto antes ele terminasse aquilo tudo, melhor para ele!...


A dor se tornou atroz, a cabeça de Joana parecia que iria explodir, mas o médico mesmo assim optou pelo parto normal. Um menino franzino finalmente nasceu chorando, frágil e pedindo o aconchego da mãe, que desmaiou em seguida. Uma perigosa hemorragia a manteria por mais uma semana no hospital público. Ela mal conseguia amamentar aquele ser, tão magro e assustado, que parecia pressentir a insegurança de sua situação.
Finalmente o médico plantonista comunicou a alta, dez dias após o parto. A mãe e a tia a amparam na saída, com olhares compadecidos. Era tudo o que ela não queria: aquele odioso olhar de piedade estampado nos olhos da família!


Ao voltar para casa, Joana olhou para seu filho e se sentiu impotente. Uma crise de choro se apossou dela enquanto carregava nos braços aquele ser, que esperava por carinho e amor. Subitamente, a rejeição ao menino veio com força total.
Sem entender o que estava fazendo, Joana pega o bebê e o joga do 17º andar. A mãe e a tia gritam, desesperadas, mas nada mais pode ser feito. O chorinho do inocente parou, pouco depois que seu corpo encontrou a calçada. Uma multidão se reuniu estarrecida em volta daquele corpinho já sem vida. E a PM bateu à sua porta, minutos depois.


Texto originalmente escrito em fevereiro de 2008, e adaptado em setembro de 2010.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Os que ainda não são (Tiago Nascimento)

Adolescência é fogo.

Adolescente é bicho preguiçoso.

Essa mania de não escrever usando acentos.

Essa estranha vontade de assassinar a ortografia.

Essa pungente rebeldia quanto ao bom português.

Essa juvenil gana de perverter a gramática.



Adolescência é barra.

Adolescente é bicho carpinteiro.

Tem o digitar com um só dedo no teclado;

Também o nunca usar corretor ortográfico;

Existem bons teenagers, pena não ser aqui;

Por que sempre me sobra o abacaxi?



Ah, mas não foi por mal...

De boas intenções;

De malvados com bons corações;

As ONGs e o inferno estão cheios.



Prô, eu posso tomar água?

De mocinhas ingênuas, chaves de cadeia;

De juniores espinhentos cheios de gírias;

Eu e meu saco já estamos cheios!

Prof. Tiago Nascimento jesuscristohumano@gmail.com

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Você virou (ficou) um jaraguaense? (Marcelo Lamas)

[caption id="attachment_111" align="aligncenter" width="300" caption="http://farm4.static.flickr.com/3212/2690600499_8841b3726e.jpg?v=0"][/caption]


25 evidências


Diz-se que alguém "acultura-se" quando assume hábitos e costumes não comuns na sua origem. Ao mudar de região, muitos tentam manter o estilo de vida que tinham na sua procedência, como as roupas (lojas e forma de vestir-se), médicos, compromissos e culinária, entre outros.

Porém, conforme o tempo avança, as pessoas acabam cedendo à sua relutância inconsciente e ajustam-se ao ritmo de vida do meio onde estão inseridas.

Para ser um jaraguaense (por opção ou necessidade) basta enquadrar-se em, pelo menos, cinco dos itens a seguir:

1) Comprar um terreno ("schon");

2) Casar com uma frida (ou fritz), sendo que às vezes eles vêm acompanhados dos terrenos;

3) Ter um pijama da Malwee (exigido na hora da compra);

4) Ter um automóvel com placa de Jaraguá do Sul;

5) Ter um cartão Breithaupt;

6) Achar Guaramirim longe;

7) Ter como meta de consumo uma casa em Barra Velha;

8) Ir, pelo menos uma vez na vida, ao Chopp Club ou Vitória;

9) Ir à missa todo o sábado ou domingo à noite;

10) Ouvir o resultado do jogo do bicho no rádio;

11) Confundir-se, sem perceber, ao pronunciar o duplo "r";

12) Não conseguir sair do supermercado sem levar consigo uma lata de salsicha, um quilo de banana, um pacote de linguiça e um vidro de pepino em conserva;

13) Conhecer o refrão de três músicas alemãs e dançá-las com maestria;

14) Carregar guarda-chuva na bolsa;

15) Em viagem, quando perguntado: " — De onde você é ?", responder: "Jaraguá do Sul".

16) Passar o domingo no Parque Malwee;

17) Fazer analogias favoráveis à sua terra natal, mas estar residindo por aqui há mais de três anos;

18) Ter um filho em Jaraguá do Sul;

19) Ter uma segunda profissão para "engordar" o orçamento;

20) Trabalhar mais de dez horas diárias, naturalmente;

21) Preocupar-se com uma possível seca, depois de uma incrível sequência de três dias ensolarados;

22) Transferir o título eleitoral para Jaraguá do Sul;

23) Trocar o carro usado em Curitiba;

24) Parar no meio do expediente para comer um pão trazido de casa;

25) Achar qualquer prato sem batatas, incompleto.

A situação de "aculturar-se" em Jaraguá do Sul torna-se irreversível, quando você se enquadrar em todos as situações acima, ou ainda medir o seu percentual, preocupado em não parecer um nativo local.
Mas o interessante é chegar sozinho à conclusão de que você é um jaraguaense.


Marcelo Lamas, autor de "Mulheres Casadas têm Cheiro de Pólvora".