sábado, 24 de dezembro de 2011

Menino Jesus Gaudério (Vana Comissoli)

Lembrava uma dessas tardes de inverno pampeano, o céu empedrado, sem um ventinho, sinal de geada braba. Mal dera o Ângelus e não se encontrava viv’alma na rua, frio de renguear cusco.


A china vinha embuchada de nove meses. Agarrava-se nas rédeas quase deitada sobre o cavalo mancarrão, único que conseguira exatamente por não valer nada. O caborteiro, responsável pela empreitada, sumira na perdição da vida, desconhecendo que a repontada trazia piá gaudério para esse mundão sem porteira.


Quando sentiu o primeiro garroteamento no baixo ventre, apertou os calcanhares na ilharga do animal que estucou o passo. Olhasse para todo o lado e não enxergaria nem uma taperita de consolo. Fez a curva da estrada já agarrada na reza para Nossa Senhora do Bom Parto, única fidalguia de que se podia valer.


Despontou, lá no longe, um bolicho guaipéca, desses perdidos no meio do nada. É o Deus dará e o bolicheiro. Acelerou a montada mais uma vez.


Sem querer, apertou os pés na ferroada da parição e o animal respondeu, o bicho bagual, embora macho, entendia dessas coisas de botar cria no mundo. Na frente do bolicho apeou-se devagar, a barriga era um escorrego só.


Apesar do frio, ou por isso, a indiada estava firme na canha do fim-de-dia. A rapariga, embora china embuchada, era bonitaça. A homarada se virou para especular, enquanto ela perguntava ao dono do bochinche onde podia encontrar pousada que o piá estava querendo olhar a querência pelo lado de fora.


O bagual coçou a cabeça dizendo que não tinha acomodação, mas a umas quadras dali ficava a Estância da Ramada, gente boa que só ela, haviam de lhe dar guarida. “Acha que aguenta o piazito até lá?”


Há de agüentar, assegurou a mãe, pois se não tem outro jeito, arreglado está.


Tocou-se a passito que os sacolejos do cavalo lhe provocavam repuxos imediatos.


Apeou para abrir a porteira e segurou-se um pouco no moirão da cerca. A alameda que levava à fazenda era ladeada por tarumãs antigos, provocava medo aquele corredor escurecido pela galharia, mas impunha-se atravessá-lo. Se foi de manso, a segurar a barriga como se pudesse impedir o nascimento soflagrante.


Não chegara à casa grande e já o capataz vinha encontrá-la num zaino guapo. Marilena foi pedindo pousada, explicando o parto eminente e mostrando o rocim em que vinha.


− Minha dona, bem que lhe queria fazer os préstimos, mas nem o patrão, nem a patroa estão na moradia, foram para cidade passar o Natal com os filhos. – Esclareceu o homem.


Abombada, não se agüentando mais, a chinoca se desacorçoou, grossas lágrimas rolaram enquanto puxava as rédeas a retomar o trilho por donde viera.


Mais três quilômetros e tu encontrarás a Estância do Caverá, te dão guarida. Ouviu, nas costas, a indicação.


Tocou a montaria na precisão, já ia tironeada das idéias, era chão a não se acabar nessa emergência. O frio entrava pelo poncho, a gelar-lhe os ossos. Era breu, o céu e o suspiro da noite molhava-lhe os cabelos. Nossa Senhora do Bom Parto, me dá uma boa hora, pedia, desesperada, uma taperita qualquer onde eu possa apear de vez, uma alma que não seja maleva prá recolher meu rebento.


De longe, enxergou as luzes e a esperança voltou a seu coração. Ai, que me emendo, minha Nossa Senhora, saio da vida, crio raiz e amagava em cima do pingo como se isso o adiantasse.


As luzes vinham do galpão de onde desencantava um som de acordeona bonito de se ouvir, difícil de prestar atenção nesse momento. A casa tinha todas as janelas fechadas, alguns fiapos de luzeiro escapavam das venezianas. Escolheu o galpão para apresentar-se.


− Buenas, estou procurando asilo, para mim e para cria que já está apontando.


O chiru tirou devagar o pito da boca, empurrou para traz o chapéu, largou a acordeona encastada num tripé brilhoso de uso. Era certo que esses movimentos, muito lentos, lhe permitiam avaliar a chinoca e pensar numa resposta.


A mulher vestia uma chita muito da molambenta, umas botas masculinas maiores do que os pés que guarneciam e o poncho estava esticado pelo tamanho da barriga. Era china, se via de longe.


− Cuê-pucha! Como que vem embarrigada desse jeito!? Há de gunir um pocado, minha prenda.


− Ai, senhor, não havia maneira de ficar naqueles pagos, a dona do arranchado que eu servia, não fica com piá guaxo, entrega tudo para o padre. Sou china por percisão, apertei a cincha o quanto deu para não mostrar a cria. Solita passei na treva da espera, depois não deu mais. Não havia recau que segurasse o guri. Dei com os costados na rua. Eu fiz por gosto, pelo homem, vou parir e vou criar. Me ajude, senhor, só um canto para largar o corpo, uma mão para aparar.


O chiru mediu o bucho, viu a cria despontando como vaca no pasto, era haragano, mas não era jerivá. A dor do sangue do Rio Grande bateu nele e as peleias se insurgiram, pois que venha, se arresolveu.


− Pois comigo morocha não fica no desprotejo, assunto tu e a cria. Vou encilhar meu cavalo que o teu não serve nem para mais uma quadra. Está estropiado. E me chame José.


Pegou a china pelo braço para que apeasse. Chamou a peonada a arreglar pouso. Os gaúchos se olharam, entrecoçaram as pernas na bombacha solta e se puseram a serviço.


− Meu nome é Marilena, mas pode me chamar Maria como todo mundo faz.


Saíram montados no mesmo animal, passaram por detrás da casa grande esparramada no meio do terreiro e perderam-se na noite do campo através do assobio do vento nesses dezembros que às vezes assolam o Rio Grande. Depois de meia hora, já em pleno pasto, avistaram uma choupana onde os homens já tinham alumiado o fogo. Apearam.


José prendeu o cavalo e abriu a porta sem trinco. Lá dentro os peões aguardavam trovando. Tenho mulher pronta para dar cria, foi avisando José com cenho franzido, a mão no relho trançado que pendia ao lado do facão, a traíra presa na cinta. Os empregados, conhecedores da severidade do capataz, apertaram os ponchos ao corpo e postaram-se em guarda ao redor da casa coberta de quincha. Falavam baixo e não levantaram os olhos para assuntar a dona que se enfiava às pressas na salvação.


Amontoada e já afofada num canto uma porção de palha cheirando a mofo, esperava.


− Se ajeite moça que é por aqui mesmo o nascedouro. – Tirou o poncho e estendeu por cima da cama improvisada mais para bicho do que para gente.


Maria deitou-se gemendo, as pernas apertadas para segurar a cria e as dores agudas do parto em ferroadas.


− De buraco apertado não sai Bem-te-vi. Afrouxa dona. Minhas mãos são de vaqueano e nessa hora lhe hão de servir.


Viram-se os dois a forcejar para trazer ao mundo mais um filho de Deus.


O piá berrou estapiado no recavem.


−É gadelhudo o Chico, Maria, gadelhas negras como as suas. – José sorria, a sisudez de gaudério se perdendo diante do choro de recém-nascido. Com peito já incendiado falou mais para si mesmo:


− Pois não há de ver que é diferente de ver vaca e égua nascendo? É filho de gente.


Correu ao cavalo e trouxe um pala para enrolar o pimpão.


Maria segurou o filho, beijou-o enquanto colocava no seio a boca buscadeira.


Os homens à espera entraram, o choro fora o sinal da permissão, os chapéus rodando nas mãos duras. Agacharam-se olhando mãe e filho como quem olha santinho bento. Por trás, José fiscalizava os modos dos bagual.


Um se levantou e disse muito solene:


− O menino vai crescer, precisará de defesa. Dou meu punhal de empunhadura de prata. Muito lhe há de servir.


O segundo chirú não se fez de rogado, tirou a guaiaca e depositou diante de Maria:


− Dinheiro ele há de percisar, dou lugar para ter onde guardar.


O terceiro se levantou e meio envergonhado declarou:


− De valor nada tenho: nem punhal, nem guaiaca, mas colhi essas macelas que hão de perfumar. − Largou as flores douradas ainda com aroma da frescura da terra gaúcha, seu brio e suas lutas.


− Como há de se chamar o guri? Já basta que não tenha pai, nome há de ter. − Atreveu-se o primeiro.


− Tome tenência. − rugiu José.− Acha que sou algum alarife? Estou amansionado. É meu guri, para o que der e vier, trouxe o guri pro mundo, o filho é meu.


Maria olhou o homem, o filho e pensou na Virgem e na promessa que fizera no caminho.


− Pois se o pai se agradar se chamará Gesuíno.


Lá no céu, acima de tudo, a luzeira cintilou.


Vana Comissoli

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

FÉRIAS

Prezados leitores e "cooperados", quero agradecer o apoio constante recebido dos senhores, através das suas leituras, seus comentários e seus textos enviados e comunico que o blog entra em férias a partir dessa data voltando em meados de janeiro.


Deixo aqui meu agradecimento pela companhia constante dos leitores do blog, dos colaboradores e deixo também votos de felicidades nesse ano que vem chegando e um desejo de que no 2012 continuemos juntos a compartilhar esses textos de alta qualidade e os comentários precisos e preciosos.



Obrigado
e Boas Festas!


De vosso amigo Tiago.

domingo, 11 de dezembro de 2011

A Grande Enchente (Fernando Bastos)

Os filhos e filhas do casal original se uniram sexualmente entre si, bem como com estrangeiros que encontravam em suas andanças, na busca por alimento e sobrevivência. Um homem podia ter muitas mulheres, e a mulher, muitos homens. A monogamia levaria tempo para ser imposta. E o incesto ainda não era uma contravenção.


Com o aumento da população, grassava a onda de violência entre                                        os filhos da terra.  Foi necessária a implantação de leis, para conter as iniquidades e salvaguardar a paz e prosperidade.


Apesar dos esforços da classe sacerdotal, homens especiais que sabiam o que os deuses queriam, a desordem continuava a prosperar pelas hordas humanas. Javé, apenas mais um deus entre tantos, mas que acreditava ser o maior dentre todos, deliberou exterminar a vida na terra, pois andava aborrecido com certos comportamentos de seus filhos.


O diabo o interpelou, Ora, depois de tanto trabalho, decide matar seus filhos, assim, sem mais nem menos? Não eliminarei a todos, respondeu o Senhor, Preservarei a vida de um homem, o único justo e íntegro, que me honra com sacrifícios e orações. Quem é ele, perguntou Satã. Seu nome é Noé, respondeu o Todo Poderoso. Pouparei a vida dele, bem como a de seus familiares; todavia, o resto da Humanidade perecerá numa grande enchente, juntamente com tudo que respira sob o sol.


O diabo coçou o queixo e perguntou maliciosamente, E os bebês e as crianças inocentes, o que vai fazer delas? O Senhor pigarreou duas vezes, pensou um momento e disse, Morrerão pela culpa de seus pais. Vendo que não podia nada fazer para impedir tão horrível decisão, o diabo retirou-se pensando, Quem é mesmo o demônio nessa história?


Instruído pelo Altíssimo, Noé construiu um grande barco de madeira resinosa, untada com betume por dentro e por fora. Após dias de intenso e árduo trabalho, Noé entrou na arca, carregando com ele família, e casais de animais, macho e fêmea de quadrúpedes, répteis e aves, conforme solicitação do Senhor. Abasteceu o barco com as provisões necessárias, e aguardou pelos primeiros pingos de chuva. Obviamente que ouviu muitos gracejos dos vizinhos quando da construção da Arca. Um deles perguntou,Vai virar pescador, Noé? Está fugindo do quê, homem? Não poucos o chamaram de louco, porque não acreditavam que a enchente tomaria proporções tão gigantescas, quanto a que apregoava o construtor do barco.


E eis que os trovões ribombaram ensurdecedores. Os relâmpagos se desprendiam da abóbada celeste, feito flechas lançadas pelos arqueiros de um poderoso exército. O céu tornou-se acinzentado, e fortes ventos prenunciaram a tempestade.


As águas caíram dos céus ininterruptas por 40 dias e 40 noites, conforme havia sido anunciado. Um pandemônio se formou entre as hordas que permaneceram em terra, cada um procurava salvar o que lhe tinha de mais valor, tentando alcançar os lugares mais altos. Sob o violento temporal, as mães arrastavam as crianças menores pelos braços; outras traziam os bebês ao colo, que berravam sem parar. As grávidas corriam com dificuldade, segurando barrigas sacolejantes, protegendo em vão aqueles que jamais viriam a luz do sol. Os homens enxotavam as ovelhas e os bois para os montes mais próximos; os cães seguiam seus donos, com latidos ensandecidos. Uma velha decrépita foi deixada para trás, um homem de muletas tropeçou e ninguém veio para ajudá-lo a se reerguer. No fim da tarde, corpos humanos boiavam misturados a animais e galhos de árvores engolidos pela fúria das águas.


Entrementes, a grande nau singrava triunfante com os únicos sobreviventes do dilúvio. Tudo que havia sobre a terra ficara submerso. E a terra ficou nesse estado por cento e cinquenta dias. Um grande sopro desceu e afastou as águas. Já era possível vislumbrar os cumes das montanhas. Noé soltou uma pomba, que voou por algumas horas, e retornou ao barco, pois não havia local seco para pousar. Após sete dias, soltou-a novamente, e eis que a ave retorna trazendo uma folha de oliveira verde ao bico. O pequeno grupo humano refestelou-se com a boa nova; era sinal de que as águas haviam baixado. Noutra semana, soltaram a pomba mais uma vez e, encontrando lugar para pousar, não retornou mais.



Deus estava pensativo. O diabo o encontrou sentado sobre uma pedra plana, no monte Sinai, local que escolhia para meditar, e perguntou, O que pretende fazer agora? Vai deixar a raça humana em paz, e deixá-la aprender com os próprios erros ou vai castigá-la muitas vezes ainda? O Senhor respondeu, Nunca mais amaldiçoarei o gênero humano, pois os homens são maus desde a infância. O diabo provocou, Mas, quem os criou, não foi você? Sim, fui eu, disse Deus. Satã indagou ainda, Quer dizer que admite não ter feito um bom trabalho? Sim, concordou o Senhor, Não fiz um bom trabalho. Portanto, concluiu o demônio, há um único culpado nisso tudo, e não é o homem. Deus respondeu, Não me condene pelos erros humanos; quando os criei, dei-lhes o “livre arbítrio”, para decidirem entre o Bem e o Mal. Mas tanto eu e você, argumentou o capeta, sabíamos que o Homem tem tendência para o pecado, e esse livre arbítrio não funciona na prática, não passa de uma falácia. Se você dá liberdade a alguém para escolher entre amá-lo ou desprezá-lo, mas o castiga se ele decidir pela opção que não esperava dele, isso se chama coação, mas não liberdade de escolha. Na verdade, o ser humano é obrigado terminantemente a adorá-lo, sob ameaça de sofrimento eterno. Você me parece um marido ciumento que diz à esposa que ela pode sair com as amigas, mas se olhar para algum outro homem irá enchê-la de pancadas. Um pai que ama seu filho irá fazer de tudo para que o filho o ame, sem constrangimento e ameaças de uma possível punição. Você, Javé, que se acha deus, poderia copiar o exemplo.


O Magnânimo ficou vermelho de raiva; não esperava ser confrontado dessa maneira. Rodou nos calcanhares e desapareceu, deixando o diabo com um riso mordaz nos lábios. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Noturno soturno em Saturno (Pensando em Raul) (Tiago Nascimento)

É noite na metrópole silenciosa. Faz um calor saboroso, um leve banho-maria. Depois do novo Acordo Ortográfico, já nem lembro mais como se escreve…
São tantas coisas, o tempo é curto, a vida voa e vice-versa.
O ano já termina. Os alunos ainda não sabem produzir textos. Meus amigos de infância publicam mais um livro, esse sobre ser ou não moderno. Eu não sei mais o que eu sou, se geek, hippie, hipster ou old school. Mas estou casado, já sou pai de família, minha filha nasceu parece ainda ontem, mas foi há meses atrás...
Algumas pessoas podem morrer. Outras já estão morrendo. E tem uma centena de tempestades acontecendo agora ao redor do mundo. Tem um gato miando com fome em algum lugar perto daqui. Existem duas mil estrelas sendo visíveis à olho nu nesse dado momento em qualquer parte não nublada do céu. Deve existir alguma moça bonita esperando alguém ligar. Quem será? Queria não ter uma certeza agora…
Revi amigos, fui a encontros nada furtivos, felizmente ou infelizmente, devido ao caráter monogâmico da minha nova vida. Não que sinta falta, mas parece que o ano passou tão depressa que nem tive tempo de amarrar os cordões do meu sapato novo… É tudo novo, mas são velhos os amigos, são doces os novos velhos beijos e são intensos esses dias que sobrevivo por aqui.
Como Raul dizia, ou quem sabe eu mesmo inventei: “Quando os sinos dobram é por mim mesmo e disso eu sei muito bem”.